A representação fidedigna do jovem trabalhador operário do Brasil. A inexistência da relação entre patrão e empregado. Angústias, melancolia, falta de um propósito de vida tomada pela urgência e necessidade de trabalho por sobrevivência. Um mundo que não ouve o clamor dos seus, pois está encoberto por urgências superficiais. Essa é a realidade retratada no filme Arábia.Cristiano, vivido por Aristides de Sousa, é um operário de uma antiga fábrica de alumínio em Ouro Preto, sudeste de Minas Gerais, onde sofre um acidente de trabalho. O jovem André (Murilo Caliari) ajuda a tia de Cristiano a socorrer o vizinho acidentado. Por curiosidade, o garoto encontra um caderno que narra os relatos das andanças de Cristiano – numa perspectiva pessoal sobre suas relações familiares, amistosas, de trabalho, crime e sentimentos –, carregados de melancolia e solidão.
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O filme chega nas telonas nacionais no dia 5 de abril, trazendo consigo os prêmios de Melhor Filme, Ator, Prêmio da Crítica, Melhor Montagem e Melhor Trilha Sonora do 50ª Festival de Brasília e prêmios dos festivais internacionais que rolaram em 2017.
Na mesma sexta, encontrei Affonso Uchôa e João Dumans, roteiristas e diretores do filme. Começo questionando o fato de o longa partir para o circuito de exibição nas salas comerciais com os prêmios conquistados. João conta que mesmo sido premiado como Melhor Filme no festival brasiliense, o que deu mais orgulho foi ver Aristides, carinhosamente chamado por Juninho, ganhar como Melhor Ator. “Foi a nossa maior vitória”, revela Dumans.
Eles contam que Juninho não estudou para ser ator, teve uma vida turbulenta, foi preso algumas vezes, trabalhou em diversos lugares, viveu coisas impensáveis e que o prêmio é decorrente de seu puro talento e atuação. Affonso comenta que a importância de Juninho para o filme é inegável. “Dá para ver o potencial e poder criativo [dele] por aquelas imagens”, reafirma o diretor."A vida do pobre cada vez mais sujeita ao mercado e a mercadoria" - Affonso Uchôa.
Ambos negam que Cristiano seja um retrato fiel da vida de Juninho e que ele foi um meio de inspiração. “Na verdade, é baseado noutra vida dele. A biografia possível, não a biografia real. É uma vida que ele poderia ter vivido porque o Cristiano tem muito a ver com ele. Agora, ele não é o Cristiano. Foi um convite para ele sonhar uma outra vida enquanto a câmera estivesse ligada”, explica Affonso. João relata que a mãe do ator, ao ver o filme, falou: "Eu achei o Cristiano muito sério", opondo-se à personalidade bem humorada e brincalhona do filho.
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Gravado há três anos, Arábia projeta uma condição trabalhista semelhante ao que vivemos agora, pós-Reforma Trabalhista. “Essa conexão é triste, porque a gente vê que a realidade se tornou mais intensa do que estava construído no roteiro”, lamenta Uchôa, ao comparar a realidade da situação do trabalhador nos dias de hoje com a retratada no filme. Uma profunda melancolia espalhada em todos os cantos. “O que era uma questão individual, vira um questão trágica de um país”, complementa João.
Para Uchôa, a obra foi composta para simbolizar um mundo endêmico, que fosse daqui a 30, 40 anos, num sentido em que a humanidade segue mais sujeita da vida no mercado, pela sujeição dos desejos, a mercadoria e a supressão da individualidade pelo consumo. "Vemos que o Brasil está caminhando a passos rápidos para esse mundo, passos muito velozes. A vida do pobre cada vez mais sujeita ao mercado e a mercadoria", adiciona.
O longa aborda a opressão sobre o trabalhador que proporciona uma série de recusas morais, sociais e políticas. Affonso assemelha a narrativa ao caso Marielle: "Tem gente que não vai abandonar as suas próprias convicções e vai continuar vomitando no Facebook aquilo que vai botar em suspeição, em dúvida, as evidências [do caso]. As pessoas estão erradas, está acontecendo outra coisa e essa outra coisa, para ser encarada, precisa que você saia desse lugar"."Chegar nos Cristianos, chegar numa realidade mais próxima que o próprio filme trabalha" - Affonso Uchôa.
Um complemento fundamental que dá mais requinte ao enredo e as belas imagens da região colonial de Minas é a trilha sonora. Em particular, a cena em que Cristino pega o violão e manda um rap. "Do sertanejo ao rap, do folk americano, são registros além da música, de experiências reais, de vivências, de pessoas que atravessaram a barreira e que educaram outras pessoas através dessas músicas", descreve Dumans, adicionando os dizeres de Juninho sobre a sua escolha: "O rap foi a minha escola. Eu não estudei, mas o rap foi onde eu aprendi certas coisas".Por fim, indago os diretores se há alguma expectativa da recepção do público e Affonso espera que o longa saia um pouco da bolha e atinja novas pessoas. "Isso seria o filme chegar nos Cristianos, chegar numa realidade mais próxima que o próprio filme trabalha, que o próprio filme tematiza, para conseguir conversar com essa realidade. Não é um público domesticado, educado para ver. É um público que tem uma relação viva com aquilo que está vendo e que reage diretamente ao filme. E quando se identifica, é um negócio absurdo", finaliza.Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter e Instagram.