Para autor de livro sobre o punk, o rock tem que voltar a pensar fora da caixa

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No final dos anos 1990, o jornalista Michael Azerrad assistia a uma série documental sobre a história do rock na televisão. O episódio sobre punk rock da série começou, naturalmente, falando sobre Ramones, Sex Pistols e seguiu falando de toda a cena pós-punk e new wave de Nova York. Eis que, de repente, o documentário pula do Talking Heads diretamente para o Nirvana. “Pera aí, eu pensei, e o Black Flag, Hüsker Dü, Dinosaur Jr, Fugazi e todo o resto de bandas muito boas, muito influentes? E toda a década de 80?”, fala Azerrad, em entrevista por e-mail. “Foi assombroso que eles pularam uma década inteira de ótimas bandas – as bandas que inspiraram e tornaram possível que o Nirvana e muitas outras bandas da próxima geração existissem.”

Com aquilo na cabeça, o jornalista – que já tinha escrito uma biografia sobre o Nirvana, intitulada Come As You Are: the Story of Nirvana – matutou que a história daquelas bandas, tão escondidas sob a poeira que o status mainstream do rock levantou nos anos seguintes, precisava ser contada. E a própria força que elas tiveram pra fazer tudo com as próprias mãos foi o que levou Azerrad a pegar a tarefa pra si e, durante três anos, escrever o que mais tarde se tornou um clássico do jornalismo musical, Our Band Could Be Your Life, lançado em 2001. Neste mês, o livro ganhou uma tradução em português pela primeira vez, publicado pela Powerline Music & Books sob o nome Nossa Banda Podia Ser Sua Vida.

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Em entrevista por e-mail, Azerrad falou sobre o processo de escrever o livro, o que mudou no jornalismo musical desde que ele foi lançado e os formatos conservadores que o rock assumiu desde então. Leia a entrevista completa abaixo.

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Noisey: Como você decidiu sobre quais bandas escreveria? Por que elas foram as mais importantes?
Eu sabia que eu não conseguiria escrever sobre toda a comunidade indie americana dos anos 80 – ela era muito grande pra isso. Então eu decidi escolher algumas bandas que representaram vários aspectos chave da comunidade: cidades, estilos musicais, gravadoras, maneiras de conduzir a carreira, etc. Então não eram necessariamente as mais importantes mas as mais representativas, do jeito que eu via. O Black Flag representa o hardcore da Califórnia e o nascimento da SST; o Big Black representa a cena de Chicago e a Touch and Go Records; Mudhoney representa o grunge, Seattle e a Sub Pop Records, e por aí vai. E eu os coloquei numa sequência que eu esperava que fosse sugerir uma progressão do que estava acontecendo em 1981, o início do período de tempo do livro, para 1991, que é o fim do período de tempo do livro.

O livro começa em 1981 porque muitas bandas chave começaram naquele ano, ou pelo menos tomaram sua forma mais reconhecível ou lançaram seus primeiros discos. Algo estava acontecendo naquele ano. E, claro, o Ronald Reagan assumiu a presidência dos Estados Unidos em 1981, o que foi uma espécie de inspiração negativa pra muito da cultura underground que se seguiu. E 1991 foi o ano que o Nevermind foi lançado, o que catapultou a cultura indie ao mainstream, então parece um ponto final lógico. E aconteceu de serem exatos 10 anos, então funcionou muito bem.

Como foi o processo de apuração do livro? Você aprendeu muita coisa que não sabia antes?
A primeira pessoa que entrevistei para o livro foi Mike Watt do Minutemen, num quarto de hotel em que eu estava hospedado perto de sua cidade natal em San Pedro, California. Conversamos por muitas horas, ao longo de três dias. E o espírito de Watt, assim como o espírito do Minutemen, meio que ecoa ao longo do livro. Quando outras pessoas souberam que eu falei com Watt, eles perceberam que o projeto era bom, e concordaram em falar comigo. E eu continuei entrevistando pessoas, viajando pra Los Angeles, Seattle, Chicago, Washington, DC, Austin, Minneapolis, Boston, Massachusetts, e por aí vai, trocando de fitas cassete e falando com as pessoas envolvidas. Há mais de cem entrevistas no livro.

