Judy Mikovits tem uma história urgente pra contar. Basicamente, a coisa é assim: cientistas importantes do governo seriam responsáveis pela pandemia de covid-19, e muito mais além disso. Ela sabe porque já foi um deles, antes deles tentarem destruí-la numa tentativa de acobertar seu trabalho maligno. Os principais oficiais de saúde pública dos EUA, ela diz, não são confiáveis.
Mesmo sendo um nonsense absoluto (e pra deixar bem explicadinho, é mesmo) muita gente quer ouvir a história dela, por isso Mikovits está no topo da lista de best-sellers da Amazon e viralizando tão ferozmente – com uma ajudinha das maiores figuras dos mundos antivacina e de teorias da conspiração, além de várias figuras públicas mais mainstream, inclusive graças aos governistas no Brasil – no YouTube e Facebook, apesar deles tentarem tirar o conteúdo risível dela de suas plataformas. Que essa veterana da conversa de maluco esteja tendo este momento nos holofotes é uma surpresa – e ainda totalmente previsível.
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O que surpreende sobre o momento viral de Mikovts, ex-pesquisadora de fadiga crônica, é a queda meteórica dela mais de uma década atrás, quando um estudo em que ela estava envolvida foi recolhido. Depois ela foi demitida do laboratório onde trabalhava, por outra polêmica diferente, e acusada de roubar propriedade de seu antigo empregador. (As acusações acabara arquivadas.) Nos anos seguintes, Mikovits fez um rebranding como uma suposta especialista do mundo antivacinas. Com muitas outras figuras antivaxers, agora ela encabeça o ceticismo com o coronavírus, uma posição tão sem evidências como seus empreendimentos anteriores e ainda assim, considerando a era frágil em que vivemos, ela está tendo muito mais sucesso.
Mikovits é a personagem central do suposto documentário Plandemic, de uma produtora New Age chamada Elevate Films e seu CEO Mikki Willis. (Digo “suposto” porque o que está circulando é um trecho de 26 minutos do filme – não está claro se ou quando o documentário inteiro vai aparecer.) Nos últimos dias, o vídeo tem circulado pesadamente por todas as grandes plataformas de redes sociais. O YouTube já o derrubou várias vezes por violar as diretrizes de comunidade, e o Facebook, onde o vídeo se espalhou entre os tiozãos sem noção, anunciou ontem que também vai remover o vídeo por promover desinformação. (A Digital Trends relatou que até o vídeo ser removido do Facebook, ele tinha conseguido 1,8 milhão de visualizações, 17 mil comentários e quase 150 mil compartilhamentos.) Apesar disso, o vídeo continua circulando, como a NBC News mostrou ontem, com ajuda de luminares como Larry the Cable Guy e vários influenciadores do Instagram.
O número de alegações comprovadamente falsas e enganosas no vídeo é quase grande demais para listar, mas algumas são especialmente descaradas. Mikovits é a única “especialista” entrevistada no vídeo, o que, em si, já é um sinal vermelho. Outro é a linguagem apocalíptica e inflamatória usada pelo diretor Mikki Willis, que começa dizendo, numa voz sombria, que “os capangas da Big Pharma travaram uma guerra contra a Dra. Mikovits” por seu trabalho.
Na conversa deles, Willis e Mikovits dizem que ela foi “presa e colocada sob uma ordem de mordaça” por fazer “uma descoberta que contradizia a narrativa acordada”. Um resumo extraordinariamente vago e enganoso do que realmente aconteceu. Em 2009, Mikovits e seus coautores afirmaram, num artigo publicado na Science, que a pesquisa deles mostrou que um retrovírus de camundongos chamado XMRV era responsável para síndrome de fadiga crônica em humanos. Os métodos por trás do estudo foram imediatamente criticados pela comunidade científica, e enquanto Mikovits e alguns de seus coautores passaram dois anos defendendo os resultados, o artigo foi removido pela própria Science. (Antes disso, em outubro de 2011, o artigo foi parcialmente removido depois que os 13 coautores assinaram uma declaração admitindo que contaminação prejudicou as amostras fornecidas por um dos laboratórios envolvidos no estudo. Os autores não conseguiam concordar sobre o texto de uma retratação completa, então o jornal recolheu o estudo sem consentimento deles em dezembro de 2011.) Desde então, outros estudos confirmaram que o retrovírus de camundongos absolutamente não causa a síndrome de fadiga crônica.
