Meio Ambiente

Por dentro da cidade onde trumpistas estão construindo um muro particular

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Numa tarde nublada, Jose Alfredo Cavazos e seu primo Reynaldo Anzaldua entraram numa van branca Chevrolet suja. Era o começo de janeiro. Eles estavam a caminho de checar o que provavelmente é o projeto de construção particular mais divisivo dos EUA. Os dois homens, de 70 e poucos anos, são parte de uma família que vive no que agora é o sul do Texas há mais de dois séculos, desde que um ancestral recebeu um rancho de 600 mil acres do Rei da Espanha.

Cavazos, um homem de fala mansa que atende por Fred, mora numa casa modesta no sul da cidade de Mission, numa região de fronteira tranquila tradicionalmente agrícola conhecida como Vale do Rio Grande. A casa de Cavazos, ainda adornada com uma placa apagada do que já foi uma loja da família, fica a leste de uma rodovia rural de cinco faixas; do outro lado da estrada fica um terreno de mais ou menos 30 hectares que abraça o sinuoso Rio Grande, onde a família aluga lotes para inquilinos que usam o espaço como acesso de barcos e para churrascos de final de semana. Essa terra foi comprada décadas atrás pela avó dos primos, uma mulher nascida no México que levantou o dinheiro para comprar o lote vendendo tamales e chicharrones de uma carroça puxada por cavalo. Mais tarde, quando a família usava a terra para plantar algodão e melancia, ela cozinhava grandes panelas de frango, arroz e frijoles para os mexicanos que cruzavam o rio por um ou dois dias para ajudar na fazenda. Cavazos usa uma cadeira de rodas agora, mas me disse que quando era menino, ele visitava o rio com o pai, que o ensinou a pescar peixe-gato e robalo, cavar um buraco perto da água para pegar minhocas e cortar um pedaço de bambu para fazer uma vara.

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Por alguns minutos, Anzaldua dirigiu lentamente por uma estrada de terra esburacada entre o mato seco, passando por galinhas, cabras e alguns simpáticos Texas Longhorns, que acabaram associando a van com comida. Viramos paralelo ao rio e estávamos avançando lentamente para o fim da propriedade, onde um caminhão da Patrulha da Fronteira esperava abaixo de uma torre de vigilância, quando Anzaldua pulou no assento do motorista. “Parece que eles já estão começando a construir!”

Mesmo entre os campos de cana-do-reino alta, era impossível não notar a estrutura: logo além do limite da propriedade da família, com uma coleção de escavadeiras amarelas, surgiu uma seção de postes de amarração de aço de 5 metros, se estendendo por uns 60 metros ao longo da beirada do rio – o começou de um muro particular entre as fronteiras de EUA e México.

“Isso é novo!”, continuou Anzaldua. “Eles não deveriam estar fazendo isso!”

Donald Trump fez de construir um muro na fronteira – e obrigar o México a pagar por ele – um tema central de sua campanha de 2016. Enquanto sua administração vem dificultando muito a vida de migrantes, particularmente pessoas procurando asilo da América Central, pelos EUA, construção de barreiras físicas adicionais praticamente parou; a promessa de Trump de novos 720 quilômetros de muro na fronteira até o final do ano parece algo distante de acontecer agora, já que o projeto vem sendo atacado por vários processos na justiça e outras complicações. Mas o muro da administração não é o único muro. Como uma demonstração de lealdade ao presidente ou, no caso de uma das construtoras, uma tentativa de ganhar contratos lucrativos com o governo, alguns cidadãos estão furiosamente erguendo suas próprias barreiras ao longo do sudoeste da fronteira.

A última interação, o muro de 56 quilômetros no Vale do Rio Grande, agora está quase completo, depois que um juiz do distrito rejeitou processos contra ele do governo federal e do Centro Nacional de Borboletas próximo. Há meses o projeto vem irritando vizinhos, que temem que a construção vá resultar em danos irreparáveis para propriedades locais e o importante habitat da área. Como um tipo de causa célebre da extrema-direita, ele também rendeu outro tipo de dano, desencadeando a ira conspiratória feia que veio a definir o elemento mais sombrio do Trumpismo. “Ah, tem sido um inferno”, disse Marianna Treviño, diretora executiva do centro de borboletas local e uma oponente pública do projeto. “Um inferno.”

