Levaram graffiti para dentro da Amazônia
Foto: Felipe Larozza/ VICE

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Levaram graffiti para dentro da Amazônia

Vivendo sob uma arquitetura simples e minuciosa, os ribeirinhos da Ilha do Combu, no Pará, abriram suas portas para residência artística durante o festival Street River.

Apesar dos fios grisalhos e da deficiência em um dos olhos, Seu Belinho cumpre a nobre missão de conduzir 10 artistas visuais Amazônia adentro com seu barco, o "Hino Brasileiro". Sob o sol dilacerante de Belém do Pará, no norte do país, ele volteia com força a roda do leme em direção à Ilha do Combu, a menos de 15 minutos da capital. Lá, cada um desses artistas irá conviver com uma família de ribeirinhos e pintar a fachada de suas simples casas feitas de madeira. Essa foi a proposta da terceira edição do Street River, projeto idealizado pelo paraense Sebá Tapajós, que, no início de maio deste ano, transformou a residência artística de grafiteiros em uma galeria fluvial em plena Amazônia. O time trazia os brasileiros Zezão, Herbert Baglione, Enivo, Acidum Project (Robézio "Ac/d1" e Tereza Dequinta), Cosmic Boys (Rimon Guimarães e Zéh Palito), Ramon Martins, Lobot e o mexicano Curiot. Assista ao vídeo feito pela VICE mais abaixo.

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Os artistas Rimon Guimarães (camisa vermelha) e Zéh Palito, ambos do Cosmic Boys, e Ramon Martins (à direita). Foto: Felipe Larozza/ VICE

Foram seis dias de total imersão na cultura da vida urbana e rural de Belém, provando açaí in natura, andando pela floresta, bebendo suco de frutas locais, como cupuaçu, bacuri e muruci, entornando cachaça de jambu (aquela do tremorzinho na boca), conhecendo museus e, óbvio, o clássico mercado Ver-o-Peso, a quintessência turística da cidade. Quando o trajeto envolvia as águas, era Seu Belinho que conduzia o bonde diariamente até a Ilha do Combu, onde a convivência com os ribeirinhos começou de maneira sutil.

O açaí in natura, colhido e batido na hora. Foto: Débora Lopes/ VICE

Ali, apesar da magia amazônica ao redor, de papagaios, borboletas em extinção e pipiras voando oniricamente pelo céu, não há água encanada ou potável nas residências, que, muitas vezes, ficam sem energia elétrica (quando estivemos lá, foram três dias seguidos).

A ilha pertence à cidade de Belém, recebe a constante visita de turistas, mas passa batida pelos olhos do poder público. Não há sequer saneamento básico. As construções frágeis e simples ainda sofrem com a displicência das lanchas, que (muitas vezes com som no talo) passam por ali em alta velocidade. O rio acaba avançando em direção às casas e erodindo o solo, prejudicando a sábia, porém, delicada, arquitetura ribeirinha.

As lanchas, que passam em alta velocidade, acabam provocando a erosão do solo e prejudicando as construções ribeirinhas. A casa da imagem foi pintada por Enivo. Foto: Felipe Larozza/ VICE

"Não é só o nosso trabalho. É a casa deles. Todos os dias eles vão olhar pra essa arte", comentou Tereza Dequinta, do Acidum Project, duo de arte urbana de Fortaleza, Ceará, antes mesmo de abrir as latas de tinta. "Temos de ter algo que conecte nosso trabalho com o que a família quer da gente."

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Kátia, dona da casa que eles pintariam, explicou que a família era religiosa e que o lugar se transformava em espaço de orações às quintas e aos domingos.

A artista Tereza Dequinta, do Acidum Project, estudando a arte que seria feita na casa da Kátia (camiseta laranja). Foto: Felipe Larozza/ VICE

Em conjunto, todos decidiram que era melhor evitar criaturas doidonas ou animalescas e dar espaço a elementos mais orgânicos, como paisagens e natureza. Foi, inclusive, a estampa da colcha colorida de dona Maria José, a matriarca de outra residência, que inspirou o Acidum a ilustrar o vestido da imagem pintada na parede vermelha.

Eram as conversas e a troca de experiência com os ribeirinhos que pautavam os artistas. Foi assim na casa de Seu Martim e Dona Dina, que receberam o paulistano Herbert Baglione. Ele preparava a cor na tonalidade que queria e parte da família ia pintando ripa por ripa da fachada da casa para compor o fundo do desenho que estava porvir.

"Quando ele chegou na nossa casa, era como se já fosse da nossa família. E todos nós juntos fizemos uma só família", suspirou Dona Dina, que, por causa da idade e de alguns problemas de saúde, não se arriscou nos pincéis, mas estava sempre ali passando um cafezinho cheiroso e proseando. "Vocês não têm preconceito", dizia o tempo todo, feliz, cercada por gente jovem, tatuada, da cidade grande.

