Sexo

Porque é que quando tu não queres um compromisso, ele se apaixona?

O que a inversão dos papéis de género pode fazer a uma relação heterossexual.
cachorro quente
Uma pessoa é obrigada a comer só um cachorro? Foto por Annie Spratt no Unsplash.

Dizem-me que esta minha premissa não é generalizável – ou melhor, nada indica que o possa ser. Mas, eu sou teimosa e mantenho-a, porque a vi acontecer a muitas e porque, só comigo, já aconteceu várias vezes. A verdade é que é assim que se constrói a sabedoria popular, com base no costume, por isso foi também assim que eu construí este meu leque (ainda que possivelmente enviesado) de conhecimento sobre relações heterossexuais.

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Diz o povo que queremos sempre o que não podemos ter, que o fruto proibido é o mais apetecido e que quanto mais me bates mais gosto de ti. Assim sendo, faz sentido que isto aconteça nas relações: quando um dá mais o outro dá menos e, quando um pára de dar, o outro quer mais do que alguma vez quis. É um fenómeno injusto da natureza humana, mas está presente nos recantos mais obscuros das nossas mentes, naqueles que escondemos dos outros com a mesma veemência com que omitimos as mensagem que mandamos depois do quinto vodka. É assim mesmo: queremos sempre o que não devíamos querer.


Vê: "O que é que se passa com o amor?"


É a clássica história da mulher solteira. Decides soltar-te dos preconceitos sociais, desta ideia de que a busca pelo casamento é o pináculo e o objectivo derradeiro das relações heterossexuais e que a monogamia é a única resposta certa e lanças-te aos lobos - vais em dates, sacas o Tinder ou começas a sair do Lux com uma companhia diferente a cada fim-de-semana. Seja qual for a tua técnica, deixas-te sucumbir ao pecado social do sexo sem compromisso. Largas as supostas regras de conduta feminina e decides que é só isto que queres, que já não estás para aturar discussões e ciúmes, que não queres dar justificações ou que o teu coração não está ainda pronto para outra. Abres as pernas a este novo mar de possibilidades sem rumo algum, porque a beleza está na viagem e não no destino.

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Até que encontras um que te satisfaz melhor que os outros. Que te faz rir pelo caminho e com quem a manhã de domingo é tão boa quanto o sábado à noite. Decides que com este queres repetir, ir repetindo. Como um novo hobby ou um mau hábito. Explicas ao sortudo que isso não muda nada, que continuas com a certeza de que não te vais apaixonar, de que não queres nada sério, que disto não passa. Dizes-lhe as palavras que te levaram a crer que qualquer homem ficaria feliz de ouvir: “É só um caso. Nada de sério, nada de exclusivo, sem compromisso nem obrigações”.

E não é que, depois de uma vida repleta de desgostos amorosos, de relações falhadas e amores não correspondidos (como é a vida de todos nós), é logo este o homem que se apaixona por ti? Apesar dos avisos, apesar da ausência de compromisso, apesar de nunca lhe teres dito nada sentimental… ele apaixona-se e estraga o caso desprendido que andavas tão feliz por ter encontrado. Porque, lá está, queremos sempre o que não podemos ter. Ele quer-te, mais que nunca e com todas as forças, porque tu não o queres.

Sei que isto é assim porque me aconteceu e porque o vi acontecer e, de cada vez que acontecia, questionava-me como é que as coisas tinham chegado a este ponto. Sempre me perguntei como é que era possível que, com tantas mulheres à procura de um marido e tantas com o coração despedaçado, eu fosse logo das que não querem nem um “Dorme bem” por quem eles se apaixonam. Porque é que os homens não acreditam quando dizemos que não nos vamos apaixonar? Que não queremos, nem vamos querer, uma relação séria?

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Segundo vários estudos sobre sexo heterossexual, o problema começa no princípio: no papel que os homens e as mulheres desempenham na esfera social. O homem é o garanhão, o macho que não chora nem sente, o chefe de família. O que só pensa em sexo e não em amor, o que em tempos antigos podia cometer adultério sem ser apedrejado, o que diz ordinarices bem alto encostado ao balcão da tasca do bairro e que só sai à noite para se safar. A mulher é a inocente, a pura, débil como a hóstia sagrada, que não deve falar de luxúrias, mas sim dedicar-se à busca de marido e da maternidade.

