Depois da tragédia, aprenderemos a lição?
Todas as fotos por Ricardo Graça/Jornal de Leiria

FYI.

This story is over 5 years old.

análise

Depois da tragédia, aprenderemos a lição?

Poderá Pedrógão Grande ser uma janela de oportunidade para mudarmos o paradigma de floresta em Portugal? Os especialistas respondem com “nim”. Pode, se houver “coragem política”.

Este artigo foi originalmente publicado no JORNAL DE LEIRIA e a sua partilha resulta de uma parceria com a VICE Portugal.

Sessenta e quatro mortos, pelo menos, 180 feridos, cerca de 30 mil hectares de floresta ardida (três vezes a dimensão do concelho de Lisboa), um número ainda indeterminado de casas destruídas, quilómetros de estradas e de redes de electricidade e água danificadas. A crueza dos números, ainda provisórios, ilustra, de alguma forma, a dimensão da tragédia que se abateu sobre Pedrógão Grande e que se estendeu também aos municípios de Castanheira de Pera e Figueiró dos Vinhos.

Publicidade

Ainda com o incêndio a lavrar, o presidente da Câmara de Pedrógão Grande admitia que o concelho ficou "a zero" ao nível das infra-estruturas e "mais de 95%" da floresta ardeu. O levantamento dos danos já está terreno e, dentro de dez dias, o grupo de trabalho criado para o efeito, apresentará o diagnóstico "completo dos prejuízos" e "medidas concretas para pôr no terreno".

Isso mesmo foi prometido, ontem, quarta-feira, 21, pelo ministro do Planeamento e das Infraestruturas, Pedro Marques, no final de uma reunião realizada na Câmara de Pedrógão Grande, com o governante a sublinhar as prioridades: "Reconstrução das habitações e recuperação do potencial agrícola (armazéns e maquinaria) e da situação das empresas afectadas e das infra-estruturas municipais e rede viária".

O ministro adiantou ainda que o financiamento virá do quadro comunitário Portugal 2020, do Fundo de Solidariedade da União Europeia e das muitas campanhas de solidariedade que já estão em curso. Além de balanço, os próximos tempos serão também de avaliação do que correu mal neste incêndio ao nível do combate, da coordenação, das comunicações ou da protecção das pessoas. Já se sabe, por exemplo, que o sistema de comunicações SIRESP falhou durante várias horas, mas, neste momento, há mais interrogações do que respostas.

O que podemos aprender com o drama de Pedrógão Grande?

Engenheiro agrário especialista em planificação e defesa do espaço rural, Pedro Cortes admite que possa haver correcções no combate aos incêndios, mas, frisa, o mais importante é apostar no ordenamento da floresta. E, defende, "o tempo da reflexão acabou. A hora é de passar à acção". Para Pedro Cortes, "é fundamental" evitar que as áreas ardidas caiam no abandono e que se aproveite a oportunidade de fazer "uma reflorestação a partir do zero" e seguindo aquilo que, há muitos anos, os técnicos têm vindo, "sem sucesso", a reclamar como urgente: uma floresta assente em mosaicos "ajustados à realidade do terreno" e num "equilíbrio entre espécies mais e menos produtivas, entre resinosas e folhosas".

No curto prazo, o técnico sublinha a importância de tirar as árvores queimadas e de "não se cometer a loucura de fazer mobilização de solos para novas plantações de eucaliptos". Para a associação ambientalista Quercus, depois da fase de combate e do apoio às vítimas, são necessárias medidas "firmes e rápidas" que conduzam a uma alteração "radical" do paradigma da floresta nacional. Para Domingos Patacho, dirigente da organização, "sem gestão e sem ordenamento" florestal, "a tragédia voltará a repetir-se". "São precisas políticas públicas que promovam o investimento no mundo rural e a criação de paisagens em mosaicos, mais resiliente aos incêndios", diz o ambientalista, que defende a canalização de fundos comunitários para esta área e a criação de incentivos fiscais para a plantação de espécies mais resistentes ao fogo.

Publicidade

Emparcelamento, "doa a quem doer"

Para prepararmos uma floresta, com um mosaico florestal, com espécies autóctones, com linhas corta-fogo, temos de emparcelar", afirma, por sua vez, o presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses. Em declarações à Agência Lusa, Jaime Marta Soares frisa que não se trata de "pôr em causa a propriedade privada, que essa é sagrada na Constituição Portuguesa", mas que é preciso "fazer ver às pessoas que o colectivo tem de se sobrepor ao individual, doa a quem doer".

O problema, diz Joaquim Sande Silva, especialista em ecologia do fogo, é a "falta de coragem política" para fazer o que é necessário. "Os políticos têm um medo terrível da população e de avançar com medidas que, no seu entendimento, lhes podem custar votos", acusa o investigador, que admite que o modelo das zonas de intervenção florestal (ZIF) pode ser uma boa opção para a reflorestação da área ardida na zona de Pedrógão Grande.

"É um modelo, que no seu espírito inicial, assenta numa espécie de condomínios em que os proprietários abdicam do direito de gerir em favor de uma entidade que faz um plano de gestão e tem meios financeiros para o fazer. Mas é difícil de pôr em prática porque esbarra em dois grandes obstáculos: contornar o direito de propriedade e os meios", reconhece, confessando ter "muitas dúvidas" que esta tragédia possa ser uma janela de oportunidade para mudar o paradigma de floresta. "Temos de aproveitar o momento para fazer aquilo que se falou durante anos e anos [o ordenamento florestal]", defende Fernando Lopes, presidente da Câmara de Castanheira de Pera, que, em declarações à Agência Lusa, nota, contudo, que "a parte mais difícil agora será a reconstrução". E, vinca, "devemos estar todos unidos".

Publicidade

Especialista defende mais meios para auto-protecção da população

Especialista em incêndios florestais, Xavier Viegas defendeu que têm de existir "mais meios e recursos" para as comunidades se auto-protegerem em caso de incêndios. Em declarações à agência Lusa, o coordenador do Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais diz que devia haver instrumentos para garantir "refúgios onde as pessoas possam estar em segurança", dando o exemplo de Nodeirinho, em Pedrógão Grande, onde seis pessoas se salvaram dentro de um tanque de água.

"Esse tipo de refúgios tem de ser replicado e "tem de ser instituído", sublinhou. No seu entendimento, tem de se trabalhar para haver "comunidades mais bem protegidas, mais resilientes, mais prepararas para enfrentar este tipo de coisas".

Maria Anabela Silva é jornalista do Jornal de Leiria.