Ilustração por Lia Kantrowitz

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Entretenimento

Como é saber que você vai morrer de câncer aos 35 anos

Alguém me disse recentemente: “A dor é uma linda professora, mas só depois”​.
Lia Kantrowitz
ilustração por Lia Kantrowitz
MS
Traduzido por Marina Schnoor

Não sei como abordar isso melhor, mas nos dias entre minha entrevista com Katia Bozhikova para esta matéria e a publicação dela, Katia morreu. Ela tinha 35 anos. Ela sabia que o fim estava próximo. Era algo que ela já tinha aceitado há um tempo. Katia foi diagnosticada com câncer quase 10 anos atrás, e este ano, os médicos disseram a ela que a doença tinha se espalhado pelo fígado, costelas, nódulos linfáticos, pulmões e cérebro. Mas a morte dela me chocou mesmo assim, talvez porque é isso que a morte faz em sociedades como a nossa, onde uma das únicas duas certezas da vida – nascemos; vamos morrer – não é tão muito bem integrada na nossa consciência.

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Conheci Katia por meio da minha irmã, uma psicóloga que estuda morte e mortalidade. Depois de ouvir Katia explicar como a proximidade da morte tinha mudado seu entendimento da vida, pedi uma entrevista. O que se seguiu foi uma conversa curta enquanto ela tirava um dia de folga de uma rodada de tratamentos experimentais extremamente dolorosos. Entre ataques de tosse e goles de água, ela falou com uma confiança e clareza que me desarmaram – não porque ela não tinha medo, não estivesse triste ou com raiva, mas porque, parecia, ela tinha vivido com o espectro da morte tempo suficiente para fazer dele seu professor. Como eu disse para minha irmã na noite em que Katia faleceu: morrer parece assustador, misterioso, difícil e estranho, mas se alguém sabia como fazer isso, era a Katia.

VICE: Uma vez ouvi você responder a pergunta de alguém sobre se sua condição era terminal dizendo algo como “Bom, toda nossa condição é terminal”. Sua resposta destacava quão pouco tendemos a considerar nossa mortalidade. Como a saliência da sua mortalidade evoluiu com o tempo, antes do câncer e agora, e como isso afetou seus sentimentos sobre a morte?
Katia Bozhikova: Quando fui diagnosticada, eu tinha 26 anos. Não é uma idade em que as pessoas são encorajadas a olhar para a morte. Tem tanta coisa vindo da comunidade médica, especialmente quando você é jovem, que te faz não pensar sobre a morte. Era esse grande tabu. Mesmo fazendo a pergunta era como se eu estivesse fazendo algo errado.

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Qual pergunta?
Tipo, o que acontece na morte? E se eu morrer? Eu estava sendo constantemente puxada para fora disso. Mas acho que minha exploração realmente se aprofundou quando veio o diagnóstico de estágio quatro, porque não senti um medo insano da morte imediatamente. Senti medo de passar pela parte da morte da vida.

Então a morte não era assustadora? Morrer era assustador?
Sim. Fiz algumas experiências psicodélicas com um guia espiritual, não num ambiente de festa, e isso tirou muito do meu medo da morte. Esse tipo de tratamento não é pra todo mundo, mas minha experiência foi similar a de muita gente que descreve isso como uma dissolução do ego.

Mas num nível mais consciente, vi um amigo próximo morrer uns dois anos atrás de câncer, e havia muitas máquinas apitando, ele não estava em casa, e honestamente, isso me aterrorizou mais que o momento da morte. Esse é meu maior medo. Faz uns seis meses que fui diagnosticada com estágio quatro, e tive muitas ondas de experiências diferentes, algumas muito positivas e outras muito negativas. Tive medo que, como não moro no meu país natal e estou longe da minha família, eu seria cuidada por estranhos. Mas meus amigos e comunidade provaram que eu estava errada. Não sei onde eu estaria agora sem eles. Sempre encontro pessoas para ajudar a cuidar de mim. Muitos dias eu sinto dor no corpo inteiro, então é muita coisa pedir para alguém com um emprego ficar acordado comigo durante a noite inteira para que eu possa ir ao banheiro, tomar água ou tomar minha medicação. Pra mim, isso parecia um fardo, mas nenhum dos meus amigos nunca me fez sentir um fardo. Em nenhum ponto eles me abandonaram.