O comandante do "Hino Nacional", Seu Belinho. Foto: Débora Lopes/ VICE

Na Ilha do Combu, não havia a densidade do projeto 1000 Shadows, item importante no currículo de Herbert, um dos grandes nomes do graffiti brasileiro. Suas silhuetas esquálidas, soturnas e derretidas que estamparam um hospital psiquiátrico abandonado na Itália e uma igreja do século 16 na França em nada pareciam com com o movimento orgânico cheio de texturas que coloriu a casa dos ribeirinhos. "Acho que é quase normal para as pessoas da cidade impor um estilo no lugar que vão executar o trabalho", disse o artista, que cresceu na zona leste de São Paulo e tomou gosto por pintar o chão — uma das suas grandes marcas — durante a Copa do Mundo de 1986, quando, junto com a molecada da rua, coloriu o asfalto do bairro em que morava.

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As crianças Jhulie e Fernando, o pai, Jorge, e o artista Herbert Baglione trabalhando em conjunto. Foto: Felipe Larozza/ VICE

"Aqui, estou contando muito mais com a experiência. A pintura é resultado de um diálogo meu com as pessoas, com os amigos e com a própria floresta. Não é uma questão de impor o meu estilo", disse, vagarosamente, sentado na ponte de palafitas. "Tem sido uma das melhores experiências que já tive na vida."

Essa foi a terceira vez que o Street River aconteceu. Filho de uma antropóloga e do ícone da música paraense Sebastião Tapajós, o artista Sebá Tapajós é o responsável por arregaçar as mangas e fazer sua galeria fluvial acontecer. Tirou R$ 60 mil do próprio bolso e pediu o apoio de restaurantes, supermercados e de um hotel local pra conseguir bancar a residência dos artistas, que fizeram o trabalho de forma voluntária, sem cachê. "Tenho pessoas que acreditam no meu trabalho. Eles conseguem hospedagem, alguma coisa. Na primeira edição, tive um gasto de R$ 40 mil. E tenho dois CDCs [Crédito Direto ao Consumidor] abertos que estou pagando", diz, antes de interromper a própria fala e se emocionar.

O artista e idealizador do Street River, Sebá Tapajós. Ao fundo, a casa que ele pintou. Foto: Felipe Larozza/ VICE

"O Street River é muito mais do que um festival de street art, é um tratado de responsabilidade social com os povos ribeirinhos pra trazer dignidade a quem vive sem água potável, sem luz", reiterou.

Enquanto os artistas manejavam pincéis e latas de tinta, Sebá e sua amiga, a atriz Priscila Fantin, entregaram 13 filtros enviados pela ONG Waves for Water, que abastecerá 1.300 pessoas por dia com água potável por cinco anos. "São seres humanos que vivem há 10, 20 minutos de Belém e estão esquecidos há mais de 12 anos pelo poder público", lamentou.

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Sebá Tapajós e Dona Dina se abraçando. Foto: Felipe Larozza/ VICE

É a água que pauta, há 17 anos, o trabalho do grafiteiro paulistano Zezão, conhecido por ter pintado infinitas paredes de canais de esgoto e de galerias de águas pluviais. Motoboy antes de engrenar nas artes, ele mal podia imaginar que correria o mundo estampando seus flops azuis e se tornaria um dos maiores nomes da street art nacional.

Quando chegou na casa da família Farias, contou sua história de vida e mostrou imagens do seu trabalho. Apesar de sempre ter enfrentado adversidades na hora de grafitar espaços complexos, como os fétidos canais de esgoto que tanto frequentou, Zezão viu também que a Amazônia não é bolinho nem mesmo prum sujeito de sua estirpe.

Zezão e a família Farias. Foto: Felipe Larozza/ VICE

"Um dos lados da casa é virado pro mangue. Então, tem essa dificuldade de colocar a escada num terreno lamacento", contou. Tal complexidade partia da maré do Rio Guamá. Quando estava cheia, invadia o terreno do "quintal", impossibilitando Zezão de fincar a escada no solo para alcançar a parede externa da casa. "A gente também tem aquele receio de cobra, de ser da cidade e de não manjar. Mas, tirando isso e o calor, que faz a gente entrar no rio de vez em quando, é só alegria."

Arguto, quando soube que havia arraias enormes na água, e que uma ferroada, diziam os locais, botava qualquer ser humano duro de dor e, quiçá morto, Zezão não economizou na precaução: só tomava banho de rio usando tênis, provocando risadinhas nas crianças da família Farias, tão naturalmente amoldadas à Amazônia.

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O artista mexicano Curiot. Foto: Felipe Larozza/ VICE

O único gringo dentro da curadoria era esperado pelos colegas de profissão. "Você já viu o trampo do Curiot?", perguntaram vários deles pra nós, da VICE, logo no primeiro dia de residência.

