Matéria originalmente publicada na VICE Canadá.
Não existe essa coisa de uma história de carona normal. Aprendi isso bem rápido quando comecei a perguntar pro pessoal suas histórias mais memoráveis de corrida “grátis”. Você está colocando sua vida na mão de um estranho, o convidando para acessar uma troca potencial — como dizem — de ass, cash or grass.
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É uma coisa realmente estranha numa era de Uber e caronas compartilhadas em páginas de redes sociais, mas muitas comunidades das ilhas da Costa Oeste e do norte do Canadá ainda dependem de caronas como um sistema de transporte público informal. A sorte pode mudar de corrida para corrida — você pode acabar no banco do carona do prefeito de uma cidadezinha à beira mar, ou contemplando o melhor ângulo para cortar uma garganta (em legítima defesa, óbvio).
Para entender o tipo de pessoa que ainda pega carona em 2017, e por que tantas outras juraram nunca mais fazer isso, juntei as histórias mais estranhas e terríveis sobre pegar carona que encontrei. Uma pessoa descreveu a prática como o Chatroulette real original: Você nunca sabe o que vem a seguir.
Kamilla, 35 anos
Em 2004, eu estava namorando um ativista anarquista aventureiro em Londres, Ontário. A gente tinha 20 e poucos anos, e era o verão depois do nosso terceiro ano de faculdade, então decidimos fazer uma viagem de Londres para Halifax.
Arrumamos mochilas enormes, e queríamos fazer o trajeto do jeito mais barato possível, o que era parte da aventura. Não dormimos em motéis nem nada assim. Tínhamos sacos de dormir e geralmente parávamos na beira da estrada, em parques, atrás de escolas – onde dava. Um negócio improvisado mesmo.
Não teve nenhum momento em que não me senti segura, exceto essa parte, que foi meio assustadora, mas também divertida – uma mistura de emoções. Era uma tarde de domingo chuvosa. Estávamos saindo da Cidade de Quebec e estávamos com problema. Ninguém parava para nós.
Fomos até a estrada e ficamos plantados numa rampa tentando pegar carona por horas. Finalmente um grande caminhão de transporte parou. Era um cara jovem, um hippie de Quebec – sotaque francófono, 20 e poucos, política progressista, simpático. Ele tinha uma barba e cabelo comprido enrolado, e provavelmente estava usando camisa de flanela.
Ele tinha um sacão de maconha do lado do câmbio. Ele enfiava a mão no saco e fumava um beck atrás do outro – uma mão no volante, outra bolando o beck o tempo inteiro.
Também tinha uma criança viajando com ele, um menino de uns cinco anos na cabine, o que não era muito legal, pensei naquele momento. Tinha uma cortina que o garoto ficava tentando fechar. Não sei quanto tem de THC para fumantes passivos de maconha, mas tinha fumaça por todo o lado. Ele provavelmente fumou uns dois ou três becks.
Ele devia ser muito maconheiro, porque parecia que não estava sentindo nenhum efeito. Fiquei observando ele, procurando sinais de que estava lesando. Eu ficava trocando olhares nervosos com meu namorado. Estávamos desconfortáveis, numa situação de carona, pensando “vamos bater?” Mas ele parecia realmente muito habilidoso em fazer várias coisas ao mesmo tempo. Ele manteve uma linha coerente de conversa, com um olho na estrada e o outro no garoto.
Não peguei mais carona depois disso, mas não porque isso me desencorajou. Na verdade foi quase o oposto. Foi surpreendentemente fácil; levou só seis dias. Apesar de tomar muita chuva, e de um guarda mandar a gente circular uma vez, foi uma jornada surpreendentemente suave, considerando que cruzamos metade do país.
David, 36 anos
Quando pegava carona, eu preferia caminhoneiros, porque eles têm que responder para a empresa em que trabalham. É verdade que tem seus perigos, especialmente se você não é homem. Mas caminhoneiros geralmente têm um registro, uma identidade, então você pode mandar mensagem para alguém avisando em que caminhão você está. Não estou dizendo que é um esquema perfeito, mas é mais seguro. Além disso, às vezes eles têm uma TV na cabine.
