Como países de maioria muçulmana estão lidando com o HIV
Estudantes muçulmanos na Indonésia promovem a conscientização sobre HIV/AIDS. Foto por Achmad Ibrahim/AP/Press Association Images.

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Saúde

Como países de maioria muçulmana estão lidando com o HIV

De Marraquexe a Mogadíscio, de Dubai a Carachi, o estigma e discriminação contra pessoas com HIV — especialmente trabalhadores sexuais, gays e viciados em drogas — é um grande problema.
Max Daly
London, GB
MS
Traduzido por Marina Schnoor

Esta matéria foi originalmente publicada na VICE UK.

Apesar de leis severas contra sexo antes do casamento, homossexualidade, uso de drogas e trabalho sexual, o mundo islâmico está (talvez como resultado disso) encarando um crescimento no número de infectados com o vírus HIV.

Quando a epidemia de HIV virou notícia nos anos 80, governos do mundo islâmico declararam seus países imunes aos vírus "ocidental", já que seus valores religiosos e culturais rejeitavam o sexo fora do casamento e encorajavam a fidelidade. Eles estavam parcialmente certos; esse estilo de vida resulta numa incidência baixa de HIV. Por anos, muitos líderes muçulmanos negaram a existência do vírus em seus países, até que não puderam mais.

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Na maioria do mundo, infecções por HIV e mortes por AIDS estão caindo, mesmo no sul e leste da África, onde mais da metade da população global com HIV vive. Novas drogas evitam a infecção e diminuem o impacto do vírus no corpo.

"Em regiões conservadoras de maioria muçulmana no norte da África, Oriente Médio e partes da Ásia, novas infecções vêm subindo desde 2001."

Ainda assim, em regiões conservadoras de maioria muçulmana no norte da África, Oriente Médio e partes da Ásia, novas infecções vêm subindo desde 2001. Os últimos números mostram que, apesar da disponibilidade de drogas antirretroviral, a região é um dos dois centros globais (o outro é o Leste Europeu) onde novas infecções de HIV e mortes por AIDS estão subindo. E mesmo assim, no Oriente Médio e norte da África, a proporção de pessoas com HIV recebendo tratamentos antirretrovirais, que podem salvar vidas, é a menor do mundo.

Então como religião, cultura e política na região ajudam, ou atrapalham, os esforços para lidar com o que pode ser — especialmente diante de uma guerra e instabilidade — uma epidemia de HIV?

Em julho último, estive na 21ª Conferência Internacional de AIDS em Durban, na África do Sul, lugar que 16 anos atrás foi palco de uma reviravolta em como o HIV era abordado na África. Na conferência, uma sessão foi dedicada a entender como comunidades muçulmanas estão lidando com o crescimento do HIV. O painel consistia de especialistas do mundo muçulmano, incluindo Wafaa Jlassi, uma mulher que vivo com HIV na Tunísia — a história dela é bastante chocante.

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Ela descobriu que tinha HIV depois que seu marido morreu. A autópsia mostrou que ele tinha morrido de AIDS, então ela também foi testada e descobriu que tinha o vírus. A família do marido presumiu, como ela era mulher, que ela tinha passado o vírus para ele. A polícia local contou aos vizinhos que ela tinha "a doença". Ela foi expulsa da casa de sua família. Por pouco não perdeu a guarda das duas filhas. O impacto repentino da morte do marido, descobrir que tinha HIV e ser tratada como lixo pela comunidade a deixou à beira do suicídio.

Falando em francês, ela comentou sua realidade na Tunísia: "Tenho medo da sociedade onde vivo, onde os homossexuais vivem com medo da lei, onde as mulheres perdem o emprego por ter HIV, e pessoas com o vírus não recebem tratamento", disse Jlassi, que agora trabalha para uma organização que visa conscientizar sobre o HIV no país. "Precisamos parar essa ignorância e sofrimento."

E a Tunísia é uma das sociedades menos conservadoras da região. Na Arábia Saudita, por exemplo, homossexualidade pode ser punida com morte, o que não é o começo ideal para lidar com o HIV. No Iraque, um país assolado por conflitos e onde pessoas HIV positivo são assassinadas, Amir Ashour, da organização pelos direitos gays Iraqueer, diz que o país finge que o HIV não existe.

A realidade é que de Marraquexe a Mogadíscio, de Dubai a Carachi, o estigma e discriminação contra pessoas com HIV — especialmente trabalhadores sexuais, gays e viciados em drogas — é um grande problema.