E sim, tinha muita informação que eu não sabia antes. Quando eu entrei no projeto, eu sabia que teria muita informação que eu não sabia, mas não tinha ideia que seria tanta. Foi um processo de aprendizado muito grande e meio assustador, porque o projeto continuava se expandindo em direção ao horizonte e parecia não ter fim. Mas eu continuei – inspirado, como eu disse, pelas pessoas sobre quem eu estava escrevendo – e, eventualmente, o fim chegou à minha vista. E isso aconteceu depois de três anos fazendo nada além do livro, dia e noite, todos os dias.

Faz 17 anos que você publicou Nossa Banda Podia Ser Sua Vida . Você olha para o livro de forma diferente hoje?
Quando eu publiquei Nossa Banda Podia Ser Sua Vida, eu acho que fiquei mais aliviado do que qualquer coisa. Foi exaustivo de se fazer. O livro teve algumas críticas muito positivas, incluindo uma de um crítico muito severo e muito bom chamado Robert Christgau, então eu fiquei muito orgulhoso disso. Mas as vendas foram bem devagares – Nossa Banda Podia Ser Sua Vida foi publicado logo antes do 11 de setembro de 2001. Minha turnê do livro estava programada pra começar alguns dias mais tarde, em Chicago. Então Nossa Banda ficou um pouco perdido entre o luto, a confusão e a raiva daquela época, e eu meio que vejo o livro nessa forma, mesmo que ele seja sobre eventos que aconteceram 10, 20 anos antes. Mas, por volta de um ano depois, as vendas misteriosamente aumentaram. Eu não sei por que, mas o livro pegou no tranco e tem sido impresso desde então.

A diferença entre quando eu publiquei o livro e agora são muitos anos de pessoas vindo falar comigo em shows e dizendo, “acho que você já está cansado de ouvir isso, mas…” e me contando o que o livro significou pra eles. E eu faço com que eles tenham certeza que eu nunca, nunca vou me cansar de ouvir isso. É muito emocionante saber que algo que eu fiz inspirou pessoas que eu nunca conheci. Essa não era a minha intenção quando escrevi o livro – eu só achava ridículo que aquelas grandes bandas estiveram sendo ignoradas pela história padrão – mas aconteceu, e é incrivelmente comovente.

Neste momento, estou sendo lembrado do legado contínuo do livro e das bandas nele – haverá uma versão audiobook de Nossa Banda Podia Ser Sua Vida. Eu lerei a introdução e o epílogo, mas músicos e outras pessoas notáveis que amam o livro vão ler os capítulos sobre bandas que os inspiraram. Jeff Tweedy lerá o capítulo sobre o Minutemen, Colin Meloy lerá o do Hüsker Dü, Fred Armisen lerá o do Butthole Surfers, e nós anunciaremos o resto nos próximos meses. Muitas pessoas realmente ótimas estão envolvidas. Vai ser publicado no dia 21 de maio e mal posso esperar.

As bandas sobre as quais você escreve no livro não tinham muita cobertura da imprensa na época. Você acha que nós, como jornalistas de música, temos a responsabilidade de pesquisar bandas e movimentos que não estão recebendo tanta atenção quanto deveriam?
Eu acho que alguns jornalistas de música devem cobrir a música underground, mas nem todos eles precisam. Alguns jornalistas de música podem cobrir música mainstream e tudo bem. Todo mundo tem sua própria especialidade jornalística. Mas eu acho que é muito importante escrever sobre coisas que não estão sendo forçadas a nós por grandes corporações, para mostrar que existem alternativas ao mainstream. Jornalistas que fazem isso em qualquer área estão prestando um ótimo serviço ao mundo.