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Muitas coisas pequenas que sempre me preocuparam, como minha aparência e certos padrões sociais, caíram um pouco.

Pensar muito sobre a morte e considerar sua possível iminência mudou como você se sente sobre estar viva? Mudou a qualidade da sua consciência?
Muitas coisas pequenas que sempre me preocuparam, como minha aparência e certos padrões sociais, caíram um pouco. Isso removeu muitos filtros, e por isso sou muito mais autêntica comigo mesmo. Não considero mais outras pessoas como parte da minha própria imagem.

Você descreveria isso como sentir mais clareza que no passado?
Com certeza, e isso teve repercussão no meu relacionamento com a minha mãe e outras pessoas que não viam necessariamente vida e morte como eu. Percebi que não é meu trabalho fazer ninguém se sentir bem. Meu trabalho é ser honesta.

Eu tive câncer infantil

Como você tira sentido do papel da dor na vida? Você vê isso como uma parte valiosa da experiência humana?
É uma boa hora para fazer essa pergunta, porque acabei de passar por umas duas semanas de dor. Quase perdi a cabeça. Não foi bonito. Não é o tipo de dor que permite sabedoria.

Alguém me disse recentemente: “A dor é uma linda professora, mas só depois”. Não tinha um ponto nessa dor que qualquer meditação ou afirmação poderia funcionar, porque a dor te traz até as raízes de um jeito que realmente te mostra os limites onde corpo, alma e espírito se juntam.

Alguém me disse recentemente: “A dor é uma linda professora, mas só depois”

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Dor é uma força muito restritiva, certo? Ela te deixa de um jeito que não permite perspectiva e abertura.
A única coisa que me ajudou foi focar na minha respiração e não lutar mais. Mas isso não fez a dor desaparecer ou diminuir. Humanos fazem muito essa coisa de puxar e empurrar, e em certos momentos aprendi a parar de fazer isso, só permitir a experiência estar ali. A maior lição disso é que me privo da vida que ainda tenho tentando afastar a dor, porque a dor é uma grande parte da minha vida agora, não tem como negar isso. Mas puxar e empurrar tira toda minha energia.

Falando sobre a morte, você fala sobre esses tópicos pesados com reverência, mas também com uma certa leveza, como se isso não fosse tão sério. Como você encontrou esse equilíbrio?
Não desperdiço mais tempo me comparando com os outros. Parar de fazer isso tira muito sofrimento desnecessário. Quando sentimos que estamos sendo privados de algo que supostamente deveríamos ter, algo que decidimos que deveríamos ter porque achamos que os outros têm, é quando as coisas tendem a se tornar “sérias”. A vida é séria demais para ser levada a sério.

Claramente, ser diagnosticada com câncer tem sido uma experiência transformadora para você. Mudança real exige eventos tão enormes e cheios de consequências na vida? O que permite mudança real?
O que nos faz mudar é quando algo é tirado de nós, algo que sentimos que temos direito. Nossos corpos são alugados. Este dia é alugado. Nada vai ficar. E se vivemos com uma mentalidade “tenho direito a isso”, “mereço isso”, em algum ponto vamos ficar atolados tentando nos agarrar a algo que não é nosso, que não está mais lá, e temos que mudar.

Como uma pessoa existe mais ou menos bem?
Se cercar de amor é importante. Somos criaturas tribais. Mas isso não é algo que vem de obrigação. Vem de nutrir relacionamentos. Estou fazendo os tratamentos mais loucos agora que, sozinha, eu nunca seria capaz de aguentar. Ter o apoio e o amor da minha tribo significa tudo.

A entrevista foi editada para maior clareza.

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