Eu estava viajando com duas amigas, mostrando pra elas como era pegar caronas em trem e mais tarde caronas na estrada. De Winnipeg fomos para o oeste. Estávamos passando por Field, Colúmbia Britânica. Esse cara num carro pequeno passou, não parou, depois fez uma curva em U, o que deveria ter sido o primeiro sinal vermelho. Ele estava indo na direção errada, pro leste.
Achamos que era uma curva em U, mas não tínhamos certeza. Tinham muitos carros passando, e pensamos que talvez não fosse ele. Ele disse que viajava de Fort Mac para Salmon Arm para trabalhar. Entramos e o carro dele era imaculado, nem um saco de papel de fast food ou um copo descartável de café. No porta-malas ele tinha vários travesseiros e cobertores empilhados e embalados com plástico. Mas só achamos que era um cara preso na fase anal, sabe? Um cara obsessivamente limpo que fazia uma baita viagem para trabalhar.
Ele disse que estava muito feliz de nos conhecer. E me disse para pegar uma coisa embaixo do meu banco, um presente para as minhas amigas. Nesse ponto a gente estava em velocidade máxima. E tinha essa caixa com umas 30 ou 40 pedras, escrito “BC girls rock”. O que achamos bizarro, mas não perigoso.
Acho que a gente tinha acabado de passar por Malakwaa, e ele começou a falar sobre nos mostrar a cabana dele na floresta, e ficava tentando sair da estrada principal. E ele entrou mesmo numa estrada vicinal, dizendo que queria que a gente visse a verdadeira Colúmbia Britânica. Foi aí que pensamos que a gente podia morrer, e eu decidi pegar a minha faca. Aparentemente apaguei com a faca na mão, e minhas amigas estavam sempre me cutucando. Acho que todos nós estávamos com o mesmo medo da morte.
Finalmente chegamos a Salmon Arm, ele começou a estacionar num prédio dos correios, e a gente simplesmente saiu do carro e começou a correr. Achamos um oficial da Polícia Montada, fomos até a viatura dele e dissemos que queríamos dar queixa de um incidente estranho. Achamos que aquele cara podia ser um perigo para mulheres pegando carona. Eu tinha informações dele, e perguntei se ele não podia jogar os dados do cara no sistema da polícia. O oficial só respondeu “pegar carona é ilegal em BC”. Ele disse que não ia anotar nomes nem números, e ameaçou nos multar. Foi horrível. Então que eu disse baixinho “Por isso tem tantas mulheres desaparecidas nessa parte de BC”, e fui embora.
Eugene, 27 anos
Meu melhor amigo e eu fomos convidados para ficar o final de semana na cabana de outro amigo, e levamos mais um cara junto. Acho que ele não esperava que a gente fosse mesmo conseguir chegar lá, mas convidou de qualquer jeito, então pegamos um ônibus para um terminal de balsas, e conseguimos chega na Ilha Vancouver.
Estávamos indo para a área de Port Alberni, e meio que nos perdemos por várias horas, ao ponto em que um de nós estava começando a entrar em pânico. Estava escurecendo. Aí vimos um veículo descendo a estrada e diminuindo a velocidade. Pensamos “que ótimo” – era um Lexus, um carro grande bem legal – então ficamos empolgados em entrar.
Acabei no banco da frente, e meus dois amigos ficaram no banco de trás. Assim que entrei senti uma vibe meio Medo e Delírio em Las Vegas. O cara estava usando terno, mas a gravata estava desfeita, e ele parecia suado e estressado. Tentamos puxar assunto, mas ele respondia com algo completamente diferente. Tipo quando ele perguntou para onde a gente estava indo, eu disse que para Port Alberni, e ele não respondeu nada. Alguns minutos depois ele perguntou de novo “Para onde vocês estão indo?” Olhei para os caras atrás com aquela expressão “O que está acontecendo aqui?”
Nesse ponto, ele estava acelerando a mais 100 km/h na estrada, então não ia dar pra pular do carro. Parecia que ele estava com pressa. Em certo ponto, ele perguntou “Vocês gostam de se divertir?” E sendo caras de 20 e poucos anos, dissemos “Sim, claro”. Ele disse. “Vocês se importam se eu me divertir?” E a gente meio que disse “Como assim?” E ele respondeu “Vocês não se importam se eu cheirar ketamina?” E a gente disse, bom, na verdade a gente se importa.
