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Entretenimento

O meu melhor amigo foi para a China

E não quer regressar.

No secundário, eu e o João Calhau éramos como carne e osso: andávamos para todo o lado juntos, jogávamos consola, andávamos atrás de gajas, apanhávamos jardas… Enfim, só não batíamos segóvias um à beira do outro. Quando fomos para a universidade, seguimos caminhos diferentes e, mais tarde, ele foi para a China. Desde que voltou que está um bocado conas e obrigou-nos a censurar as fotos e a usar um nome falso, com medo de represálias do governo chinês. VICE: Quanto tempo viveste na China?
João Calhau: Ano e meio. Na mesma cidade?
Não, estive um ano em Tianjin e depois fui para Pequim, onde vivi mais meio ano. Quando chegaste lá, lembro-me de que bateste um bocado mal porque não encontravas coisas essenciais.
Sim, não havia queijo nem fiambre. Quer dizer, devia haver, mas nunca encontrei. Não dava para comer tostas mistas, pão também era difícil de encontrar. Tinha de se comprar no centro. Isto em Tianjin, em Pequim já foi diferente. Tianjin fica a 150 quilómetros de Pequim, é uma cidade industrial. Neste momento, é uma das maiores cidades industriais do mundo, vivem lá uns dez milhões de pessoas. Comeste muito chop suey?
A comida varia de região para região, mas não é como aqui, em que comes rojões no Minho e borrego no Alentejo. Lá é mesmo uma gastronomia completamente diferente. É super turista o que vou dizer, mas o prato que gostei mais lá foi pato à Pequim. O pato à Pequim de lá é mesmo pato à Pequim. É tipo a francesinha, só é mesmo francesinha no Porto. Nada de comer cão, portanto.
Havia quem comesse, mas não experimentei. Acho eu. E o que é que foste fazer para lá?
Em Tianjin, estive a fazer o primeiro ano de mestrado. Depois, em Pequim, fui estagiar no departamento de marketing de uma empresa. Arranjar clientes e isso. O trabalho não era a melhor coisa do mundo, o mais fixe era mesmo quando chegava a hora do almoço e ia para um salão de arcadas jogar King of Fighters 99. Costumavas dizer-me que não parecia um país diferente, mas um outro planeta.
É como se te virassem o cérebro ao contrário. A mentalidade é completamente diferente, o choque cultural é enorme. O que aqui é impensável, lá é uma cena completamente normal. Tipo o quê?
Tipo cagar na rua ou cuspir dentro de restaurantes. O conceito de filas de espera não funciona na China, é cada um por si. Aplica isto ao trânsito quando sais à rua e tens o ambiente mais caótico de sempre. Espera, disseste cagar na rua?
Os putos, sim. Eles não usam fralda, usam aquelas calças de pijama que têm dois botões no traseiro e quando precisam de ir, desapertam e vão mesmo ali. Pode ser num parque, na rua, em frente a casa, em qualquer lado mesmo. Ninguém acha estranho, toda a gente segue com a sua vida. Um par por dia da semana. A contrafacção na China tem uma vantagem: sai da mesma fábrica da roupa de marca.  Roupa para os próximos dez anos. Tudo por cinco euros. Isso é mesmo estranho.
Os primeiros tempos são. Quando vês um ocidental apetece-te mesmo falar com essa pessoa porque sentes-te completamente à parte e achas que é a única pessoa que te vai perceber. Que cena super Lost in Translation.
É mesmo. Em Pequim não tanto, mas, por exemplo, em Tianjin os chineses olham todos para ti e alguns até pedem para tirar fotos contigo. Se eles tivessem Facebook a minha cara devia aparecer em muitos perfis. Nenhum deles tem Facebook?
A internet é controlada pelo governo. Não há Facebook, não tens YouTube, não tens Twitter — a informação é toda controlada. Se escreveres “liberdade” no Google, aquilo crasha. Mas eu falava contigo no Facebook!
Porque eu tinha software que dava para ultrapassar essas barreiras, mas há muita gente lá que não sabe disso ou não se dá ao trabalho.  Grandes comunistas da História: um chinês, o Coronel Sanders e Che Guevara. E no dia-a-dia, sentiste o controlo da “grande ameaça vermelha”?
Nem por isso, não te sentes controlado. Podes fazer tudo o que fazes aqui, menos ir para a rua reivindicar direitos ou andar com uma bandeira a dizer “libertem o Tibete”. De resto, é na boa. Foi por isso que “um amigo teu” foi detido?
Antes tivesse sido, mas foi só por causar distúrbios na rua, alcoolizado. E agora queres voltar para lá?
Quero. A vida lá é super barata, pagas 25 cêntimos por uma cerveja e 50 cêntimos pelo maço de tabaco. O mesmo para rendas e comidas. Os ocidentais quase nem cozinham por ser tão barato comer num restaurante. Descobrindo os sítios certos, é o melhor sítio para se viver. Tem uma beleza natural incrível, principalmente no Sul. Vou ter saudades tuas. Depois arranjas-me quarto lá?
Já se sabe. Fotografia por João Calhau