Analisando o Primeiro Dia do ​Coachella 2065

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Analisando o Primeiro Dia do ​Coachella 2065

Só fui porque os ingressos vinham de graça ao comprar uma garrafa de três litros de Mountain Dew Coachella Pepinorita Blast. Por que diabos eu iria para um lugar desolado e quente bem no meio do deserto?

Haverá um dia em que, finalmente, nossos feeds nas redes sociais não serão mais lotados de selfies no Coachella – tudo, até mesmo o mais influente festival musical da América do Norte, tem que cair. Aqui, o satirista, crítico e criador do seminal ouroboros internético Hipster Runoff Carles imagina como seria uma resenha do Coachella em 2065, após o festival ter começado a entrar em colapso com o peso do terrorismo, aquecimento global e sua própria marca.

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— Os editores


Só fui porque os ingressos vinham de graça ao comprar uma garrafa de três litros de Mountain Dew Coachella Pepinorita Blast. Por que diabos eu iria para um lugar desolado e quente bem no meio do deserto?

Obviamente, o formato do festival musical recebeu aquilo que muitos especialistas da indústria de entretenimento chamaram de "golpe fatal" há dois anos atrás, após o bombardeio por drones no Lollapalooza. Festivais com centenas de milhares de frequentadores há tempos são encarados como oportunidade perfeita para grupos terroristas. Apesar de bombardeios em embaixadas, shoppings e arranha-céus render umas manchetes, um ataque ao maior festival musical norte-americano é um ataque direto ao zeitgeist cultural norte-americano.

O atentado no Grant Park em Chicago matou 3.124 pessoas e deixou mais de 10.000 feridas, incluindo o controverso rapper A#AB, que na época, estava no topo da Billboard com o single holográfico #1 do país. Figurões da mídia ainda usam técnicas de amedrontamento televisivo antigas para promover sua programação após cada festival. Mamãe disse ter vergonha de mim por ir nesta porcaria de festival, mas acho que era só preocupação.

O Coachella 2065 tenta desesperadamente manter vivo o espírito do Último Grande Festival de Música Americana. Sasquatch, Bonnaroo, Austin City Limits e o irmão mais velho do Coachella, Stagecoach, que se tornou o festival mais popular de Indio durante a década de 2030, são algumas das marcas que restaram e ainda operam clandestinamente. Em 2014, o Coachella durou dois finais de semana, e afirma ter tido público de meio milhão de pessoas. O festival chegou ao auge em 2022, com um público de 950.000 pessoas em dez dias. A popularidade histórica gigantesca do Coachella – e sua marca de roupas casuais – ainda o fazem a marca de festivais mais conhecida do mundo.

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Mas só quem vive em favelas suburbanas abandonadas vai à festivais em busca da experiência sonora da música ao vivo. Por que diabos eu faria esse esforço?

Acho que não queria deixar os terroristas ganharem. Acho que queria me ligar à era de ouro da história cultural norte-americana que os terroristas atacavam. Uma época mais simples em que modelos, celebridades e socialites se reuniam no meio do deserto para usar coroas de flores e blusinhas cropped, cabendo ao proletariado criativo acompanhar. Achei que seria bacana viver uma parte da vida de forma mais simples, quando a cultura ainda não era 100% digital.

Faz calor no sul da Califórnia. Mal dá pra viver. Com temperaturas que chegam normalmente aos 65 graus no verão, a qualidade de vida cotidiana levou a um esvaziamento de muitas cidades no Arizona, Nevada, Novo México e Oeste do Texas. Há 20 anos atrás, o Coachella teve que ser mudado para fevereiro para sobreviver às temperaturas crescentes do deserto. O calor intenso segue até mesmo no inverno, chegando à máxima de 48 graus.

Além disso, a viagem de carro de Los Angeles até Indio é deprimente. É como um mini-shopping abandonado com arquitetura horrenda da década de 2030. Tanta gente se mudou para dentro do continente para fugir das temperaturas extremas, furacões e da falha geográfica. É difícil pensar um motivo pelo qual o Coachella ainda seria uma boa ideia. Mini-shoppings com centros doação de flora intestinal e franquias de fast-food abandonadas se veem por toda parte. A cidade em si é assombrosa. Não é por nada que Dakota do Sul passou a ser o melhor lugar para se criar uma família, de acordo com o Dwell.com.