Em 2011, Mikovits também estava fazendo alegações que, pensando agora, pareciam um prenúncio. Segundo o New York Times na época, Mikovits “levantou ceticismo entre outros cientistas dizendo em conferências que vírus da leucemia murina estavam relacionados com autismo”. Assim que o estudo foi parcialmente removido, no começo de dezembro daquele ano, Mikovits foi demitida do laboratório em Reno onde trabalhava na época, o Whittemore Peterson Institute, por se recusar a compartilhar uma linha celular – um tipo de estrutura celular – com um de seus ex-colaboradores. (O instituto negou que a demissão dela teve a ver com o estudo removido.) Depois, Mikovits foi presa e acusada de roubo; o instituto disse que ela roubou um computador e documentos do laboratório deles. As acusações foram arquivadas em 2012, em parte por causa da bagunça de conflitos entre as partes do caso. Como a Science escreveu: “O juiz se retirou do caso porque recebeu doações de campanha do cofundador do WPI Harvey Whittemore, que estava sendo processado por contribuições de campanha ilegais para um oficial federal”.
Um processo civil que o Peterson Institute abriu contra Mikovits, que pedia milhões de dólares em danos, foi decidido a favor do instituto. A questão parece ter sido acertada no tribunal; a quantia que ela teve que pagar, se teve, não está disponível para o público. Os documentos do tribunal mostram que Mikovits fez uma petição de falência na Califórnia em 2012. Um processo federal que Mikovits abriu contra seu antigo empregador foi arquivado em março de 2020.
Tudo isso apresenta uma narrativa bem clara: uma cientista envolvida em trabalho questionável e, supostamente, uma conduta ainda mais questionável envolvendo roubo de documentos, acabou sofrendo as consequências. Mikovits virou essa narrativa de cabeça pra baixo, usando esses fatos como prova de que ela sofreu porque ousou desafiar o establishment. Ela também usa o que aconteceu depois assim – e com bastante sucesso, talvez porque alguns dos envolvidos são tão proeminentes agora. Mas os fatos do que aconteceu são mundanos.
Depois de sua demissão pública, Mikovits não foi banida da comunidade científica, mas encontrou outro trabalho, supervisionando dados de um estudo governamental sobre fadiga crônica encabeçado pelo Dr. Ian Lipkin da Universidade de Colúmbia. Aqui é onde o Dr. Anthony Fauci, que Mikovits acusa de pessoalmente sufocar sua pesquisa, entra.
Fauci, claro, é o maior especialista envolvido na resposta do governo dos EUA para o coronavírus. Em 2012, ele comandava o Gabinete de Pesquisa de AIDS do Instituto Nacional de Saúde (INS). O estudo liderado por Lipkin foi iniciado a pedido de Fauci e envolvia vários institutos, e visava finalmente estabelecer se o XMRV estava ligado à fadiga crônica. O estudo descobriu, definitivamente, que não estava, e a questão foi firmemente resolvida. Mikovits pode até ser vista numa entrevista coletiva de 2012 sobre as descobertas, descrevendo seu papel no estudo e aparentemente concordando com as descobertas. (Ela aparece aos 19 minutos do vídeo do link.)
“Não está lá”, ela diz. “Agora é hora de usar esses materiais valiosos e seguir em frente. E ciência é sobre isso. E essa é uma oportunidade para a população paciente e por isso acho tão importante que a pesquisa seja apoiada nesse nível pelo Instituto Nacional de Saúde.”
“A Dra. Mikovits foi financiada num estudo visando testar se ela e seus colegas podiam replicar as descobertas do artigo de 2011 da Science, que mostravam associação entre XMRV e síndrome de fadiga crônica/encefalomielite miálgica”, Lipkin disse a VICE por e-mail. “Ela não conseguiu replicar essas descobertas. Equipes de pesquisa do INS e CDC também não encontraram uma associação.”
Aparentemente, era a ciência funcionando como deveria. Mas em 2014, as coisas deram uma guinada, e Mikovits ressurgiu no mundo antivaxer. Ela palestrou, por exemplo, várias vezes no Autism One, a maior conferência antivacinas dos EUA. Nessas palestras, ela introduziu alegações de araque como que Zika, Ebola e vírus do Nilo Ocidental tinham sido “produzidos em laboratório”.
Ao mesmo tempo, a narrativa cercando o trabalho de Mikovits começou a se transformar. Em 2018, como o Snopes apontou naquele ano, ela começou a “chamar atenção da comunidade de teorias da conspiração médicas”, com sites como o Natural News e Real Farmacy – que frequentemente promovem pseudociência e teorias da conspiração – oferecendo outra versão dos eventos onde ela tinha sido perseguida por revelar a verdade que o Estado Profundo não queria que visse a luz. O Real Farmacy descreveu sobre ela e as acusações criminais assim:
Ela foi jogada na cadeia por uma pesquisa que descobriu que retrovírus mortais estão sendo transmitidos para 25 milhões de americanos através de vacinas humanas… Foi um pouco depois que as implicações do artigo se tornaram claras, e o Estado Profundo viu a ameaça que estava sendo colocada sobre a indústria de vacinas, que seus mecanismos poderosos de acobertamento, ofuscação e enganação foram ativados.