No estudo Casual Sex as ‘not a natural act’ and other regimes of truth about heterosexuality, de Farvid e Braun em 2013, analisa-se a forma como o sexo desprendido é visto socialmente e o impacto que isso tem no mesmo. “É tido como especialmente desejável para os homens, como algo de que eles se gabam de conseguir. Os homens são vistos como garanhões e sortudos, como se estivessem a ganhar alguma coisa, enquanto as mulheres são vistas como se estivessem a dar-lhes parte de si e são, muitas vezes, chamadas de porcas”, lê-se.

E continua: “A sexologia mainstream continua a ser governada pela ideia de que há diferenças biológicas entre homens e mulheres no que toca à vontade de ter relações sexuais e ao modelo reprodutivo que querem seguir”, apesar de já ter sido provado, estudo após estudo, que isso não é verdade. Como bem explica Terri Conley, professora de psicologia e estudos femininos na Universidade do Michigan, na sua Ted Talk, os homens e as mulheres têm igual vontade sexual e estão igualmente dispostos a ter sexo casual, dependendo apenas da proposta que lhes é feita, (no caso das mulheres, deparam-se frequentemente com o medo de que o parceiro não lhes saiba dar prazer ou de serem faladas ou mal vistas).

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Nas comédias românticas, nos contos de fadas, nas telenovelas… estamos rodeadas de histórias em que os homens são representados como engatatões natos, incapazes de controlarem os seus impulsos e pensamentos sexuais e as mulheres como sensíveis, que choram pelo amor não correspondido e pela relação falhada. E essa ideia que, tantas vezes, até nós temos de nós próprias, é também a que os homens têm - “tende-se a perpetuar a noção de que as mulheres são mais relacionais e os homens mais sexuais”, explicam as autoras no mesmo estudo.

Falei com Leonor de Oliveira, psicóloga clínica e doutoranda em Sexualidade Humana na Universidade do Porto - naquele que é o primeiro doutoramento europeu nesta área - que me ajudou a pesquisar e a reflectir sobre esta questão. “A tua experiência, não sendo generalizável, põe em causa os modelos vigentes de masculinidade e feminilidade”, realça a especialista por e-mail. E acrescenta: "Existe também a noção de que as relações monogâmicas são naturais e o sexo casual não, ainda que o que as pessoas parecem procurar no sexo casual seja precisamente uma naturalidade desprendida, apesar de até elas próprias o terem internalizado como não natural”.

Posto em palavras minhas, parece-me que uma mulher, ao vocalizar que aquilo que procura não é uma relação, está a pôr em causa dois modelos sociais - o de que as mulheres não são tão sexuais como os homens e o de que o casamento deveria sempre ser a nossa prioridade. Ao questionar esses modelos, explica-me Leonor, “o que está em causa no que me contas é uma inversão do papel de género”. E salienta: “Estás a comportar-te mais em conformidade com o papel ‘desprendido’ habitualmente atribuído aos homens, em vez de actuares sob as ‘regras do bom comportamento feminino’ de ser delicada, apaixonada e investida na família e descendência”.

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“Uma evolução possível da tua teoria pessoal seria algo como: por ires contra o papel de género, por seres menos ‘domesticável’, acordas neles o movimento contrário do que é, supostamente, o esperado”, reflecte ainda Leonor. E conclui: “De alguma forma, activas a vulnerabilidade deles, que se demonstra pela procura de afecto e de tentarem selar a vossa relação com o compromisso”.

Ou seja, ao ser menos o que se espera que uma mulher seja, confundo-lhes o ego masculino, no sentido em que perdem o rumo daquilo que sempre lhes fizeram acreditar que eles deveriam ser. O que eu senti, na minha experiência pessoal, foi que eles esperavam - secretamente - que fosse tudo só conversa e que, como mulher que sou, iria acabar apaixonada que nem Cinderela à espera de ser salva pelo beijo do amor eterno. E, algures nessa espera pelo amor que nunca chegou, apaixonaram-se eles.

É importante desconstruirmos esta ideia de que o sexo sem compromisso vale menos que o comprometido, assim como é imperativo esbater as noções pré-concebidas sobre o que cada género deveria ou não ser na sociedade. A verdade é que os homens também choram e as mulheres também querem sexo. Só sexo.


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