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@iamcarles: É burrice dirigir tanto só pra ver música ao vivo. #coachella2065

Desde 1999 o Coachella ocorre no Empire Polo Grounds. O terreno atual mudou bastante desde que a controladora Goldenvoice comprou a maioria das propriedades disponíveis ao redor do festival, eliminando algumas comunidades suburbanas por completo e absorvendo outras para transformar em alojamento para a equipe. Desde 2020, o local virou uma cidadezinha permanente. De zoeira, chamam de "New Vegas" porque aquilo devia atrair gente de fora, e a subclasse de cidadãos dependentes de uma indústria de entretenimento absurda.

E é isso que acontece quando você chega lá: a Cidade Coachella é uma base militar em terras estrangeiras, completinha com um processo de triagem antes da entrada. No primeiro ponto de checagem, depenaram meu Nissan Cube vintage e rolou uma busca com cães farejadoras. Minhas mochilas foram esvaziadas – até meu pacote de Doritos Couvepino Picante foi farejada, como se fosse explodir. O segundo ponto de checagem era uma varredura completa do corpo. Se você tiver a sorte de ser marcado para uma triagem aleatória, homens em trajes militares ambíguos fazem um monte de perguntas, como se atravessar a fronteira do Coachella fosse entrar em outro país.

Consigo entender o porquê de colocar a segurança em primeiro lugar, somada à legalização de alucinógenos em "contextos terapêuticos", tenha conseguido tirar muito do charme dos festivais. Ao invés de depender de técnicas de vigilância comuns, garantir a segurança pessoal faz parte da nova experiência dos festivais. Se alguém em algum momento considerou festivais algo libertadores, nem deveria por os pés no Coachella 2065.

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@iamcarles Parece que o Estado Islâmico venceu. Mata a vibe total. #coachella2065

Por mais escroto que seja entrar no festival, trata-se de uma precaução necessária para garantir a segurança do que restou de frequentadores do Coachella. Está mais lotado do que deveria. Guardas com camuflagem suburbana sempre à vista. Não vai rolar uma #Lollatentado (quem se daria ao trabalho?) aqui, mas caso role, tem gente o bastante para reagir da forma adequada. Mesmo que os guardas armados vivam o festival em turnos, o que aliás é anunciado como benefício na vaga de emprego anual na zona informalmente militarizada de Cidade Coachella.

Os shows mais lotados no Coachella não se baseiam em métricas de talento ou popularidade, mas sim quem está tocado no cômodo mais adequadamente resfriado. Vi um DJ da região chamado Freon Indian tocar música eletrônica vintage. Parecia algo sub-humano. Os guardas ao redor do palco mexiam suas cabeças como se fossem parte do show.

No Palco Mojave, uma banda guitarreira chamada Keeping Up With the Crustaceans tocava indie rock da virada do século. As progressões de acordes previsíveis deixaram tudo bem chato, ainda mais com o reverb em excesso e as letras não lá muito claras. A única banda que me interessou foi a The Failed Assassination of Ted Cruz. O som deles capturava o caos que deve ter tomado os EUA quando o 46º presidente dos EUA foi alvejado por um dos grandes do Tea Party.

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É difícil imaginar uma pessoa normal indo ao Coachella a não ser que seja para satisfazer o desejo derradeiro de uma alma perdida. Imagine tirar suas férias para visitar a zona militarizada entre Coreia do Norte e Sul. A maioria dos ingressos é distribuída gratuitamente para estudantes do ensino médio da região, aumentando o número de frequentadores para justificar o patrocínio inchado e oportunidades de co-branding. Ninguém está prestando atenção de verdade, só botando pra dentro amostras grátis de sabores novos de Soylent e se agarrando ao charme retrô de uma cidade que passa por curadoria.

A culinária datada servida em food trucks não vale a dor-de-cabeça agora que tantos norte-americanos simplesmente ingerem líquidos nutricionalmente equilibrados. Não acredito que me dei ao trabalho de comer um sanduíche de barriga de porco como se ainda fosse 2010.

@iamcarles O Coachella não faz sentido, como aquilo dos notebooks – só um passo bizarro numa jornada rumo a um computador melhor.

A Cidade Coachella é uma favela que passa por curadoria em um supercentro de armazenamento. Todas estas estruturas são permatemporárias; as escolhas estéticas da Cidade Coachella parecem ser uma paródia de uma época em que as construtoras acreditavam que você poderia deixar materiais de classe industrial parecendo qualquer coisa menos baratos. Imagine uma cidade criada com o pensamento de que o Instagram seria um meio visual eterno. O que em determinada época foi considerado como o que há de mais moderno em estruturas pops agora criam uma rede de centros de convenções, alguns com refrigeração melhor que a dos outros.

