Os fantasmas do Curupaiti

FYI.

This story is over 5 years old.

Tecnologia

Os fantasmas do Curupaiti

Antigo hospital no interior do Rio de Janeiro revela o abandono de pessoas com hanseníase no Brasil.

A primeira impressão que se tem de um dos 83 pavilhões do Hospital Curupaiti é que o tempo parou. Os corredores compridos sem iluminação se ramificam em quartos descuidados. O abandono aparente do pavilhão não oferece pistas do tempo em que vivemos. Nem o pôster de Dilma Rousseff dá aspecto de novidade no local. A tinta descascada, a umidade que mastiga as paredes dos aposentos e os azulejos encardidos dão impressão de estarmos em uma casa mal-assombrada. Porém, não são fantasmas que ocupam o local, e sim pessoas vivas que mostram o descaso do Brasil no combate e tratamento da hanseníase, uma das doenças mais estigmatizadas da nossa história.

Publicidade

Conhecida popularmente como "lepra" – do grego "lepros", que significa "com escamas" –  a doença, quando avançada, pode causar feridas graves e cria a imagem do leproso, aquele que ninguém deve chegar perto. Na antiguidade, por acreditarem que o contágio era sexual, relacionavam a doença com o pecado. Só figuras religiosas caridosas ousavam se aproximar de alguém com a doença. O resto ficava segregado, isolado até a morte.

Foto: Fabio Teixeira

No Brasil, o enredo não foi diferente. Os primeiros registros da enfermidade no país são do século XVI, após a colonização portuguesa e a chegada de escravos. Em 1714, foi inaugurado em Recife o primeiro Hospital de Lázaros – nome dado os portadores de hanseníase em referência a um dos Lázaros bíblicos curado por Jesus – sob a administração do padre Antônio Manuel. A doença continuou se espalhando e, a partir da segunda metade da década de 1920, o governo brasileiro se dedicou a construir asilos-colônias pelo país. A ideia era que internação compulsória seria capaz de erradicar a doença. O Curupaiti foi um dos locais de isolamento. Do tamanho do bairro de Copacabana e situado em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, o complexo hospitalar funcionava quase como uma cidade com 83 pavilhões e milhares de pacientes. Os métodos de entrada eram questionáveis. Os agentes de saúde caçavam a laço qualquer pessoa que manifestasse um sintoma primário de hanseníase e faziam com que muita gente escondesse a condição ou fugisse da cidade. Quem fosse capturado perdia contato com a família e o mundo, como se tivesse sido condenado à prisão perpétua – isso tudo sob a absoluta autoridade sanitária, sem nenhum tipo de processo legal ou mesmo a consulta de um médico independente.

Publicidade

Foto: Fabio Teixeira

Ainda hoje, décadas depois, várias histórias de abandono estão concentradas no local. Alguns pacientes, mesmo curados, foram largados pela família e excluídos pela sociedade. Grande parte deles passou quase a vida toda por trás dos muros do hospital e conseguiu a indenização do estado e uma casa própria dentro do complexo.

O pavilhão masculino fotografado por Fábio Teixeira é o retrato fiel do quanto o local vive às traças. Lá residem homens com sequelas graves da doença. Não são mais pacientes do hospital e não são auxiliados pelo corpo de médicos do Curupaiti e nem pela Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro. Quem mora lá vive em um limbo burocrático em que ninguém quer encostar por muito tempo.

Foto: Fabio Teixeira

Alguns dos moradores tiveram os membros amputados e se locomovem em cadeiras de rodas ou muletas. Todos precisam de ataduras e medicamentos para tratar das feridas. Pela dificuldade de locomoção e o preconceito que ainda permeia a hanseníase, muitos sequer conseguem arranjar um emprego.

