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Mudanças no Bilhete Único acendem alerta sobre coleta indevida de dados

Restrições empurram usuários para cartões que exigem informações pessoais. Para pesquisadores, medida pode implicar em comércio de dados de deslocamento de pessoas mais pobres.
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Foto: Divulgação

Desde o final de janeiro, quem usa o Bilhete Único anônimo no transporte público de São Paulo se deparou com uma novidade meio desagradável. O limite de carga máximo foi reduzido de R$ 350 para R$ 43, o equivalente a dez passagens. O movimento segue uma tendência iniciada em junho de 2018, quando passou a ser obrigatório fazer um cadastro para comprar um novo bilhete. De acordo com a SPTrans, que gere o sistema, a justificativa é reduzir o número de fraudes. Para pesquisadores, porém, há um problema mais fundo nessa estratégia. Segundo eles, estamos presenciando um aumento excessivo de coleta de dados dos usuários.

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Há base para isso. No começo do seu mandato como prefeito da capital, ainda em 2017, o hoje governador João Doria anunciou a venda da base de dados dos usuários do Bilhete Único durante uma viagem à Dubai. Com a repercussão negativa, ele voltou atrás. Em seguida, quando discutia-se a privatização do Bilhete Único como um todo do final daquele ano até o começo de 2018, um dos grandes chamarizes era o acesso a esse banco de dados. O projeto não foi para frente, mas ainda está anunciado no site da Secretaria de Desestatização e Parcerias da Prefeitura de São Paulo.

“Esses dados de mobilidade urbana geram um tipo de perfilização muito atrativo para o mercado. O deslocamento é indicativo de empregabilidade, se está empregado ou não, se são funções mais diurnas ou noturnas, regularidade habitacional, até mesmo se está dormindo em casa”, afirma Rafael Zanatta, advogado e doutorando no Instituto de Energia e Ambiente da USP. “É altamente discutível se todo mundo é obrigado a entrar nessa.”

Em nota, a SPTrans afirmou que “as informações do usuário são acessadas pelos técnicos da SPTrans exclusivamente para a gestão dos serviços relacionados ao Bilhete Único”. Segundo a companhia, “não há nenhum tipo de cessão e/ou venda de informações deste banco de dados para outros órgãos públicos, entidades de capital misto ou iniciativa privada”.

Ainda assim, não há qualquer termo de privacidade como as informações são geridas e armazenadas no sistema, apenas o aviso de que ao aceitar o cadastro para fazer o cartão o usuário aceita a inserção dos seus dados no banco.

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O limite na recarga de R$ 43 vale para todos os bilhetes anônimos e para aqueles emitidos antes de 2013 (fica o aviso: quem tem mais do que esse valor em cartões do tipo precisa gastar até o dia primeiro de junho).

Hoje há duas opções para adquirir um bilhete novo: a primeira é comprar um nos postos de atendimento da SPTrans por R$ 25,80 (dos quais R$ 21,50 são créditos). É preciso informar nome e CPF e não há foto. A segunda é pedir gratuitamente no site do órgão e retirar nos mesmos locais. Nesse caso, os dados informados são mais amplos e há foto.

Mas um decreto publicado pela prefeitura no sábado, dia 23, vai mudar esse cenário daqui a alguns meses. De acordo com o texto, em 90 dias — ou seja, no dia 24 de maio — a SPTrans cessará a comercialização dos bilhetes sem nome e foto. A partir de então, só poderá utilizar um novo Bilhete Único estampado com uma bela foto do dono.

No mesmo documento, também está disposto que “os cartões de Bilhete Único não personalizados e sem registro ou cadastro prévio de informações do titular serão, a critério da SPTrans, gradativamente descontinuados, podendo os créditos remanescentes ser transferidos para outros cartões, nos termos de portaria a ser editada pela SMT”. Em outras palavras, a tendência é que você não possa usar um Bilhete Único anônimo (ou pelo menos sem sua foto e nome) por muito tempo.

Mesmo para quem deseja aproveitar bilhetes anônimos ou mais antigos enquanto ainda é tempo vai encontrar um desafio pela frente. “Você tem a possibilidade de andar com esses R$ 43, mas há uma modulação de comportamento, você condiciona a pessoa há um desincentivo tão grande, com filas, que elas não vão fruir esse direito”, afirma Zanatta.

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“É meio engenharia social. Ninguém quer pegar fila toda semana”, diz Bruno Bioni, um dos fundadores do Data Privacy Brasil. “Então você constrange a pessoa a adotar determinado tipo de comportamento que talvez ela não adotaria se tivesse outras outras opções com o mesmo tipo de conveniência.”

Sob essa ótica, a decisão da SPTrans teve sucesso. A atendente de um dos guichês de recarga do bilhete único da Estação Clínicas do Metrô conta que, desde o final de janeiro, o movimento se tornou mais bem intenso. “Antes a demanda flutuava, tinha horas do dia que a gente ficava tranquila. Agora é fila o tempo inteiro”, conta. “O pessoal vinha e enchia o cartão para o mês, agora é de pouquinho.”

Por outro lado, a procura pelos Bilhetes Únicos registrados com foto e nome — os gratuitos — também aumentou de maneira significativa. De acordo com uma matéria do Agora, passam de quatro horas em alguns dos postos de atendimento da SPTrans.

“Enfim, é bastante problemático porque segue uma tendência em transformar privacidade e proteção de dados em bens de luxo”, diz Bioni. “No final do dia, as pessoas de menor capacidade de renda que usam o transporte público vão ter padrões de deslocamento mapeados. Quem não usa, não necessariamente vai ter os mesmos padrões mapeados. Gera um reforço de desigualdades e é super problemático do ponto de vista que a proteção de dados é um direito universal.”

No mesmo decreto publicado no dia 23, a prefeitura também prevê a possibilidade de usar Bilhetes Únicos virtuais via celular. Mais conexão, mais coleta de dados. É o preço da conveniência.

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