O brasileiro que criou a maior enciclopédia sobre RPGs para computador
'Lands of Lore'

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O brasileiro que criou a maior enciclopédia sobre RPGs para computador

Felipe Pepe passou quatro anos dedicado ao The CRPG Book Project, que conta a história e evolução do gênero.

Muito esforço, um tantinho de obsessão e bastante nerdice. Essa é a receita do The CRPG Book Project, um livro gratuito sobre a história dos jogos de RPG para computador organizado e escrito em grande parte pelo brasileiro Felipe Pepe. O projeto levou quatro anos para ser concluído e contou com mais de cem colaboradores, inclusive figurões do mercado, como Chris Avellone, Ian Frazier, Tim Cain, entre outros.

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O livro traz artigos e dados de jogos que ajudaram a definir o que se entende como RPGs para computador hoje (o gênero costuma ser chamado de CRPG em inglês), desde os mais obscuros até hits como Dark Souls e The Witcher 3. Ao longo de 528 páginas, são citados 418 jogos e resenhados 298 — dos quais, em um exercício de jornalismo investigativo (contei no índice), percebi que já joguei 53.

Felipe foi além: ele jogou tudinho. Mas antes de você dar uma de doido e inventar de fazer a mesma coisa, saiba que ele fez isso para que você não precisasse. Para entender um pouco mais do projeto, troquei uma ideia por Skype com ele, que mora no Japão.

'Baldur's Gate' foi um ponto de entrada para esse mundo nos anos 90.

VICE: Como começou o projeto do CRPG Book?
Felipe: Eu participo de um fórum chamado RPG Codex faz 11 anos. Em 2014, fizemos uma lista com os Top 70 RPGs. Eu visualizada os dados mas ficava com uma dúvida: "Tá, o Planescape [Torment] é o melhor, mas por quê?". Além disso, por ser um ambiente muito elitista, não tinha Diablo, o que é meio absurdo. Pensei, beleza, vamos fazer uma versão maior disso, inclusive com jogos que o Codex não gosta, jogos históricos, importantes. Na época, eu tinha acabado de comprar o Strawberry Bricks Guide to Progressive Rock, minha outra paixão, então acabei copiando o modelo, inclusive a lista de recomendações e joias obscuras no final.

E aí você encabeçou sozinho e foi convidando os colaboradores?
Tentei fazer colaborativo, selecionei uma galera do Codex, criei grupo e editores. Na primeira semana, começaram as brigas: o que é um RPG, o que não é, esse não deveria entrar, o certo seria focar nos clássicos. Percebi que se ficasse assim, eu iria abandonar. Aí falei que isso seria um hobbie meu, para fazer jeito do jeito que queria, na minha velocidade, demorasse o quanto demorasse. Centralizei toda cadeira, escolhia um jogo, achava alguém para escrever sobre ele, editava o review e colava no layout.

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Como foi achar para achar colaboradores?
As pessoas mais acessíveis eram os nomes famosos. Esses caras amam o que fazem. O Chris Avellone [que trabalhou em jogos como Fallout 2, Planescape: Torment, entre outros], por exemplo, topou na hora escrever sobre o jogo favorito dele, o Wasteland original. Achar informação e ajuda sobre hardwares antigos e computadores japoneses foi muito mais difícil. Nós fóruns específicos sobre esses temas, eu fazia perguntas e diziam que aquilo já havia sido respondido ou "You have to do the legwork" [algo como "você precisa se esforçar"]. Isso é ridículo, juntam todo esse conhecimento só para posar de foda. Eu fiz o livro justamente para que as pessoas não precisassem correr atrás disso de novo.

Quais foram os critérios para a escolha dos jogos? Por que você parou em 2015?
Foram jogos históricos e importantes, jogos populares e curiosidades. Por exemplo, Questron [de 1984] não foi muito expressivo e nem influente, mas foi um dos jogos mais populares dos anos 80. No quesito curiosidades, foi uma coisa completamente pessoal. Tem desde Descent to Undermountain [97], que a Interplay queria que fosse o grande lançamento dos anos 90, mas é completamente buggado, um dos piores RPGs de todos os tempos. Também menciono o Star Saga: One [88], um jogo de tabuleiro que usa o computador para ajudar. Sobre 2015, foi um prazo que me dei para acabar. Cada ano que passava saiam 20 RPGs novos. Além disso, quando me mudei para o Japão, vendi o computador bom e trouxe um laptop sem placa de vídeo. Mas a ideia é daqui cinco anos soltar uma versão nova, até 2020. Aí vou esticando.

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Já rolaram umas críticas?
Muita gente acha um absurdo não ter jogos de consoles. Recebi mais de 50 emails dizendo que precisa ter Chrono Trigger, se não o livro está errado!

'Baldur's Gate'.

Você escreve bastante sobre a necessidade de preservação da memória de jogos eletrônicos como um meio, um tema bastante presente no livro também. Por quê disso?
Eu acho importante para que a indústria, jogadores, todo mundo, tenham um frame de referência. Falta ponte. Você tem um jogador médio que jogou os últimos Elder’s Scrolls mas nunca Morrowind, jogou Fallout 3 e 4, mas nunca os anteriores. Do outro lado, os radicais que acham que os Fallouts novos são um lixo ou historiadores tentando restaurar detalhes do botton promocional usado no lançamento do Super Mario, enquanto a maioria das pessoas nem jogam nada lançado há dez anos. Eu quero fazer essa ponte, porque acho que informação ajuda a ter jogos melhores, imprensa melhor, consumidor mais informado. Acaba se perdendo muita coisa de qualidade. Um jogo novo, como Kingdom Come: Deliverance, tá R$ 149 no Steam. Por essa grana, você joga uns 50 jogos do passado, com um hardware mais antigo inclusive. Sua grana rende mais, você tem acesso a experiências mais diversas.