Adalberto Coelho é um deles. Nascido na Favela do Caju e paciente do Curupaiti desde 1974, vive seus 64 anos com as sequelas irreversíveis da hanseníase. Antes, recebia visitas da família, mas a idade avançada da mãe exigiu que ela parasse com as visitas para não abusar da saúde da progenitora. Dentro de sua própria solidão, faz o possível junto com os outros residentes do pavilhão para ajudar na manutenção do local.

Publicidade

Foto: Fabio Teixeira

Já Marcos, conhecido como Marquinhos, mora há 16 anos no hospital. Metade desse período passou internado no ambulatório, enfaixado "que nem uma múmia" e sendo visitado por estudantes de Medicina para ser analisado, como relata com desconforto. Hoje mata o tempo pintando quadros e sonha em montar uma exposição com suas obras num futuro próximo. Como não consegue emprego, também pena para conseguir medicamentos e comprar as tintas. Foi um dos poucos que aceitou a dividir sua história para o fotógrafo e denunciar as condições de abandono que eles vivem ainda lá.

"A condição do hospital tá péssima, estaca zero", diz Marcos. "Cada dia piora mais. A gente não tem nada pra fazer o curativo. Os médicos estão em outros pavilhões e temos que ir atrás deles. Eles só ficam lá e não vem pra cá olhar. Se você cair doente aqui e não tiver um carro para te socorrer, você vai morrer aqui dentro do pavilhão. Comida a gente paga tudo, nada é de graça aqui."

Foto: Fabio Teixeira

Os dois moradores foram outrora pacientes no Curupaiti, mas permaneceram lá por não terem condições de buscar uma nova vida. Ruim no Curupaiti, mas pior é viver na rua. "Tem muita gente que é hanseniano na rua. Mas a maioria não quer se internar porque tá na cachaça e fica jogado na rua. Se é uma ferida crônica não dá pra curar e o bicho vai comer o corpo do cara. E ele não sente dor, não sente nada."

Problemas do passado no presente

Ainda hoje o Brasil é o segundo país com a maior incidência da hanseníase. São 30 mil casos por ano, atrás apenas da Índia. Mesmo com reconhecidos avanços no combate à doença, o país parece longe de encontrar solução para erradicar a doença, especialmente agora com a redução extrema de investimentos na saúde pública e o pacote de austeridade previsto para os próximos 20 anos.

Publicidade

"As pessoas desse pavilhão recebem um auxílio de assistentes sociais e psicólogos, mas é uma estrutura bem ruim", diz  Artur Custódio, presidente do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (MORHAN), entidade sem fins lucrativos criada em 1981 em Bauru (SP) por pessoas que tiveram hanseníase e que foram isoladas nas antigas colônias. "O pessoal que mora lá não quer interferência, é bem complexo a relação de poder naquele pavilhão em específico. Isso não tira a responsabilidade do Estado em melhorar aquele local."

Foto: Fabio Teixeira

De acordo com Artur Custódio, a situação do Curupaiti é bem parecida com a dos vários antigos hospitais construídos por causa do Mal de Hansen. "Nesse momento de crise econômica, o primeiro lugar que para de receber dinheiro na saúde são esses antigos hospitais. Eles já estão muito abandonados, em todo Brasil, com raras exceções", conta.

Durante a época de isolamento compulsório, cerca de 40 asilos-colônias foram construídos para abrigar os doentes. Com a proibição da medida no final dos anos 70, essas gigantescas infraestruturas foram perdendo sua razão de existir. Acabaram abandonadas ou reaproveitadas em novos hospitais. Com a promulgação do decreto nº 6.168 em 2007 pelo presidente Lula, o Brasil se tornou o segundo país do mundo a indenizar os pacientes que foram obrigados a viver nos leprosários. O primeiro foi o Japão, cuja política de isolamento era bem parecida com a brasileira. "Agora, a nossa luta é indenizar os filhos separados dos pais que foram internados," afirma Artur. Segundo ele, são mais de 40 mil filhos que foram separados de seus pais e outros milhares de ex-pacientes de hanseníase lutam na justiça para receber indenização do Estado.