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"As práticas ruins geralmente são cometidas pelos médicos, clínicas e hospitais. Como entregar pessoas vivendo com HIV para o governo, o que coloca a vida delas em perigo" — Amir Ashour

Preconceito contra quem tem HIV e grupos vulneráveis existe no mundo todo, de países em desenvolvimento ao Reino Unido. Uma das promessas de campanha de Nigel Farage, em 2015, era proibir pessoas com HIV de entrar no país. Até pouco tempo atrás, os tabloides britânicos chamavam o vírus de "praga gay". Mas a dominância de atitudes tradicionais e conservadoras em sociedades da África, Oriente Médio e Ásia criou uma barreira significativa para lidar com o HIV. Na região, um exame positivo de HIV está longe de ser um assunto privado. A polícia frequentemente revela aos vizinhos que determinada pessoa é HIV positivo. Pacientes ficam marcados para sempre por seu status de HIV. Amir Ashour me contou que no Iraque "as práticas ruins geralmente são cometidas pelos médicos, clínicas e hospitais. Como entregar pessoas vivendo com HIV para o governo, o que coloca a vida delas em perigo".

Rita Wahad, da organização de HIV do Oriente Médio MENA Rosa, descreve a situação do portador do vírus na região como um dilema: "Aqueles que estão em grande risco de infecção também estão envolvidos em práticas, como trabalho sexual e relações homossexuais, que são condenadas pela doutrina religiosa, normas sociais e a lei. Esse estigma e a discriminação abastecem a epidemia afastando as pessoas com HIV e aqueles sob maior risco de infecção dos exames, tornando a prevenção e o tratamento cada vez mais difíceis".

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Esse preconceito profundamente enraizado é claro: ele pode ser a causa direta de destituição, falta de tratamento médico, violência e morte. Como Ban Ki-Moon, o secretário-geral da ONU, alertou ainda em 2008: "O estigma ajuda a tornar a AIDS um assassino silencioso, porque as pessoas têm medo da desgraça pública de falar sobre isso. Estigma é a principal razão por que a epidemia de AIDS continua a devastar sociedades ao redor do mundo".

Dentro do mundo islâmico, apesar do preconceito atual, há grandes disparidades na maneira como o vírus é abordado. Em países do Norte da África como Marrocos, os governos implementaram programas extensivos para evitar e tratar o HIV. No Irã e Paquistão, o aumento de infecções por HIV causado pelo crescimento do uso de drogas injetáveis tem sido confrontado diretamente pelos governos.

"Os políticos de um país, a cultura e a mentalidade dos legisladores, podem ter um impacto mais forte na política do que a religião. Mas em alguns países muçulmanos, os líderes religiosos têm a mente mais aberta do que os políticos", diz o iraniano Kamiar Alaei, especialista em direitos humanos da Universidade Estadual de Nova York. Junto com o irmão Arash, um médico, Alaei montou a primeira clínica de HIV no Irã no final dos anos 90, estabelecendo uma rede de trocas de agulhas que visava impedir o alastramento do vírus. Nadar contra a corrente numa sociedade conservadora como o Irã pode te render problemas. Os irmãos Alaei foram presos por três anos entre 2008 e 2011 por "tentar derrubar o regime muçulmano", apenas por participarem de algumas conferências sobre HIV nos EUA. Agora, o tratamento de HIV no Irã não é perfeito — na verdade, as pessoas que deveriam ajudar os pacientes muitas vezes os discriminam —, mas para um país onde a homossexualidade rende pena de morte, isso já é um progresso.

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Para a maioria dos governos no mundo islâmico, o pragmatismo da saúde pública superou a doutrinação religiosa, a proibição da homossexualidade e o preconceito do público. Os governos vêm respondendo à maré alta de HIV investindo na distribuição de camisinhas, agulhas limpas e tratamento para o vício em drogas e aqueles que têm HIV. Muito disso é implementado com ajuda de ONGs estrangeiras, o que também é uma maneira conveniente dos regimes conservadores evitarem serem vistos ajudando os "indignos" por um público bem pouco simpático.

"No Catar, apenas 5% dos homens e 2% das mulheres jovens expressaram tolerância a pessoas com o vírus."