O trabalho de Mikovits, claro, não provou nada disso, e nem era sobre vacinas. Logo depois, segundo o Snopes, ela também começou a dizer que o próprio Fauci tinha mandado um e-mail pra ela ameaçando prendê-la se ela fosse vista em propriedade do INS. Fauci negou ter mandado qualquer e-mail do tipo para o Snopes, dizendo ao site:
Não faço a menor ideia do que ela está falando. Afirmo categoricamente que nunca mandei esse e-mail para a Dra. Ruscetti. Minha equipe de TI aqui no INS analisou todos os meus e-mails e essa mensagem não existe. Dito isso, eu nunca faria uma declaração assim por e-mail para ninguém, dizendo que a pessoa seria “imediatamente presa” se colocasse os pés em propriedade do INS.
Agora em Plandemic, Mikovits alega que ficou “sob uma ordem de mordaça por cinco anos” e foi obrigada a falir, e como resultado, não pode trazer “97 testemunhas, incluindo Tony Fauci e Ian Lipkin… que teriam que testemunhar que não fizemos nada de errado”. A linha do tempo dela vai e volta incoerentemente de seu trabalho no Whittemore para o estudo financiado pelo INS. Ela apresenta uma narrativa onde ela foi silenciada e perseguida sem abordar o que realmente aconteceu com a carreira dela. Ela também diz que o “Departamento de Justiça e o FBI estavam em conluio” para silenciar a verdade por trás do caso, sem esclarecer de que caso está falando.
Tudo isso equivale a acrescentar seu histórico como prova de sua credibilidade, sem abordar os detalhes desse histórico. Essa é uma manobra típica dos círculos de teoria da conspiração, onde credenciais do establishment são uma moeda valiosa que não precisa ser examinada de muito perto, e ter sido perseguido pelo establishment é ainda mais valioso.
Disso, o trecho com Willis muda diretamente para promoção do livro. Mikovits escreveu recentemente Plague of Corruption com um coautor chamado Kent Heckenlively, que é editor fundador do site antivaxer Age of Autism e colaborador regular do Bolen Report, um site que frequentemente apresenta retórica antivacina. (Ele tem uma seção devotada a “MENTIRA DAS VACINAS”, pra ter uma ideia.) Mas Mikovits arranja tempo para fazer outras alegações desconcertantes, como o Dr. Davi Gorski do blog Respectful Insolence aponta: “De fato, a quantidade de nonsense, desinformação e teorias da conspiração da resposta de Mikovits é realmente épica. Ela liga a infecção de COVID-19 a doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC)… Ela concorda com a teoria da conspiração que os médicos estão sendo obrigados a registrar equivocadamente mortes por outras causas como COVID-19”.
Além disso, Mikovits alega que o coronavírus explodiu na Itália por causa de uma “vacina para influenza não-testada” cultivada em células de cachorro.
“Cães têm muitos coronavírus”, diz Mikovits, confiante. “Por isso eles não estão fazendo o teste lá.”
Isso volta para uma alegação que Mikovits fez num vídeo sobre o qual a VICE deu uma matéria em abril. No vídeo, que foi removido desde então, Mikovits diz que o novo coronavírus foi secretamente causado por uma “cepa ruim” de vacina de gripe que circulou entre 2013 e 2015, acrescentando que máscaras vão “ativar” o vírus e reinfectar os usuários de novo e de novo. (Lavar as mãos também é desencorajada, por razões igualmente incoerentes, apesar de ser um padrão básico de saneamento desde o meio dos anos 1800.)
“É seguro dizer que qualquer coisa que possa ser patenteada esteja sendo silenciada porque não há como lucrar com isso?”, pergunta Willis, perto do fim do trecho do documentário. “Todos esses remédios naturais que temos há milhares de anos?”
E sem surpresa, né, Mikovits concorda que isso está acontecendo. “O jogo é evitar as terapias até que todos estejam infectados e empurrar as vacinas”, ela diz, “sabendo que vacinas de gripe aumentam a chances de pegar covid-19 em 36%”.
Essa alegação, que vacinas de gripe aumentam as chances de pegar coronavírus, é profundamente falsa, assim como as alegações de Mikovits e Willis sobre a eficácia da hidroxicloroquina, a droga antimalária elogiada pelo presidente Trump que fracassou em ajudar pacientes com covid-19 em estudos hospitalares. Essas alegações são acompanhadas, logo depois, por Mikovits garantindo que “micróbios de cura” podem ser encontrados no mar e na areia de praias. (Por isso, fica implícito, as praias foram fechadas nas costas dos EUA.)