O que mudou no jeito que o jornalismo musical é feito desde que você começou?
A internet. Ela coloca tanto a pesquisa quanto a música na ponta dos seus dedos. Graças à internet, todo mundo é crítico de música. Se você vai a um show e twitta sobre ele, você é um crítico de música. O que, em algum nível, é bem legal – escrever sobre algo significa que você está se envolvendo com aquilo num nível mais profundo. Mas também significa que há muita informação e opinião voando por aí. E nem toda informação é precisa, em parte porque ser jornalisticamente sólido é uma habilidade que nem todo mundo possui, ou mesmo percebe que não possui. É uma arte moribunda até mesmo entre os profissionais. Isso é parte de todo o fenômeno de “fake news”.

Eu não sei exatamente qual é a situação nos EUA, mas, pelo menos no Brasil, o rock se tornou algo conservador, e os roqueiros estão se tornando mais e mais intolerantes (por exemplo: muitos fãs de Pink Floyd ficaram perplexos porque Roger Waters fez uma declaração contra nosso presidente eleito de extrema direita, Jair Bolsonaro). O que você acha que tornou essa mudança possível? Como o rock pode resistir como uma forma de arte progressista nos dias de hoje?
É engraçado que alguém tenha ficado surpreso com o que Roger Waters disse sobre Bolsonaro – Waters tem sido politicamente progressista por décadas. Será que aqueles fãs prestaram atenção ao que ele estava dizendo no The Wall em 1979? Isso é tão estranho para mim.

Eu me pergunto se o rock ainda pode ser um bom veículo para a resistência. Está ficando meio antiquado ver um grupo musical com guitarras e bateria, então o rock se tornou meio conservador nesse sentido, e não progressista. Embora tenha sido essa a gênese do movimento punk: ele queria que o rock voltasse ao que costumava ser, e isso é na verdade uma ideia conservadora, mas o movimento acabou tomando formas muito originais.

Uma razão pela qual o rock foi uma forma progressista por um tempo foi que ele democratizou a produção musical. Quase qualquer um poderia comprar e tocar uma guitarra. E o rock faz um barulho alto com poucas pessoas, o que o torna mais econômico do que uma big band de jazz ou uma orquestra. Mas, agora, sintetizadores e samplers tornaram a música ainda mais democrática – mais barata, mais fácil de aprender, mais portátil – então talvez essa seja a verdadeira música do povo, agora.

O famoso teórico cultural americano Marshall McLuhan disse: “o meio é a mensagem”. Talvez o meio do rock tenha se tornado um meio de conservadorismo. Veja uma banda como Greta Van Fleet – a NME os chamou de “Led Zeppelin pós-millennial”. Isso não é progresso. A coisa mais progressista que você pode fazer é “pensar fora da caixa”. Se o rock conseguir fazer isso de novo, fazer sons fora da caixa para inspirar as pessoas a pensar fora da caixa, então talvez ele possa ser uma forma progressiva novamente. Eu acho que bandas americanas como Deerhoof e Dirty Projectors conseguem fazer isso. E adoraria ouvir algumas bandas brasileiras que fazem isso. Mas, como eu disse anteriormente, você não quer viver a mesma coisa de novo e de novo, e é realmente emocionante ouvir novos tipos de música, que estimulam novas partes da sua mente, e abordar esse tempo em particular, com a sua própria nova política e tecnologia e tudo o mais.

Quais são seus livros sobre música preferidos?
Rock Encyclopedia — Lilian Roxon
Hit Men — Fredric Dannen
Mystery Train — Greil Marcus
Can’t Stop Won’t Stop: A History of the Hip-Hop Generation – Jeff Chang
Dino: Living High in the Dirty Business of Dreams — Nick Tosches
The Rest Is Noise: Listening to the Twentieth Century — Alex Ross
The True Adventures of the Rolling Stones — Stanley Booth
Rip It Up and Start Again — Simon Reynolds
Noise: The Political Economy of Music — Jacques Attali
Please Kill Me — Gillian McCain e Legs McNeil
England’s Dreaming — Jon Savage
African Rhythm and African Sensibility — John Miller Chernoff
Our Noise — John Cook com Laura Ballance e Mac McCaughan

E vários outros que eu estou me esquecendo!

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