A rancher on the bank of the Rio Grande. Image: Bloomberg/Getty
Um rancheiro na beira do Rio Grande. Imagem: Bloomberg/Getty

Em dezembro de 2017, Brian Kolfage, um veterano amputado e provocador que é semi-celebridade da extrema-direita, declarou que estava “cansado de ver políticos dos dois partidos obstruindo os planos do presidente Trump de construir um muro”. Então ele começou um esforço para erguer um muro particular. Com apoio dos linhas-duras anti-imigração Steve Bannon e Kris Kobach, o grupo de Kolfage, We Build The Wall, levantou cerca de US$ 25 milhões no Kickstarter. Maio passado o grupo pagou para uma construtora, a Fisher Industries de Dakota do Norte, para completar seu primeiro projeto, um segmento de quase um quilômetro de um muro particular nos arredores de El Paso. A nova barreira, pra surpresa de ninguém, gerou muita polêmica – locais temiam que isso simplesmente empurraria migrantes vulneráveis para áreas de cruzamento mais perigosas – mas o grupo declarou vitória e anunciou planos para construir mais muros.

A nova barreira seria ao longo do Rio Grande, em terras particulares de um empresário simpático à causa. Novamente, a Fisher Industries iria construí-lo.

Da parte de Tommy Fisher, o CEO bombástico da companhia, o empreendimento de US$ 42 milhões – pago quase que inteiramente pela construtora, com apenas US$ 1,5 milhão doados pelo We Build The Wall – representa uma aposta. Em setembro de 2017, a Fisher Industries era uma das oito companhias escolhidas pela Alfândega e Proteção de Fronteiras para desenvolver um protótipo de muro; Fisher também começou sua própria blitz na mídia conservadora, apelando ao presidente na TV a cabo, muitas vezes declarando, com um tom bem trumpista, que ele podia construir o projeto marca registrada de Trump melhor, mais rápido e mais barato que qualquer outra construtora. A Fisher Industries tem uma história controversa, incluindo mais de US$ 1 milhão em multas por violações ambientais e fiscais, mas depois de ver Fisher na televisão, segundo o Washington Post, Trump fez um lobby agressivo para que o Corpo de Engenheiros do Exército dos EUA contratasse a companhia dele, e mês passado a agência contratou, com um trabalho de US$ 400 milhões para construir um muro de 20 quilômetros no Arizona. (O Departamento de Defesa rapidamente anunciou que estava investigando o contrato por influência imprópria do presidente; Fisher negou ter um relacionamento com Trump.)

A Alfândega e Proteção de Fronteiras já tinha contratado outra companhia para construir a seção do muro de Trump no Vale do Rio Grande, mas a construtora está convencida que sua versão servirá como prova de conceito que vai ajudá-la a conseguir mais contratos com o governo para uma fronteira de quase 3.200 quilômetros. “Acho que a administração Trump vai gostar disso”, o dono da construtora disse a repórteres na época. “Isso vai mudar 100% o jogo no Texas.” Em outra entrevista, Fisher comparou seu muro com um Lamborghini e outras versões com carroças.

(A Fisher Industries não respondeu nossos pedidos para entrevistar Fisher. Lance Neuhaus, o dono da propriedade, também não respondeu nossas mensagens. Neuhaus, que é de uma família de banqueiros texanos e têm várias revendedoras John Deere, não fala publicamente do projeto, mas seu filho, Clayton Wayne Neuhaus, disse que o muro vai deter os traficantes de drogas que impedem os empregados de trabalhar na propriedade à noite.)

A equipe de Fisher chegou em novembro, só para a construção ser parada por uma injunção federal temporária. Quando me encontrei com Cavazos e Anzaldua, o projeto ainda estava legalmente parado – um advogado explicou mais tarde que os postes de aço que vimos não violavam a ordem, porque apesar de estarem ali, eles não tinham sido realmente instalados. No dia seguinte, 9 de janeiro, isso não importava mais; um juiz decidiu que a construção podia continuar. Para os oponentes preocupados que a infraestrutura pode ter um impacto ecológico catastrófico no delta do rio, a decisão representou uma derrota esmagadora. Antes que o concreto seja realmente colocado, a maioria do estrago já terá sido feito.