“Você tem sequências no solo, na areia, você tem micróbios de cura nos oceanos, na água salgada”, Mikovits proclama, enquanto aparece uma tomada aérea de uma praia. “Isso é insanidade.”
Tudo isso parece estar incluso no serviço de apontar que devemos reabrir os EUA e sair de casa. Além disso, como Gorski do Respectful Insolence aponta, Willis inclui um vídeo de Dan Erickson e Artin Masahi, dois médicos de tratamento urgente na Califórnia cujo estudo amador extrapolando o incidente de novos anticorpos de coronavírus em seus pacientes para a população americana, e argumentando pela reabertura dos EUA, foi condenado pelos American College of Emergency Physicians e o American Academy of Emergency Medicine, que disseram numa declaração: “Essas reflexões imprudentes e não-testadas não falam pelas sociedades médicas, e são inconsistentes com a ciência e epidemiologia atuais em relação ao covid-19. Como donos de clínicas de tratamento urgente, parece que esses dois indivíduos estão liberando dados enviesados e sem revisão por pares para avançar seus interesses financeiros pessoais, sem se importar com a saúde do público”.
Mikovits também acha tempo para afirmar que a droga Suramin pode tratar autismo e “devolver a voz das crianças”, mas foi reprimida pela Monsanto, o que é ainda mais absurdo. A droga foi administrada para pacientes num pequeno teste clínico aleatório na Escola de Medicina da UC San Diego, que descobriu que uma dose intravenosa “produzia melhoras dramáticas, mas transitórias, nos sintomas centrais” do espectro de autismo. Não está claro por que ela alega que a Monsanto está envolvida, ou mesmo qual o objetivo de trazer o Suramin para a discussão, exceto outra tentativa de enfiar a Maligna Indústria Farmacêutica na conversa.
O volume de nonsense e revisionismo histórico no vídeo é exaustivo – e por isso sua viralização é tão deprimente. E mesmo que as alegações no vídeo sejam incoerentes, o ponto subjacentes é claro: o medo e pânico com o covid-19 são parte de uma trama maior de opressão e escravização, com Fauci no topo. É uma teoria da conspiração clássica, numa embalagem ligeiramente mais contemporânea.
“Essas instituições que estão poluindo nosso meio ambiente e nossos corpos, havia uma época em que elas precisavam lutar suas próprias batalhas”, proclama Willis. “Mas elas fizeram um trabalho muito bom em manipular as massas. Vozes dissidentes não são mais permitidas neste país livre, que é algo que nunca achei que viveria para ver.”
“Fica além da compreensão como uma sociedade pode ser tão enganada”, concorda Mikovits. E que é uma “ótima notícias”, ela diz, “que os médicos estejam acordando”.
Mikovits e Willis tiveram ajuda de famosos para promover Plandemic: O vídeo foi amplamente promovido pela organização antivaxer de Robert F. Kennedy Jr. Children’s Health Defense; Kennedy também escreveu o prefácio de Plague of Corruption. Até ontem, graças a essas promoções e atenção de sites populares de direita e teorias da conspiração como o Gateway Pudit, e pessoas como a comentarista conservadora Michelle Malkin, que o promoveu entusiasmadamente, o livro estava em primeiro lugar dos best-sellers da categoria na Amazon.
É aqui que as coisas ficam inteiramente previsíveis. Enquanto a pandemia se arrasta, nada no mundo é mais atraente, para algumas pessoas, que encontrar novas razões para acreditar que as coisas não são tão ruins quanto parecem. Ficar em casa, sair para trabalhar ou se colocar em risco no trabalho todo dia: tudo isso é, de sua própria maneira, difícil, deprimente e está mudando nossas vidas. A preocupação com morte, doença e colapso econômico torna qualquer alternativa atraente.
A sugestão de que a pandemia foi “planejada” ou aumentada alimenta isso. Ela sugere que pessoas inteligentes vão olhar além da história oficial e escolher ter raiva em vez de medo. Ela sugere que Fauci, cientistas e especialistas em saúde pública – toda a comunidade médica – se alinharam com uma mentira perigosa e prejudicial. Ela sugere que tudo vai ficar bem, se você simplesmente escolher não acreditar neles.
E mesmo que nada disso seja verdade, e enquanto a ameaça do coronavírus é mais real e mortal que nunca, tem, como Plandemic prova, muita atenção para ser conseguida, e dinheiro para ser ganho, em dizer o contrário para as pessoas.
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