Em 2013, quando o Uruguai se tornou a primeira nação da era moderna a legalizar a maconha, a maioria dos cidadãos era contra. Ainda assim, apesar de um profundo ceticismo da população, nenhum dos desafios ou falhas da lei percebidas foram suficientes para gerar impulso de tentar reverter a legislação. Em vez disso, durante o primeiro turno das eleições nacionais em outubro, a legalização da cannabis foi quase que esquecida como questão. O assunto foi removido do discurso político.
O que aconteceu no Uruguai estabelece um precedente incrível, porque legalização de drogas é algo visto amplamente pelos candidatos como um grande risco político. Mas aí isso aconteceu de novo no Canadá, o segundo país a legalizar a maconha, um ano atrás, durante as eleições nacionais também em outubro. O presidente Trudeau foi reeleito, com a questão da maconha tomando um papel secundário. Então o que está acontecendo?
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O Uruguai tipicamente é um país liberal, mais do que os vizinhos. Quando a lei de legalização da maconha foi aprovada seis anos atrás, e entrou em vigor em 2014, o presidente Tabaré Vazquez foi ainda além, sugerindo que o país deveria legalizar a cocaína também. A coisa não foi tão longe, e depois de cumprir seu mandato, Vazquez vai sair da corrida presidencial. Seu sucessor será escolhido no segundo turno este mês, mais nenhum candidato falou muito sobre a nova economia do país.
“As pessoas viram que cannabis legal não acabou com pânico em massa ou zumbis andando pelas ruas de Montevidéu” disse Geoff Ramsey, coautor de um relatório sobre os impactos das leis de cannabis no Uruguai. “Isso simplesmente não teve impacto na vida da maioria das pessoas.” Desde abril do ano passado, mais pessoas agora são a favor da cannabis legal que contra.
Assista ao nosso documentário “Por dentro dum clube canábico uruguaio”
Daniel Martínez, o candidato de centro-esquerda da coalizão Frente Ampla do Uruguai, ganhou o primeiro turno da eleição presidencial, mas como o resultado ficou muito perto de 50%, ele não levou a presidência logo de cara. Em 24 de novembro, ele vai concorrer com Luis Lacalle Pou do Partido Nacional conservador – que pelas pesquisas agora tá na frente.
“Lacalle Pou é crítico da legalização – mas só por causa da ênfase na regulamentação”, disse Ramsey. “Na verdade, ele apresentou o primeiro projeto de lei para legalizar a cannabis no Uruguai, mas era inteiramente laissez-faire, com ênfase em interferência limitada do Estado.”
O único candidato que falou seriamente sobre repelir a lei uruguaia para maconha não era um concorrente sério à presidência. O ex-general Guido Manini Ríos lidera o partido nacionalista Cabildo Abierto (Fórum Aberto), que foi criado apenas em março, mas teve uma ascensão repentina. Observadores dizem que as atitudes dele para com a lei são mais um ataque a agenda liberal do partido da situação, e seus valores conservadores, do que um problema com a eficiência da lei em si.
As novas regras para cannabis permitem que as pessoas cultivem as próprias plantas para consumo ou criem coletivos para plantação em grupo. Mas talvez o ponto mais importante para usuários de cannabis foi em 2017, quando farmácias começaram a vender a droga, provocando um aumento no interesse. As pessoas precisam assinar um registro legal se querem comprar maconha. O número de uruguaios buscando se registrar aumentou de 4.900 para 13 mil no primeiro mês.
Dito isso, como a indústria legal opera ainda é um trabalho em progresso. Regulamentos estatais rigorosos e questões bancárias levaram a apenas 17 farmácias licenciadas no país inteiro que podem vender cannabis legalmente. O USA Patriot Act, que dita que bancos americanos não podem fazer negócio com empresas envolvidas na venda ou distribuição de substâncias controladas (o que também é uma questão para empresas de cannabis nos EUA), coloca um problema para revendedores no Uruguai, porque o Ato estende o alcance da lei para bancos estrangeiros com contas entre bancos nos EUA.