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Equipes de construção da Fisher Industries construindo um muro em Sunland Park, Novo México. Imagem: The Washington Post/Getty

Depois que Marianna Treviño se juntou ao Centro Nacional de Borboletas em 2012, seus filhos brincavam que a mãe era tipo uma Branca de Neve profissional, passeando pelo centro em harmonia com pássaros e borboletas coloridas. O trabalho dela significa que ela tem que frequentemente interagir com a Patrulha da Fronteira, mas ela estava em bons termos com a agência, e era convidada regularmente para suas reuniões de alcance na comunidade. Ela também era amigável com Neuhaus, quem ela alertava se via caçadores invadindo suas terras; uma vez, ela me contou, ela até tomou algumas cervejas com o dono da propriedade e sua esposa num bar local. “Então achei que estava tudo bem na vizinhança”, ela disse.

Mas no começo de novembro, quando o projeto começou, Treviño se tornou uma mulher marcada, um alvo dos líderes do We Build The Wall e seguidores do grupo de todo o país. No Twitter, Kolfage atacou o centro de borboletas, que fica a 1.600 metros do canteiro de obras e fazia oposição aberta ao projeto, chamando o lugar de uma “farsa” comandada por “malucos esquerdistas” que compraram a propriedade para protestar contra o muro da fronteira. (A organização mãe do centro, a Associação Norte Americana de Borboletas, foi fundada em 1993.) Em outras postagens ele declarou que a propriedade era local de “comércio de sexo”, insinuou que a organização lucrava com contrabando de borboletas, e acusou o Padre Roy Snipes, que também se opõe ao muro, de “promover tráfico humano e abuso de mulheres e crianças”.

Os ataques nas redes sociais foram apoiados por uma série de vídeos no YouTube onde Foreman Mike, um personagem corpulento e arrogante, aparecia no local com capacete de construção e uma jaqueta de alta visibilidade para dar atualizações do projetos e pedir doações, enquanto alertava os espectadores sobre corpos mutilados, barcos equipados com armamento pesado, e “splashers” mexicanos que saíam do Rio Grande. Numa narrativa cartunesca, Treviño – “a mulher das borboletas” – e Snipes – “o padre desviado” – tinham um papel útil. “Há mulheres e crianças dos dois lados da fronteira que o SEU POVO está defendendo!” Foreman Mike grita num vídeo. “Continuem com o bom trabalho! Não escutem esses malucos!”

Inspirados por Kolfage e seus vídeos, simpatizantes do We Build The Wall levaram a campanha de difamação ainda mais longe. Críticos online chamaram Treviño de “meretriz antiamericana” ou uma “pedófila” que lucraria com tráfico de crianças. Ondas de ataques inundaram as linhas telefônicas do centro, com pessoas ameaçando os “doidos das borboletas” que estavam impedindo o muro, enquanto outra onda acabou derrubando a página do Facebook do grupo.

Treviño chamou a polícia depois que dois homens em carros com placas de outros estados, aparentemente membros do Three Percenters, uma milícia da alt-right, apareceram e começaram a investigar o centro, examinando câmeras de segurança e saídas como se estivesse preparando uma operação militar. As ameaças também se espalharam para a família de Treviño e outros associados; alusões constantes a estupro violento, ela me disse, fizeram ela considerar se mudar com a família para outra área.

Os ataques, além de vis, eram fundamentalmente ignorantes, achando que a oposição do centro ao muro era baseada em preocupações que as borboletas seriam fisicamente impedidas de atravessar o muro. “Se eu ganhasse um dólar pra cada pessoa que disse ‘Vadia! Borboletas podem voar por cima do muro!’ Eu seria milionária”, riu Treviño. “Essa não é a questão.”

O centro quer proteger um dos ecossistemas mais importantes do continente. O Vale do Rio Grande, além de ser um lugar famoso mundialmente por seus pássaros, também é lar do corredor de borboletas mais importante dos EUA, com o Centro Nacional de Borboletas agindo como um tipo de refúgio para um esforço de conservação que levou décadas para ser construído: o centro tem 300 espécies de plantas nativas e 240 espécies de borboletas, quase um terço de todas as espécies encontradas no país. A interação entre as plantas e borboletas é altamente delicada, com cada borboleta dependendo de apenas uma ou duas espécies de plantas.