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Estas estruturas temporárias jogam pra escanteio o propósito de uma experiência ao ar livre. Shows em arenas e centros de convenções são bem mais populares no sul dos EUA agora, de qualquer forma; não há protetor solar com FPS alto o suficiente para minimizar os efeitos à exposição solar direta durante um período prolongado de tempo. De fato, ouvi boatos de que mudariam o horário do Coachella para a manhã para evitar o calor.

Os produtores (ou urbanistas) há tempos são forçados a repensar o custo de oportunidade de estruturas permanentes e temporárias. A Cidade Coachella tem tudo que você precisaria para passar um fim de semana lá, até o maior hotel de cápsulas da América do Norte.

@iamcarles @Goldenvoice As pessoas costumavam viajar milhares de quilômetros para ficar longe de um artista e ouvir barulho sendo bombeado direto para seus ouvidos? #coachella2065

De acordo com meu único amigo que se interessa por música ao vivo, os dois últimos Coachellas tiveram os piores lineups possíveis, depois de uma reação negativa geral contra artistas que tocam em grandes festivais. Para maximizar margens cada vez menores, muitos dos palcos lotados com bandas locais, noise minimalista e DJs, que agradam o público. Enquanto os shows são um retorno ao amadorismo que definiu o festival em sua criação, estão anos-luz de distância atrás das bandas famosas em busca do posto de headliner como momento definitivo da carreira de outrora.

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O Coachella é uma batalha sem sentido contra o clima, contra a cidade de Indio e a evolução natural do entretenimento. É complicado dar crédito aos artistas e à música quando a presença da segurança é que faz o verdadeiro show.

Indio e Coachella estão em um navio naufragante, lutando pelos restos do maior festival de música da história mundial. A maioria das pessoas presas ali em Indio não se incomodaria de ver tudo pegar fogo. Vale mencionar que em 2050, uma senhora de 86 anos tocou fogo em si mesma na roda gigante em protesto ao festival. A roda nunca foi reconstruída.

Atualmente só existem nove festivais de música nos EUA; o resto mudou seus modelos para curadoria de eventos digitais e eventos fechados com altas margens de lucro para os ultra-ricos. Não entendo porque a música já foi importante em algum momento. Tudo culminou nesta cidade cagada no meio do deserto, será que isso foi culturalmente significante algum dia? O mito do festival norte-americano não é mais uma experiência ou direito cultural necessário, não importa o que seus avôs queriam que você acreditasse. É difícil imaginar uma geração que cultivava um sentimento de liberdade ao comprar um ingresso de três dias para uma cidade popup. Só durei três horas ali.

Um tempo depois vagando por lá e já não aguentava. Não era essa a experiência que meus antepassados gostariam que eu tivesse. Não ficaria no hotel-cápsula pelo final de semana. Era mais fácil deixar a zona de segurança do que entrar.

Não tenho motivo algum para me relacionar com qualquer banda ou artista ao vê-los ao vivo ou com fones de ouvido. Não quero acabar como meu tio, uma fatalidade surda da 'geração fone'. Gravadoras e sobreviventes dos serviços de streaming na nuvem redefiniram a música, criando experiências visuais e sonoras que os artistas podem controlar e monetizar. Um festival não é um bom negócio quando há formas melhores de chegar a mais fãs e monetizar estas experiências de forma mais eficaz. Mal posso esperar pra voltar à Dakota do Sul, quando só escuto música quando quero tomar um banho de som.

Os fãs de classe media que ainda gostam de música a definem como algo mais que som – uma experiência íntima digital que só pode ser facilitada de verdade através de hologramas. Na real, a AEGLive, ex-donos de parte do Coachella, voltaram seu modelo de negócios na melhoria da experiência caseira de se assistir a um show de forma a criar experiências que superem os benefícios de ir a um show de fato.

@iamcarles Quem ainda acha que música é 'cool'? #2065

Ao deixar a cidade, parei em uma bodega em um In & Out Burger abandonado para pegar um Topo Chico Xtreme e ao lado do caixa tinha uma plaquinha ao lado que dizia "ACABEM COM O COACHELLA". Disse ao dono do lugar que o Coachella era uma bosta, e acabei caindo em uma cilada na forma de uma conversa de 15 minutos sobre como ele tinha nascido em 1999. Ele havia visto a ascensão e queda de sua cidade, mas nunca iria embora.


Tradução: Thiago "Índio" Silva