Você jogou tudo que está no livro?
Todos os jogos. O artigo do PLATO [um computador dos anos 60] quem escreveu fui eu. Inclusive os massive multiplayer online (MMO) tem esse massive na frente por que antes já existiam multiplayer, aqueles jogos do PLATO [todos da década de 70] eram multiplayers. Juntei um grupo e jogamos.

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No começo do livro vocês faz uma observação para as pessoas procurarem se divertir acima de tudo.
Quando comecei a fazer livro, tem outra pessoa muito grande, The CRPG Addict, um cara que joga todos os jogos em ordem cronológica, um monstro, oito anos fazendo isso. Ele zerou muito jogo insuportável, fez 120 horas em coisas que depois de duas eu achei muito chato. Então muita gente via ele fazendo isso, ou ia atrás do meu livro, e dizia que ia jogar tudo em ordem cronológica. Não, não faça isso pelo amor de Deus! Mais importante é se divertir, tentar forçar só piora. Joga um pouquinho, vê se curte. Curtiu, beleza.

Mas como fazer essa ponte então, convencer alguém de 16 anos a encarar um interface mais antiga, alguma coisa diferente?
Em muitos casos a interface só parece complicada. O Legend of Grimrock [lançado em 2012], que vendeu mais de um milhão de cópias, tem uma interface igual ao Dungeon Master de 87. Eu acho a interface do Fallout 1 e 2 melhor do que a do 3 e 4, que tem ficar dando scrollzinho nos menus. Maioria dos jogos é uma questão mais de apresentação, de colocar na cabeça das pessoas que aquilo ali é jogável. Se você ver Final Fantasy VII, a interface é horrível, mas se você tá jogando, vê o Cloud cabeçudo ali de boa, se entrar no clima que o jogo vai ser assim, funciona. Mais difícil RPG antigo é entrar no clima. Agora, nos casos em que a interface não tem mouse, é bem mais difícil, o ideal é um remake.

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'Lands of Lore' foi o primeiro RPG AAA e tinha até a voz do Patrick Stewart.

Em maio do ano passado, você escreveu um artigo bastante crítico da imprensa brasileira que cobre games. Teve muito feedback negativo?
Lógico que quando você solta uma coisa dessa, dá uma fuçada. Mas o que chateou foi que não teve nenhum feedback. Ou a galera falava que tava 100% certo, ou falava que eu não sabia o que tava falando. Diziam assim, "Ele tá no Japão e não sabe a situação do Brasil". Eu tinha chegado aqui havia 6 meses só. Ficou um negócio polarizado, sem diálogo. Eu adoraria um artigo em resposta.

Nesse texto, você chama atenção para falta de maior material específico em português, assim como falta de atenção ao nosso mercado. Ainda assim, o The CRPG Book só está disponível em inglês e não nenhum jogo brasileiro, como, por exemplo, o Knights of Pen and Paper. Por quê?
Se eu colocasse o Knights of Pen and Paper seria apenas porque é brasileiro. No cenário internacional, em uma lista de 400 jogos expressivos, não entraria. Na real, ele é o único jogo brasileiro de maior expressão, tem também o Dungeonland, uma espécie de Diablo cooperativo que até pensei em colocar, mas no fim estariam lá só porque eu sou brasileiro. Quanto à tradução, o maior problema é que o livro é gigantesco, se eu fosse traduzir um artigo por dia, seriam mais um ano e meio de trabalho diário. Não é viável. A grande notícia é que já estão rolando traduções para chinês, russo, alemão, espanhol e, no meio de fevereiro, uma pessoa me procurou para começar a fazer em português. Tem outro fator também, dos jogos no livro, acho que uns 5% tem tradução em português. Aliás, esse é um grande problema de RPG no Brasil. A geração que está produzindo hoje, não cresceu jogando isso, não era acessível. O Brasil é conhecido por jogos de plataforma, sidescroll, não tem texto. Pouca gente estava jogando Baldur’s Gate por causa do inglês.

Eu aprendi inglês com Baldur’s Gate.
Tem uma coisa que eu falo para os estrangeiros e eles acham estranho. Um jogo em inglês e japonês era a mesma merda. A mesma coisa, você não conseguia ler. Um RPG complicado como Baldur’s Gate não tem como. Talvez a partir de agora fique mais acessível, com as traduções mais comuns, começa a fazer parte do DNA brasileiro. É importante.

Felipe, para acabar, sugere cinco jogos menos conhecidos que valem a pena encarar.
Melhor jogo dos últimos 10 anos, tirando Dark Souls, se chama Tales of Maj’Eyal [2012]. É um roguelike acessível, explicativo e muito divertido. Outro muito interessante é Battle for Wenoth [2003, gratuito, baixe aqui], tem tradução em português e vários módulos de histórias. Também acho Drakensang: River of Time [2010], que é como um Dragon Age europeu, muito legal de jogar. Way of the Samurai 4 [2011], apesar de ser mais ou menos um RPG, também é maravilhoso, com escolhas dinâmicas. Você não aperta um botão para escolher uma coisa, você vai lá e faz. Para finalizar, Lands of Lore [1993] foi o primeiro RPG AAA, com gráficos maravilhosos, um esforço dos desenvolvedores para que fosse fácil de jogar, interface limpa, todos os personagens têm voz, e tem inclusive a voz do Patrick Stewart, o ator que fez o Professor Xavier e o capitão Picard. É um jogo dos anos 90 lindo, acessível e interessante.

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