A transformação no delta do rio pode acabar com tudo isso. O muro de Trump, seja construído por Fisher ou outra construtora, deve correr pela margem norte do rio, além da encosta que serve como dique natural da planície para inundação, a barreira de aço e concreto de Fisher está subindo a apenas 10 metros da beira da água – e essa proximidade, argumentam os oponentes, é garantia de uma catástrofe ecológica.

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Um mapa do Centro Nacional de Borboletas. Imagem: Suzanne Cordeiro/ Getty

Para construir o muro, as equipes da construtora primeiro limpam e aplainam a margem do rio, o que provavelmente vai acelerar o fluxo e apressar a erosão; a barreira em si é pensada para permitir que a água passe, mas quando uma inundação acontecer, segundo os oponentes, objetos grandes – árvores, carros, pilhas de detritos – vão inevitavelmente entupir o fluxo, criando o que Javier Peña, um advogado que representa o Centro Nacional de Borboletas, chama de uma “barragem independente” de 5 quilômetros. Nesse cenário, a estrutura pode acabar desmoronando, ou até alterando o curso do rio e destruindo acres e acres das terras vizinhas.

“Quando você coloca um obstáculo como esse”, Peña me disse, “a água vai encontrar o caminho de menor resistência”. Enquanto explicava, Peña pegou seu celular e mostrou como a seção do rio onde o muro está sendo erguido forma uma espécie de curva em U, com a curva apontando para o sul. A presença de um grande obstáculo durante uma inundação pode significar que o rio, em vez de seguir o U, acabe cortando ao meio. “A água segue o caminho de menor resistência”, ele continuou, “esse se torna o novo rio, e isso se torna uma nova fronteira internacional”.

O caso do governo federal contra o projeto seguia a mesma linha de argumento: que uma alteração no caminho do rio vai violar o tratado do país com o México. Ainda assim, na sua decisão de 9 de janeiro dando sinal verde para a construção do muro, o juiz distrital Randy Crane rejeitou os argumentos do governo e do centro de borboletas de dano ambiental permanente como “altamente especulativos”. Não abordada ficou a questão do que o projeto realmente quer alcançar.

Há anos, o Vale do Rio Grande, a primeira entrada no EUA seguindo a rota mais curta ao norte através do México, tem sido o corredor mais movimentado do país para cruzamento ilegal e contrabando. Mas a maioria das drogas chega através de pontos de entrada oficiais; ao longo do rio, uma armada de viaturas, barcos e helicópteros da Patrulha da Fronteira já faz um jogo sofisticado de gato e rato com migrantes desesperados e cartéis bem financiados, que dificilmente serão dissuadidos por outra barreira. Apesar do frenesi, o Vale do Rio Grande, como outras regiões de fronteira no sudoeste, tem taxas baixas de crimes. Ano passado, McAllen, uma das maiores cidade do Vale, foi reconhecida como a quarta cidade mais segura do país segundo uma pesquisa das taxas de crime de 2018.

Mais que uma parte da infraestrutura, o muro – de Trump, de Fisher – também é um símbolo. Depois que Anzaldua estacionou a van, eu estava andando perto da linha da propriedade quando um casal de meia idade e duas filhas adultas apareceram, uma família de inquilinos de longa data de Cavazos. “É meio legal ver isso”, Orville Reid me disse. Reid é um trabalhador da indústria automotiva aposentado de Michigan; sua esposa, Simone, era gerente de um gabinete. Os dois apoiam o muro na fronteira, o casal me disse, para impedir o fluxo de migrantes que querem se aproveitar de comida e saúde grátis.

“Com certeza”, me disse Simone, “para manter todos esses ilegais fora, porque temos muitos deles. Deveríamos estar apoiando nosso povo”.

Um minuto antes, Anzaldua estava a alguns metros do lento Rio Grande, olhando para a estrutura de metal que vai ser tornar seu novo vizinho. “Pra mim”, ele disse, “isso é ódio. Eles odeiam alguém. Eles sabem que não vai funcionar”. Qualquer idiota sabe, ele acrescentou, que você não constrói na beira de um rio.

Trevor Bach é um jornalista de Detroit.

Matéria originalmente publicada na VICE EUA.

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