Publicidade

Foto: Fabio Teixeira

Por que é tão difícil erradicar a doença? A hanseníase é uma doença complexa. Até hoje suas causas não são muito claras. Para completar, os indícios demoram a dar as caras. Seu agente catalisador é a bactéria Mycobacterium leprae, ou bacilo de Hansen, que ataca principalmente os nervos periféricos e a pele. "A hanseníase é uma doença que ataca muito lentamente e demora muito para aparecer", explica Milton Ozório Moraes, chefe do Laboratório de Hanseníase da Fundação Oswaldo Cruz e pesquisador de saúde pública. "Um dos problemas é a dificuldade no diagnóstico, já que às vezes ela aparece na forma de uma mancha e o paciente demora pra perceber e acaba procurando um médico muito tempo depois, quando ela já está avançada."

Segundo Ozório, além da demora da pessoa buscar um médico para averiguar as manchas iniciais na pele, também há uma dificuldade no diagnóstico clínico da doença e a falta de um exame preciso para detectar a presença da bactéria. "A maior parte dos médicos generalistas e clínicos gerais não conhecem a doença, porque têm pouca formação em dermatologia. Então normalmente o paciente pode acabar tratando as manchas como se fosse uma micose e passa por vários serviços médicos até chegar a um atendimento especializado."

Foto: Fabio Teixeira

O tratamento, feito por meio de antibióticos, é demorado e também acaba contribuindo um pouco para erradicar a doença. "As formas mais brandas da doença com lesões localizadas tem em torno de seis meses de tratamento e as formas mais graves com muitas lesões precisam ser tratadas por doze meses." Porém, reduz amplamente o risco de contágio em pessoas mais próximas.

Publicidade

Com a dificuldade de reconhecer a causa, o bacilo de Hansen aproveita a falta de tratamento e contagia pessoas próximas ao convívio do hanseniano. O contágio não se dá pela saliva, sangue e muito menos por relações sexuais. "É sempre é muito difícil saber. A bactéria não consegue ser mantida em cultura in vitro, mas a gente imagina que o contágio é parecido com o da tuberculose. É importante lembrar que a maior parte das pessoas já são resistentes e têm imunidade à bactéria."

Foto: Fabio Teixeira

Tanto Ozório e Custódio afirmam que um dos grandes problemas do Mal de Hansen estão relacionados profundamente com camadas mais desfavorecidas da sociedade. "Ela acaba se manifestando em um grupo muito particular de pessoas que normalmente são submetidas à privação nutricional, stress e uma série de problemas sociais graves", explica o pesquisador. "No Rio de Janeiro percebo que a maior parte dos atendimentos ambulatoriais são de pessoas que vivem em bairros mais pobres como, por exemplo, na região da Baixada Fluminense. Claro que é uma doença causada por uma bactéria, mas na verdade a dificuldade de acesso médico somada à vulnerabilidade de uma faixa de população que vive em extrema pobreza facilita o desenvolvimento da doença."

Para Artur, a hanseníase é uma doença negligenciada porque incide em pessoas negligenciadas pelo Estado. Não há uma campanha eficiente nos meios de comunicação para conscientizar a população da doença, que exige atenção desde o início para evitar sequelas mais graves. "Há um preconceito do secretário de Saúde em não incluir a doença no seu planejamento, do próprio Ministério da Saúde não fazer campanha de televisão. O Brasil reduziu a doença nesses anos, mas não reduziu na mesma velocidade dos outros países e isso pode estar associado ao preconceito," diz Custódio.

Foto: Fabio Teixeira

Sobre a situação crítica dos moradores do pavilhão masculino, o Motherboard entrou em contato com a Secretaria de Saúde do Rio de Janeiro que não respondeu até o fechamento da reportagem, porém adiantou que os moradores do pavilhão não são pacientes do hospital e por isso a Secretaria e a administração do hospital não são responsáveis pelos mesmos.