“Essa situação deixou os bancos uruguaios com uma escolha: se recusar a trabalhar com farmácias que vendem cannabis ou arriscar a retirada de grandes instituições financeiras do país”, diz o relatório de Ramsey. “Para os bancos uruguaios, a escolha foi óbvia, e as farmácias foram notificadas que suas contas seriam fechadas.” As 17 farmácias que ainda vendem cannabis trabalham com bancos locais que não têm relação com bancos americanos, ou passaram para transações só com dinheiro.
Também houve escassez de oferta dos dois fornecedores autorizados produzindo cannabis no Uruguai. Além disso, como turistas não podem comprar a droga legalmente, isso ajudou a manter a demanda no mercado negro – uma tendência que vai contra o objetivo original da legalização, que era encolher mercados ilegais.
“Alguns produtores caseiros e clubes estão tentando contornar a proibição de vender para turistas oferecendo ‘tours de cannabis’, enquadradas como experiências sociais e educativas, onde os participantes podem experimentar amostras grátis de cannabis em passeios pagos. Outros simplesmente vendem escondido diretamente para turistas, um mercado cinza operando discretamente no boca a boca”, diz o relatório de Ramsey.
“Eles ainda têm muito trabalho a fazer para expandir acesso legal e com o tempo, se conseguirem abordar essas questões bancárias – eles vão chegar lá”, disse John Walsh, diretor de políticas para drogas e Andes para o Washington Office on Latin America, uma think tank.
Talvez é ainda mais significativo que a opinião do público passou a favorecer a lei apesar desses problemas iniciais, mesmo com algumas tendências no país indo contra os objetivos iniciais – não só a continuação da presença do mercado ilegal, mas um aumento da violência no geral. Na primeira metade de 2018, 221 pessoas foram assassinadas no Uruguai comparado com 131 no mesmo período do ano anterior. Isso tem caído em 2019, com 171 assassinatos entre janeiro e junho, uma queda de 22%.
Autoridades atribuem metade desses assassinatos este ano ao crime organizado. Mesmo assim, análises de uma think tank dizem que há pouca evidência ligando esse crescimento da violência ao mercado de drogas. Alguns observadores dizem que a violência provavelmente está mais ligada ao aprofundamento da desigualdade, especialmente uma que confina pessoas a comunidades pobres densamente povoadas. Mesmo assim, o mercado de drogas para cocaína e outras substâncias continua no Uruguai, com a maconha legalizada ou não.
O Canadá, ao legalizar a maconha ano passado, no que foi visto amplamente como uma das reformas de drogas mais importante dos últimos tempos, também viu o tópico deixar de ser uma polêmica. Fora algumas tentativas toscas de fazer a reforma da maconha parecer algo que abriria as portas do inferno, a cannabis não foi uma questão abordada nas eleições. O partido conservador tentou atacar Trudeau e os liberais com histórias assustadoras exageradas sobre a legalização da cannabis, mas acabou não dando em nada. Trudeau, o arquiteto da reforma das drogas, continua no poder.
A Bolívia, um dos três maiores produtores de coca do mundo, é a única nação da América Latina a estabelecer um grande esquema legal para o cultivo da droga. O país permite 22 mil hectares de campos de coca legais sancionados pelo governo. Evo Morales, o homem que realizou essa reforma de drogas, deve ser reeleito pela quarta vez, aguardando ratificação de observadores internacionais, depois do primeiro turno que aconteceu do mês passado.
Recentemente o México adiou o debate de uma lei legalizando a cannabis, mas é esperado que uma indústria legal seja criada em breve. Legislação secundária pode atrasar a comercialização da planta por mais um ano. Mas o México, que tem sofrido com violência relacionada ao crime organizado, estará prestando atenção ao precedente estabelecido pelo Uruguai.
Estamos vendo uma tendência aqui, mostrando o que não aconteceu ao contrário do que aconteceu. As pessoas surtaram sobre a legalização, aí perceberam que é melhor assim e pararam de se importar. O medo do desconhecido está sendo erradicado pelo mundano da realidade, e logo veremos que Canadá e Uruguai serão os primeiros de muitos países a legalizar essa planta tão procurada e vilipendiada.
Crônicas de Cartel é uma série de reportagens das linhas de frente da guerra às drogas na América Latina.
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