Eu, Pateta
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Eu, Pateta

Tá vendo essa foto? Sou eu. Tirei no primeiro dia do primeiro emprego da minha vida, de Pateta. Tinha 19 anos. Minha mãe se orgulha tanto dela que mostra pra todo mundo. Acho que vai ser assim, pelo menos até meu irmão se formar em Medicina.

Tá vendo essa foto? Sou eu. Tirei no primeiro dia de emprego como Pateta. Tinha 19 anos. Minha mãe se orgulha tanto dela que mostra pra todo mundo. Acho que vai ser assim, pelo menos até meu irmão se formar em Medicina. Tudo bem. Pra mim vai ser importante pra sempre. Vi um cartaz recrutando universitários para trabalhar na Disney e resolvi arriscar. Anos depois, ainda tenho a história mais legal da mesa do bar—pelo menos dos que frequento. Mas para não ter que ficar respondendo sempre às mesmas dúvidas, resolvi compilar algumas questões e reações esperadas em um FAQ sobre a experiência que tive durante os três meses que trabalhei por lá. Assim vou poder dar uma cópia para cada um que vier me perguntar a respeito. Autografada.

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VICE: Você foi Pateta na Disney?!
EU: Fui.

Jura?! Como assim?
Pois é, hehe. Eu dava autógrafos, tirava fotos, brincava com as pessoas… Essas coisas.

Como você conseguiu?
Vi um cartaz na faculdade chamando para trabalhar na Disney e resolvi ver qual era. Fui indo às entrevistas até que fui escolhido.

Foi difícil?
Na verdade, não muito. Foi um processo seletivo como o de qualquer outro emprego. Na primeira vez fizeram umas perguntas do tipo: "Você se adapta bem a novas culturas?", "O que você acha dos Estados Unidos?", "E da Disney?". Tudo em inglês, claro. Conheci só uma menina reprovada nessa parte, mas foi porque ela tinha uma mega tatuagem. Aí vai continuando, até a entrevista com o recrutador de verdade. Só que pouca gente pensa em ser personagem, não sei por quê. A maioria escolhe trabalhar em loja, lanchonete, apertar o botão para fazer a montanha-russa andar… Eu até fiz uma ou outra coisa desse tipo, mas como hora extra, para ganhar mais dinheiro. Meu cargo principal era o de personagem.

Mas você já saiu do Brasil sabendo que ia ser personagem?
A pessoa sai daqui anunciada como personagem. Quer dizer, a empresa diz que você foi selecionado para ser personagem, mas na verdade chegando lá ainda vai ter que passar por um teste. Teve um cara que foi para lá junto comigo certo de que ia ser Pateta, só que ele não passou no teste.

Como era esse teste?
Eles te põem numa sala cheia de espelhos, ensinam uma coreografia e depois chamam um por um para ver quem consegue repetir tudo sem errar. Aí vão acelerando o ritmo, e, cada vez que a música para para mudar para a próxima velocidade, pedem para você improvisar alguma coisa. Lembro que na minha vez tive que fingir que estava num bosque cortando lenha ou algo assim. Tive que simular uma caça com arco e flecha também. Aí, depois que todo mundo acaba, vão chamando os escolhidos. Coitado, aquele cara foi o único reprovado da minha seleção. É claro que ele chorou. Eu também teria chorado.

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E aí eles também escolhem o personagem que você vai fazer?
Não. Na verdade o que define o personagem que você pode representar é a sua altura. Eu já tinha sido medido na entrevista final aqui no Brasil. O cara me chamou de canto, pediu para eu encostar numa fita métrica parecida com aquelas que os pais usam para acompanhar o crescimento do filho e tirou minha altura. A cada tantos metros e tal tinha o desenho de um dos personagens. Os mais baixos eram o Mickey e a Minnie, subindo pros Tico e Teco, Pluto, e finalmente o Pateta. O cara mesmo disse que eu tinha a altura perfeita pro "Goofy". Então o que define os personagens que você vai poder fazer é seu tamanho.

Ah, então você pode ser vários personagens?
Sim, sim. Eu fui também o Capitão Gancho, o Gênio, o Baloo (do Mogli), o Xerife de Nottingham, o vilão da Pocahontas, o Capitão Boing e o Tigrão.

Você foi o Tigrão também?
Fui.

Que fofo!!!
É. Ser o Tigrão também foi bem legal. No desenho ele fica pulando de um lado pro outro com aquele rabo-mola dele, então eu tinha que ser bem animado.

Qual deles você gostou mais de ser?
Ah, com certeza o Pateta. Mesmo antes de saber se realmente podia ser personagem, eu falava para todo mundo que ia ser o Pateta na Disney. Tanto que chamei uma galera para ir junto, só que ninguém acreditou. Mesmo um amigo que foi comigo só acreditou quando me viu vestindo a fantasia. Mas o Capitão Gancho foi bem legal também. Algumas crianças choravam quando eu chegava perto delas, de medo. Deixava o gancho escondido atrás das costas, ia chegando junto e PLÁU, olha aí o gancho! Era choro na certa. Agora, um que eu não gostava muito de fazer era o Gênio. A fantasia dele era meio tosca e o lugar do parque que ele ficava era zoado.