Uma pesquisa em 2013 no Paquistão — que, como o Irã, tem lidado com uma epidemia de HIV alimentada principalmente pelo uso de drogas — descobriu que apenas 2% da população acha que a homossexualidade é "aceitável". No Catar, um país que deportou um jornalista estrangeiro da Al Jazira depois de secretamente fazer um teste de HIV nele, apenas 5% dos homens e 2% das mulheres jovens expressaram tolerância a pessoas com o vírus. Cruzando a fronteira, na Arábia Saudita, uma pesquisa mostrou que três quartos dos universitários acreditavam que pessoas com HIV e AIDS deveriam ser "isoladas do público".

No Sudão, que tem a segunda maior taxa de população soro positiva na região depois do Irã, o HIV é abordado à distância. O governo sudanês fica feliz em concordar silenciosamente e abrir as portas do fundo para ONGs estrangeiras trabalharem no país, sem precisar ser visto sancionando o que poderia ser considerado uma intervenção antirreligiosa.

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Na Turquia, o único país muçulmano onde a homossexualidade é legalizada por lei, o presidente Recep Erdoğan mostrou seu lado homofóbico em junho, impedindo a realização da parada gay de Istambul com canhões de água e balas de borracha. E mesmo por trás do véu reacionário, os oficiais reagiram rapidamente a uma epidemia de HIV com 900% de novas infecções em uma década, de 180 em 2005 para 1.800 em 2014. Diferente de muitos países muçulmanos, a população de 10 mil pessoas HIV positivo tem acesso a drogas antirretrovirais para fortalecer o sistema imunológico. Assim, o número de pessoas morrendo de AIDS na Turquia caiu dramaticamente.

"Há dois tipos de líderes religiosos. Os que dizem representar o divino e a única verdade. E outros que servem à população e que aceitam que são humanos imperfeitos."

Mas o que os imans têm a dizer sobre o HIV? No Marrocos, um líder religioso é conhecido como "Imam da AIDS" por ajudar pessoas portadoras do vírus. Mas nem todos eles agem assim. Quando questionado, numa conferência em Dubai, sobre por que alguns líderes encorajam crimes de ódio contra pessoas com HIV, Mohammed Abou Zaid, imam e um dos juízes mais antigos do Líbano, disse que há dois tipos de líderes religiosos. Aqueles que se acham superiores aos outros homens, que dizem representar o divino e a única verdade. E outros que servem à população e que aceitam que são humanos imperfeitos. "Esse segundo tipo tem um entendimento melhor do papel da religião em nossas vidas", disse Abou Zaid. "Mas o primeiro tipo, é melhor ficar longe deles; eles são mais perigosos que o vírus HIV."

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Abou Zaid disse que, na sua opinião, o islã deveria ser o agente de uma mudança na atitude sobre o HIV. "Tudo começou quando conheci uma muçulmana transgênero que disse que seu pai a expulsou de casa aos 14 anos. Ele fechou suas portas para ela. E eu disse 'Talvez seu pai tenha fechado a porta, mas tenha certeza que Deus nunca fecha a dele'. Deus criou todos nós, Deus nos ama, suas portas estão sempre abertas. Se me considero uma figura religiosa, eu também tenho que manter minhas portas abertas, assim como meu coração e mente."

No Reino Unido, onde há cerca de 10 mil pessoas vivendo com HIV, o número de novas infecções por ano caiu 25% desde 2005. A NAZ, uma organização de caridade de Londres, ajuda cerca de 60 muçulmanos no Reino Unido com HIV e treinou 50 imans na capital sobre como abordar saúde sexual e HIV nas mesquitas. O coordenador de serviço muçulmano Khaiser Khan me disse que os pacientes se sentem abandonados pela família e a religião. Mas, segundo ele, depois de um tempo, as pessoas geralmente conseguem contar para a família e não sentem que precisam abandonar sua fé.

Taric, um contador de Berkshire, costumava usar drogas, álcool e sexo como escapismo porque era secretamente gay. Ele descobriu que era HIV positivo em 2008 e se trancou no quarto por dois dias. Ele procurou ajuda na NAZ, contou para a irmã e acabou ajudando a treinar dez imans a lidar com a questão. "Isso tem a ver com lidar com a vergonha de ser gay, de ser um muçulmano com HIV, entender o que está acontecendo com você e se recuperar", diz Tariq.

Com uma nova geração de muçulmanos ocidentalizados, os velhos costumes culturais que historicamente colocaram o problema do HIV em cheque vão gradualmente desaparecer. Mas talvez seja hora dos líderes religiosos seguirem o exemplo de gente como Abou Zaid, tornando-se o rosto público da luta contra o HIV, e contra o estigma e a ignorância que desencadeiam o aumento das infecções pelo vírus no mundo islâmico.

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