Image: Getty/Paolo Carnassale​
Imagem: Getty/Paolo Carnassale.
Tecnologia

Descobertas estranhas sobre a matéria escura podem reescrever a história do universo

Cientistas acreditam que matéria escura é a chave para a formação das galáxias no cosmo. Agora, uma série de descobertas bizarras ameaça minar tudo que achávamos que sabíamos.

Em novembro de 2019, astrônomos da Academia de Ciências da China em Pequim publicaram um artigo identificando 19 galáxias que podem violar a teoria mais fundamental de como o universo se formou.

Eles estavam vasculhando o céu atrás de galáxias não-descobertas que parecessem não ter o componente comum da matéria escura, tentando acrescentar evidência ao fenômeno chocante que os cientistas começaram a observar ano passado. E dizem ter achado um novo grupo delas.

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Até recentemente, era uma suposição quase unânime que grandes quantidades de matéria escura invisível eram a chave para a formação de galáxias; os efeitos gravitacionais e induzidos por aglomerados de matéria escura no universo produzem discos em turbilhão de nuvens gasosas, estrelas e matéria escura. Matéria escura tinha que ser a maior parte da matéria nessas galáxias, segundo os modelos padrão do universo, ou elas nunca teriam se formado.

Mas desde 2016, pesquisadores continuam topando com galáxias que não parecem dominadas por matéria escura. Alguns cálculos sugerem que essas galáxias podem nem ter matéria escura nenhuma. De qualquer maneira, galáxias que possuem muito menos matéria escura do que o esperado significam que os físicos têm muita coisa para explicar: por que elas não têm matéria escura, e como elas se formaram em primeiro lugar?

Galáxias sem matéria escura podem reescrever a história do universo

Diferente dos pesquisadores em Pequim, o professor Pieter van Dokkum de Yale não estava tentando encontrar anomalias entre as galáxias “ultradifusas” que ele estuda – galáxias com pouquíssimas estrelas. Afinal de contas, antes de van Dokkum fazer uma descoberta por acaso em 2018, havia pouca razão para esperar encontrar qualquer galáxia que se formou e continuou a existir sem matéria escura.

Na verdade, van Dokkum e sua equipe esperavam encontrar matéria escura em tudo que observavam. Diferente da nossa Via Láctea lotada de estrelas, onde a matéria escura está apenas nas periferias, galáxias ultradifusas deveriam estar cheias de matéria escura. Em vez disso, a análise deles identificou, pela primeira vez, uma galáxia sem nenhuma matéria escura.

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“O modo como as estrelas se movem deveria ser inteiramente dominado pela quantidade de matéria escura”, ele diz. “O fato de encontrarmos esse déficit não foi um resultado sutil.”

Apesar das descobertas de van Dokkum terem sido e continuam sendo controversas, novas análises das galáxias observadas por gigantescos telescópios continuam encontrando buracos nas teorias aceitas. O novo estudo dos pesquisadores de Pequim destaca perguntas ainda em aberto sobre a forma e estrutura das galáxias.

Tentativas de explicar a aparente falta de matéria escura em galáxias-anãs identificadas caem em duas categorias bem amplas: teorias sobre como e por que galáxias podem ter sido despidas da matéria escura que possuíam antes, e teorias que postulam a formação de galáxias sem nenhuma matéria escura.

No primeiro grupo, pesquisadores como Go Ogiya do Observatório Côte d'Azur na França estão explorando um fenômeno chamado “tidal stripping” [“remoção por efeito de maré”], onde a matéria é empurrada para longe de uma galáxia por forças como de maré que surgem quando ela está interagindo com o campo gravitacional de outra galáxia. Mesmo antes de van Dokkum relatar suas observações de duas galáxias deficientes em matéria escura, havia evidência de que remoção por efeito de maré afetava desproporcionalmente matéria escura, que tem ligações menos fortes que matéria visível ou “bariônica” (ou seja, estrelas) no centro da galáxia.

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“Se a matéria bariônica é retirada da galáxia satélite depende de sua estrutura: a distribuição de estrelas determina sua resistência a forças de maré”, Ogiya escreveu num e-mail. “Em minhas simulações numéricas… estrelas dificilmente são retiradas da galáxia satélite, enquanto seu tamanho dobra como resultado de retirada de matéria escura.”

Ogiya também sugere um processo pelo qual galáxias podem se formar sem nunca conter matéria escura. As chamadas “galáxias-anãs de maré” poderiam se formar quando matéria escura e matéria bariônica são “ejetadas” de uma galáxia preexistente devido a forças de maré, mas os componentes de matéria escura evaporam devido a sua velocidade maior, restando apenas estrelas e gás para formar uma nova galáxia.

No entanto, as teorias que podem mudar o jogo são aquelas que reescrevem a história do universo primordial, cerca de 13 bilhões de anos atrás, muito antes do “auge da formação de galáxias” quando a remoção por efeito de maré pode ter acontecido. Mesmo se dizendo agnóstico sobre explicações propostas para deficiência em matéria escura, van Dokkum prefere uma teoria que sugere que matéria escura e gás interagiram logo depois do Big Bang de maneiras que não são previstas atualmente. Isso poderia formar aglomerados de gás que se separariam da matéria escura e depois formariam galáxias apenas de gás e estrelas.