Aí ele pareceu meio envergonhado e chocado. Ele parecia realmente perturbado. Perguntei “Você usou ketamina antes de pegar a gente?”, e ele não me respondeu. Olhei para os meus amigos, falando sem dizer nada, e continuei de olho no cara. Não falamos nada por uma hora e meia.
Falamos para ele nos deixar num lugar longe de onde estávamos indo. Não estávamos com medo dele, são não queríamos que ele aparecesse pra “se divertir” com a gente.
Shaina, 33 anos
Anos atrás, minha melhor amiga e eu fizemos uma longa viagem pela ponta sul da Nova Escócia. Estávamos em Halifax e pegamos um ônibus para os arredores da cidade. Nossa primeira carona foi com um cara de meia idade com uma vibe da Costa Leste. Ele estava dirigindo uma picape quatro portas.
Ele pareceu meio preocupado conosco, então nos deu seu cartão de visitas. Não guardei o cartão, mas acho que dizia que o trabalho dele era “assador de porcos”, o que era um pouco estranho. Não lembro as palavras exatas, mas ele começou a contar sobre duas mulheres que ele tinha pego dez anos atrás. As mulheres estavam fazendo mochilão, basicamente a mesma coisa que a gente. Ele disse que alguns meses depois a polícia entrou em contato, porque as duas mulheres tinham sido encontradas mortas no mato, e o cartão dele estava com elas.
Ele contou para a polícia que tinha dado carona para elas, e deu seu cartão no caso de algo ruim acontecer. Nesse ponto meu celular já estava aberto, pronto para chamar o 911. Lembro de pensar “Se alguma coisa estranha acontecer, é só apertar ‘chamar’ e eles vão ouvir o que está acontecendo”. Quer dizer, esse não é o melhor jeito de fazer alguém se sentir confortável pegando carona com você. Mas nada aconteceu. Não acho que ele matou as mulheres, mas pode ser que tenha. Acho que nunca procuramos.
Não sei se essa foi uma decisão consciente, mas não peguei carona de novo depois dessa viagem.
Rob, 37 anos
Eu estava num show do SNFU, uma banda punk bastante prolífica na época, em Seymor, Vancouver. Eu tinha 17 ou 18 na época, mas foi fácil entrar no show. Eles não pediram identidade – os caras não estavam nem aí. Era verão, porque lembro que tirei a camiseta durante o show. Estava lotado e quente. Eu estava conversando com um cara na fila da cerveja, só falando sobre música.
Quando o show acabou, perdi meus amigos no mosh pit. Eu estava bem bêbado, então comecei a pedir carona, e o cara com quem conversei na fila da cerveja parou. Ele perguntou se eu precisava de carona, e eu disse “Sim, valeu, cara”. Eu estava pensando “Graças a deus não entrei no carro de algum maluco aleatório”. Ele parecia legal. Talvez pudesse ser um novo amigo.
Eu estava dando as informações do caminho para ele, tipo pegue a direita aqui ou algo assim. Aí ele simplesmente estacionou e ficou em silêncio. E eu disse “Não, cara, ainda está longe”. Ele parecia muito nervoso com alguma coisa. Perguntei se ele estava bem. Se ele tinha algum problema de saúde. Ele disse que não, que estava bem, e continuamos. O Rob Bêbado pensou que aquilo tinha sido estranho, mas tanto faz, cruzamos mais uns cinco ou dez quarteirões, e ele parou de novo.
Ele estava evitando fazer contato visual comigo, encarando o volante, e comecei a ficar preocupado. Perguntei se ele estava bem para dirigir. Por um segundo achei que ele podia estar tão bêbado quanto eu. Afinal a gente se conheceu na fila da cerveja. Ele começou a dirigir de novo e depois parou pela terceira vez.
Ele respirou fundo, olhou pra mim e disse “Sempre quis chupar o pau de um cara”. E eu pensei “Ah, é isso que está acontecendo”.
Eu disse que estava lisonjeado, mas que não, eu passava. Obrigado e tal. Ele começou a ficar realmente nervoso. Eu disse que ia pra casa andando, e saí do carro. Eu não estava nem perto de casa, e isso foi antes de todo mundo ter celular. Pensando agora, me sinto um pouco mal sobre como reagi. O cara provavelmente se assumiu para mim. Não sei o que aconteceu com ele, mas espero que ele esteja feliz. Espero que ele tenha aceitado sua identidade e se sinta confortável hoje.
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