Atônito com tanta informação nova, o mexicano passou a maior parte da viagem mudo, já que não sabia falar uma palavra sequer em português — ainda que boa parte das pessoas ali desenrolasse bem no espanhol e no inglês. A despeito do imbróglio comunicativo, explicou que seu codinome nada tinha a ver com o pássaro brasileiro, mas sim com o fato de ser um curioso invertebrado.

A família de Rute (com a criança no colo). Foto: Felipe Larozza/ VICE

A todo momento, enquanto era conduzido pelo marujo oficial da viagem, Seu Belinho, o artista mexicano apontava seu celular em direção às casas, plantas e frutas que apareciam. "Me inspirei em tudo que nos rodeia aqui. Quis fazer algo mais natural", justificou, sobre as duas casas que pintou.

Rute, a dona da habitação, temia o resultado final, já que a comunicação com Curiot era difícil e ambos ficavam extremamente tímidos, mas aprovou. "Não sei explicar direito o que significa a pintura, mas achei legal", falou. "Fica mais alegre, né."

Crianças ribeirinhas e seus cães. Foto: Felipe Larozza/ VICE

A arte pautada pela natureza foi o tipo de característica que ajudou na configuração do time montado pelo fotógrafo e curador do Street River, William Baglione. "Pensei em artistas que tivessem o vegetal em seu DNA, que tivessem em seu processo criativo algo a ver com a espiritualidade e pudessem estar abertos a crescer com a experiência de viver em conjunto, diluindo o ego e aceitando até mudar o próprio trabalho em prol da comunidade", frisou. "Então, dadas as dificuldades que me foram passadas, eu precisava montar um time que fosse competente para realizar grandes pinturas."

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No último dia do festival, William foi abordado por duas jovens que prestigiaram o evento e lhe questionaram por que só havia uma mulher entre os artistas selecionados: Tereza, do Acidum Project (que já havia participado da edição anterior). A VICE também o indagou sobre o assunto. "Eu não subestimo ninguém. Mas como posso convidar uma artista e alertá-la das dificuldades sem saber? Eu precisava vir pra cá, realizar esse primeiro", justificou o curador.

O artista Zéh Palito interagindo com o pequeno Victor Hugo. Foto: Felipe Larozza/ VICE

Para ele, que almeja continuar na função que lhe foi dada, "não se pode olhar a edição de 2017 como definitivo", já que o Street River tende a crescer. "A experiência que tivemos aqui é para mostrar que o mundo tem muito a aprender com o Pará", expôs.

Enivo, um dos fundadores da A7MA Galeria, em São Paulo, encarou a residência como um teste, diferente de ficar horas num lifting [elevador hidráulico] para conseguir colorir murais enormes. "Cada um aqui está passando por algum tipo de dificuldade", relatou.

A ribeirinha Dona Margarida. Foto: Felipe Larozza/ VICE

A construção escolhida para que ele pintasse trazia um obstáculo. "Aceitei o desafio de pintar uma casa com as ripas viradas pra fora. Isso dificulta muito o traço. Não estamos usando tanto spray aqui, até por causa da questão ecológica", relatou. A trava criativa afrouxou quando a criançada chegou da escola e passou a ajudá-lo com a pintura.

O rascunho do Seu Jorge que estava porvir. Foto: Felipe Larozza/ VICE

Depois, a pedido de Seu Bebé, morador da residência, Enivo pintou o santo padroeiro da família, ainda que a ideia inicial fosse fazer elementos da natureza, coisas orgânicas. "Mas ele gosta do Seu Jorge, o barco deles chama Seu Jorge, a equipe de som da rapaziada da família chama Seu Jorge. Por isso, vamos homenageá-lo. Não sou uma pessoa religiosa, mas estou nessa busca espiritual. Então, não saí do meu conceito", comentou.

Rimon Guimarães, do Cosmic Boys, pinta a casa de Dona Margarida. Foto: Felipe Larozza/ VICE

Era domingo à noite. O céu já alcançava um azul escuro, quase negro, quando o barco levava de volta ao porto os artistas, recebidos de braços abertos por gente tão simples. Que lhes ofereceram água, açaí, laranjas já descascadas, cafés, abraços e, às vezes, por vergonha ou necessidade, nada, puro silêncio ou o esboço de um sorriso. Estavam todos exaustos, sujos de tinta, suados. O calor do Pará foi denso durante toda a semana. O rio Guamá cintilava à noite, enquanto Sebá, o pai de tudo aquilo que estava acontecendo, voltava pra casa realizado. "Cada um tem uma missão nesse plano terrestre. Acho que fui abençoado pelos povos ribeirinhos pra trazer essa voz que eles tanto mereciam", concluiu. *Os jornalistas da VICE viajaram a convite do Street River

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