“Isso seria muito legal, porque então poderíamos aprender algo sobre as condições do universo primordial e sondar a época quando a formação de galáxias ainda não estava em andamento”, ele diz.

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Deficiência de matéria escura ou erro de cálculo?

Alguns cientistas acreditam que os resultados de van Dokkum, mesmo sendo impressionantes, podem não ser confiáveis. Como matéria escura não pode ser vista, quanto disso está presente numa galáxia deve ser deduzido pelo comportamento das estrelas na galáxia, o que pode ser observado. Calcular esse comportamento (por exemplo, velocidade das estrelas), depende de outras características galáticas, como formato e sua distância de nós.

Ignacio Trujillo, um cientista especializado em Astronomia Extragalática no Instituto de Astrofísica das Canárias, mostrou que o comportamento estranho dessas galáxias ultradifusas pode ser explicado medindo quão distantes elas estão usando métodos alternativos. Se as galáxias estão muito mais perto da Terra do que a distância usada nos cálculos de van Dokkum, então calcular seus componentes de matéria escura rende resultados dentro do alcance esperado.

“Você se vê nesse regime estranho onde tem que se perguntar: quão estranha uma hipótese pode ser para que seja menos estranha que não encontrar matéria escura?”

Segundo Trujillo, é possível que galáxias muito pequenas se formem sem a presença de matéria escura, mas não do jeito que galáxias eram formadas logo após o Big Bang. Em vez de gás e estrelas se aglomerando devido a efeitos gravitacionais, essas galáxias se formam quando uma galáxia preexistente colide com outra e matéria residual é retirada das galáxias que colidiram para formar uma nova galáxia – sem nenhuma matéria escura. Em contraste com galáxias formadas por remoção por efeito de maré que Ogiya estuda, essas galáxias vivem por um período relativamente curto para os padrões cósmicos: algumas centenas de anos. Exemplos já foram identificados nas últimas décadas, ele diz, mas não são os tipos de galáxias deficientes em matéria escura que desafiam o entendimento atual do nosso universo.

“Pessoas já encontraram coisas que chamaram de galáxias sem matéria escura, mas são características transitórias que depois desaparecem”, ele diz. “A novidade seria encontrar uma galáxia que foi formada originalmente no universo primordial sem matéria escura, e acredito que ainda não temos candidatas fortes pra isso.”

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E colegas de Trujillo já estão dizendo que encontraram problemas com a pesquisa identificando 19 galáxias sem matéria escura. A American Astronomical Society publicou uma nota de pesquisa de autoria de Jorge Sanchez Almeida que argumenta que os cálculos de matéria escura nas 19 galáxias não levaram em conta o verdadeiro formato de galáxias-anãs, as simplificando como “em formato de disco” em vez de formas elípticas em 3D.

Para van Dokkum, as perguntas nos dois lados do debate ainda estão abertas. As duas galáxias anômalas que ele identificou como deficientes em matéria escura são estranhas por várias razões, pelos padrões de qualquer um, ele diz. Se elas na verdade contêm matéria escura, contrariando sua própria hipótese, outras suposições sobre a distribuição de matéria escura, além da forma e orientação das galáxias e suas histórias, precisam ser revisadas.

“Você pode pensar em cenários improváveis onde essas galáxias contêm matéria escura”, ele diz. “E improvável é relativo nesse caso para a hipótese de que não há matéria escura.

“Você se vê nesse regime estranho onde tem que se perguntar: quão estranha uma hipótese pode ser para que seja menos estranha que não encontrar matéria escura?”

Futuras pesquisas

A “coisa divertida” sobre as galáxias-anãs ultradifusas que van Dokkum e outros estão estudando é que elas são “próximas e brilhantes”, disse van Dokkum, o que torna relativamente mais fácil investigar seus comportamentos.

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Com os telescópios poderosos disponíveis hoje, van Dokkum espera não só fazer medições mais precisas da velocidade e distância das galáxias, mas também identificar a época em que as galáxias se formaram, usando novos dados do telescópio Hubble. Essa evidência empírica descartaria toda uma classe de explicações para a aparente deficiência de matéria escura, de um jeito ou de outro.

Nicolas Martin, um pesquisador do Observatório de Estrasburgo na França, acredita que as observações necessárias para levar a pesquisa adiante estão um pouco além dos limites do que é possível fazer com o melhor aparato disponível no momento. Num e-mail que ele enviou do local desse telescópio de vanguarda, ele disse que a comunidade científica provavelmente terá que esperar mais duas próximas gerações de telescópios, atualmente planejadas ou sob construção no Chile e Havaí, antes de poder gerar medições mais precisas da velocidade das estrelas em galáxias-anãs.

Enquanto isso, Martin, van Dokkum, Ogiya e outros vasculharão o céu para determinar quantas outras galáxias estranhas deficientes em matéria escura existem.

“Se elas forem muito comuns, então precisam ser naturalmente produzidas pelos nossos modelos de formação de galáxias”, diz Martin. “Se não forem comuns, então talvez sejam apenas esquisitices, vindo de ambientes que são casos pouco compreendidos, o que seria menos problemático no geral.”

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