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Falando em Aladdin, você poderia fazer o personagem dele?
Que nada. Para personagens sem máscaras, que são as princesas e os príncipes, eles só contratam gente que tem o inglês como primeira língua. Por causa do sotaque e tal.

Você não podia falar dentro da fantasia?
Não. Essa é uma das regras básicas. O único som permitido é o de beijinho. Tinham outras regras também: não mexer na cabeça de adultos, para evitar situações chatas do tipo derrubar uma peruca; sempre deixar as mãos visíveis quando fosse posar para uma foto—não deixar uma delas atrás de uma moça na altura da bunda, por exemplo, para evitar mal-entendidos que pudessem dar margem a interpretações erradas como assédio sexual—; usar a imaginação para pensar em poses para tentar tampar qualquer menção a cigarro/cerveja/droga/baixaria que estivesse estampada na roupa do visitante; não ser fotografado com cigarros, drogas, cervejas ou nada sexual nas mãos, e nunca, em hipótese alguma, tirar a máscara em público. No caso de alguma emergência, o personagem tem que dar um toque para o monitor que o acompanha. Todo personagem tem um tipo de vigilante que fica do lado. Aí esse cara ia inventar alguma história besta do tipo "o Capitão Gancho tem que sair rapidinho para ver se o Sr. Smith está limpando bem o convés".

Mas e se demorar para voltar?
No momento em que você sair o seu reserva vai entrar. A rotina dos personagens funciona em rodízio. É assim: em lugares abertos, o tempo máximo para um personagem ficar de pé atendendo as pessoas é meia hora. Nos lugares fechados, 40 minutos. Então, assim que acaba o seu turno, entra o outro que estava descansando. Para cada 30 ou 40 minutos de trabalho tem o equivalente de intervalo. Numa emergência é a mesma coisa, alguém vem substituir você. Isso é para manter a mágica rolando. Como os dois têm a mesma fantasia, o público não percebe.

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O sexo do funcionário não precisa ser o mesmo do personagem interpretado?
Não. Só que, claro, tem também um treinamento para isso. Se um cara for interpretar uma personagem feminina, vai ter que agir de acordo. O mesmo vale para mulheres interpretando figuras masculinas.

E por onde as pessoas enxergam?
Cada personagem enxerga por um lugar diferente. O Tigrão vê pelo nariz. O Gênio, pela barba. A área vazada do Pateta fica na boca. É uma visão bem reduzida, então rolavam uns acidentes, do tipo calcular mal a distância e dar uma cabeçada mais forte quando na verdade se queria dar um beijinho. O problema maior era na hora de tirar foto. Quem tinha que olhar para a câmera era o personagem, e não eu. Tipo, os olhos da máscara ficavam uns dez centímetros acima dos meus, então se eu olhasse direto para a máquina—o que no começo fazia direto, ainda por cima sorrindo—, o Pateta ia sair olhando pro céu. O segredo era encostar o queixo no peito, meio que olhando para o próprio pé.

É verdade que debaixo do parque tem vários túneis?
É verdade. O subterrâneo do Magic Kingdom é recortado por um complexo de túneis que dão acesso a diferentes pontos do parque. É por lá que a gente vai de um lado pro outro, e onde ficam o refeitório, salas de descanso e o depósito de fantasias, que parece um açougue. Você chega, vai pegando os pedaços—são várias cabeças, mãos e barrigas empilhadas— junta tudo num saco preto e vai trabalhar.

E você nunca falou com ninguém mesmo? Nem quando via que eram brasileiros?

Uma vez eu estava de Pateta no Animal Kingdom. Chegou um casal de irmãozinhos para brincar comigo. Pulei, corri, dancei, toca-aqui-deixa-que-eu-toco-sozinho… E uma hora baguncei o cabelo da menina. Aí ouvi: "Aê, filha, deixa ele fazer isso contigo, não. Pisa no pé dele". Em português mesmo. Beleza, então, virei para entreter o garoto. Graça e tal, pego o boné dele e penduro no nariz da máscara, que fica fora do alcance de qualquer criança. O cara de novo: "Aê, filhão, chuta a canela dele. Chuta a canela do Pateta". E ria. Pô, aí não! Eu estava lá suando a pelúcia por U$ 6 a hora para dar um dia mágico pro filho dele. Olhei para ele, balancei o indicador, tsc-tsc-tsc… O cara quis sumir. "O bicho entendeu tudo! O Pateta é brasileiro! Aê, seu Pateta, era brincadeira". É, cara. O Pateta era brasileiro. O Pateta era eu.