Um opioide popularizado por um médico nazista está assolando a África

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Um opioide popularizado por um médico nazista está assolando a África

O ex-diretor da agência de narcóticos da Nigéria estimava que, em 2016, sete em cada dez adolescentes estavam usando drogas como o tramadol.
Lia Kantrowitz
ilustração por Lia Kantrowitz
MS
Traduzido por Marina Schnoor

A crise dos opiáceos continua a devastar EUA e Canadá, com diversas manchetes aparecendo diariamente. Menos conhecida é a crise dos opiáceos na África, que apresenta um vilão farmacêutico diferente. Muitos africanos se tornaram dependente de um analgésico chamado tramadol, mais fraco que a oxicodona, mas que ainda pode deixar os usuários bastante intoxicados. O abuso de opiáceos na América do Norte é altamente regulado, mas na África quase qualquer pessoa pode conseguir tramadol — e não só de traficantes de rua, mas de farmacêuticos legítimos.

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E há outra questão perturbadora: na África, a população afetada é composta em grande parte por crianças.

“É mais fácil perguntar na escola quem não está tomando kobolo”, disse uma professora de música do Gabão ao Capital News do Quênia, se referindo à gíria para tramadol, acrescentando que seus estudantes começam a tomar a droga aos 12 anos de idade. O ex-diretor da agência de narcóticos da Nigéria estimava que em 2016 sete em cada dez adolescentes dos estados do norte estavam usando drogas como o tramadol.

A Nigéria é de longe o país mais populoso da África, e o problema é particularmente crítico lá. “Uns três anos atrás, comecei a notar muita gente vindo aqui pedir o remédio sem receita, especialmente jovens, meninos e meninas”, disse Oluwatosin Fatungase, farmacêutico nigeriano e conselheiro da juventude, a VICE. “Fiquei imaginando 'Por que tanta gente está procurando tramadol?'”

As autoridades africanas tendem a se focar na maconha, a droga tradicionalmente mais usada na maioria dos países do continente, onde muitas vezes ela cresce na natureza. Drogas como cocaína podem ser difíceis de achar, e são caras quando encontradas. Mas comprimidos de tramadol — que são produzidos aos montes em fábricas indianas e distribuídos na África através de canais legais e ilegais — são incrivelmente baratos, cerca de 30 centavos por uma cartela com dez. “Quem distribui drogas quer algo barato, que possa cruzar fronteiras facilmente, que tem um perfil de efeito amplamente desejável e que dá lucro rápido, com pouco risco”, diz o especialista em vício da Inglaterra Adam Winstock, que comanda a empresa de pesquisa Levantamento Global de Drogas. “O tramadol atende todos esses requisitos.”

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Os jovens gostam do tramadol porque ele é discreto (você não precisa fumar), e pode ser tomado entre as aulas. “Se você pergunta aos garotos por que eles usam a droga, e eles dizem 'para chapar', 'para trabalhar mais tempo' ou 'para transar por mais horas'”, Fatungase disse a VICE. “Mas eles não estão vendo os efeitos colaterais. Eles podem entrar em coma e morrer. É muito triste e alarmante.”

“O problema, na minha opinião, vai além da epidemia de fentanil que estamos testemunhando na América do Norte”, disse Jeffrey Bawa, oficial do Programa Sahel do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, a CNN ano passado. “A diferença é que essa crise está afetando os países mais vulneráveis do mundo.”

Na África, o tramadol está causando muitas mortes, overdoses e destruindo vidas, além de ajudar a financiar o ISIS. (Acredita-se que essa é a droga favorita dos combatentes do Boko Haram.) O problema é exacerbado porque os africanos geralmente não têm acesso à naloxona —– o antídoto que pode reverter a overdoses de opiáceos. A crise deslanchou tão rápido que as estatísticas de mortes pela droga ainda não estão disponíveis, nem mesmo na organização de Bawa, que geralmente é a principal autoridade sobre abuso de drogas no mundo. “Não temos informação suficiente para responder suas perguntas”, disse Hélène Moussou, uma das representantes da África Ocidental e Central. “Entre em contato de novo no final de novembro, começo de dezembro.”

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Mas as provas são esmagadoras. No Egito, em março de 2017, quase 70% das pessoas em reabilitação foram internadas por causa do tramadol. Nos Camarões, o nível de vício pode ser entendido através de uma história bizarra sobre medicina natural: em 2013, cientistas acharam que tinham descoberto que uma planta chamada Nauclea latifolia produzia tramadol naturalmente. Em vez disso, eles descobriram que os agricultores estavam usando tanto a droga, e dando isso pro gado — para ambos trabalharem mais sob o sol forte — que os restos iam pro solo e eram absorvidos pelas plantas.

O tramadol foi desenvolvido no começo dos anos 60 por um cientista chamado Kurt Flick, da empresa farmacêutica alemã Grünenthal. Mas a droga só foi introduzida no mercado como analgésico em 1977, por outro químico da Grünenthal, Ernst-Gunther Schenk, que acreditava que o tramadol era menos viciante que os opiáceos tradicionais.

Durante a Segunda Guerra Mundial, Schenck trabalhou como médico da S.S., e se tornou parte da realeza nazista. Ele estava no bunker com Hitler e Eva Braun até o fim, antes de ser capturado pelo Exército Vermelho. Acreditava-se que ele tinha testado uma “salsicha de proteína experimental” em campos de concentração, matando muitas pessoas no processo, mas ele nunca foi acusado de um crime de guerra, apesar de ter sido proibido de praticar medicina. Mesmo assim, ele conseguiu um trabalho na Grünenthal e continuou morando na Alemanha.

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Quanto às suas afirmações de que tramadol era seguro, muitos concordaram. A droga só entrou pra lista oficial de narcóticos dos EUA em 2013, ainda assim como uma droga tipo IV (“baixo potencial de abuso”). O comitê de drogas da Organização Mundial de Saúde recomentou que o tramadol continuasse sem regulamentação internacional, então logo ele estava prontamente disponível para uso médico legítimo na África, onde os pacientes têm pouco acesso à medicação para dor. Mesmo quando relatos sobre vício na África surgiram, os consultores do comitê mantiveram sua posição.

“Não estamos reconsiderando nossa decisão”, disse Marie Nougier, chefe de pesquisa e comunicações do International Drug Policy Consortium, pra VICE. Ano passado, o grupo recomendou formalmente que o tramadol não fosse listado oficialmente como droga.

Nougier continuou: “Listar o tramadol como droga na África provavelmente teria um impacto muito limitado no uso, mas criaria um enorme mercado negro sem controle para a substância, e teria um impacto significativo na disponibilidade do tramadol para uso médico”.

Os governos africanos também não sabem exatamente como abordar o problema. “O silêncio das autoridades de saúde é ensurdecedor”, disse o diretor de um hospital público no Gabão ao Daily Nation do Quênia. A Nigéria já apreendeu milhões de comprimidos, e prometeu uma grande campanha de conscientização sobre a droga.

Enquanto isso, a epidemia de tramadol continua a devastar as populações jovens do continente. E mesmo que a droga muitas vezes seja retratada como um lubrificante social, é bem possível que esteja servindo para outra função. Adam Winstock, do Levantamento Global de Drogas, sugere que as altas taxas de pobreza e outros problemas sociais pela África deixaram milhões de jovens com trauma e até transtorno de estresse pós-traumático, e que esses jovens podem estar se voltando para o tramadol para lidar com isso. “Muitos pacientes descrevem os opiáceos como o melhor antidepressivo do mundo”, ele diz. “Como estar enrolado numa bola de algodão emocional.”

Ben Weshoff é autor de um livro sobre fentanil e a crise dos opiáceos, que sai em breve pela Grove/Atlantic.

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