Drogas

Por dentro da Marcha da Maconha das Favelas

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“Fazer Marcha da Maconha em Ipanema é mole! Quero ver lá na favela…” é uma provocação ouvida por organizadores e frequentadores de manifestações pela legalização da cannabis do Rio de Janeiro desde 2002. Na época a lei era mais dura contra usuários e “apologistas” da droga e as sempre enfumaçadas e então mais liberais areias de Ipanema eram mais convidativas para o ato. De lá pra cá a Marcha carioca foi crescendo e agregando mais discursos alinhados à discussão da legalização da maconha, como o antiproibicionismo, o feminismo e o combate ao racismo. Mas se por um lado a cultura canábica cresceu e algumas conquistas foram celebradas, as prisões por tráfico de drogas e políticas de repressão e extermínio às favelas aumentaram exponencialmente. A cobrança de levar o discurso da Marcha da Maconha à favela continuou até ano passado, quando Felipe Gomes, um jovem militante anarquista do Morro do Adeus, no Complexo do Alemão, resolveu convocar reuniões para a organizar a primeira Marcha das Favelas pela Legalização.

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Felipe Gomes, fundador e organizador da Marcha das Favelas.
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Marcha das Favelas desfila ao lado da horta comunitária do Manguinhos.

Não foi fácil. Incomodadas com a presença de muitos militantes de fora da comunidade, outras jovens lideranças do Complexo criticaram a realização do ato no Alemão, ameaçando inclusive militar contra caso o ato fosse confirmado. A alegação é que a Marcha promoveria uma espécie de turismo à comunidade, e que provocaria a PM, colocando os moradores em perigo. A solução pra primeira edição foi encontrar um outro trajeto, fora do Alemão, levando o ato para as comunidades do Jacaré e do Manguinhos, que receberam a Marcha de braços abertos. Neste sábado, dia 20 de julho, foi realizada a segunda edição da Marcha das Favelas. A concentração começou na ocupação Olga Benário Prestes, no pé do Morro do Adeus, saindo por volta das 15h rumo ao Manguinhos, num percurso que contornou o Jacaré e a Cidade da Polícia e atravessou as comunidades da Coreia e Manguinhos.

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Entenda mais sobre a luta pela legalização da maconha no Brasil em nosso documentário:


As cerca de duzentas pessoas foram acompanhadas do bloco carnavalesco Planta na Mente, que tocou suas versões fanfarra canábica de marchinhas de carnaval e funks como “Rap da Felicidade”. Logo na saída, com a Marcha ainda ocupando uma das faixas da Rua Uranos, uma via de mão dupla que corta o bairro de Bonsucesso, uma Hillux prata emparelhou na galera — um sujeito mal-encarado ao volante, uma loirona de óculos aparentemente caro no banco de trás e um sósia do Velho da Havan no carona. E daí que o velhote saca uma pistola e começa a apontar e provocar a galera. Ao perceber a aproximação de câmeras, escondeu a arma e evadiu agressivamente pela contramão. O mais curioso é que estávamos numa via altamente policiada, uma vez que praticamente todos os acessos às favelas no entorno tinham blitzes montadas.

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Kombi do Bloco Planta na Mente passa em frente a uma Blitz montada próxima a estação de trem de Manguinhos.

A marcha seguiu e a partir de um determinado momento um carro da PM passou a escoltá-la, para alívio de quem se abalou com a ameaça do Velho Pistola e emputecimento do afins de perfumar o ambiente. Isso durou até a mudança de território: mal o cortejo embicou do subúrbio pra dentro da favela que a escolta sumiu. A medida que entrávamos na favela, tudo ia ficando mais animado. Frequentadores de uma casa de Santo e moradores de vários prédios colavam nas janelas para aplaudir. Muita gente, sobretudo crianças e adolescentes, saiu pra rua para ver a banda passar. Num momento o ato atravessou uma boca de fumo, e de lá um vapor gritava: “Sem fotos! Sem fotos!”. Teve quem apertou o passo, e quem deu aquele breque para fomentar a economia local. A galera da banda acabou ganhando uns brindes. “Cachê dos músicos”, alguém disse.

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Bloco manobra a massa na entrada da comunidade da Coreia.

Quase no final do trajeto, quando passávamos ao lado da horta comunitária de Manguinhos, uma coroa que estendia uma roupa respondeu “devem ser da Igreja” para um lek num churrasco na casa ao lado que perguntou “que porra é essa?”. Um manifestante respondeu com cautela, “não é Igreja não, é Marcha da Maconha mesmo!”. Os segundos de tensão se tornaram euforia, “tem que legalizar pra horta comunitária virar tudo maconha!”, gritou num sorriso cheio de dentes o cara que pilotava a churrasqueira.

A manifestação terminou na quadra de society do Manguinhos, num palco com uma infra legal montado graças aos oito mil reais arrecadados pelos organizadores durante meses de campanha. Os DJs Raoni Mouchoque e Leandro Baré do duo Ritmo de Favela abriram a pista com um set de Funk 150 BPM que conquistou a molecada do passinho. Em seguida veio uma apresentação do Slam das Minas, na qual uma das poetas não hesitou em provocar a galera de fora da comunidade que compareceu ao ato: “Vocês já conhecem a qualidade da maconha, agora tem que conhecer a qualidade da cultura da favela”.

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Planta na Mente dando bandeira na comunidade da Coréia

Apesar de arrancar sorrisos e aplausos por onde passou, a adesão popular à Marcha foi pequena, sendo a maioria dos presentes militantes de fora da comunidade. Felipe Gomes explica que, “as pessoas ainda tão querendo entender o que que é a Marcha, por isso que é muito bom trazer essas informações, até com as apresentações. É real a gente como favelado construir algo, a gente sabe fazer cultura e arte de uma forma prática, sem grandes investimentos. A galera vai parar pra pesquisar, entender, e ano que vem a pessoa vai saber ao menos se posicionar”.

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Palco montado na quadra de society de Manguinhos aonde se apresentaram Ritmo de Favela, Slam das Minas, Roda do Paquistão, Faixa de Gaza e ADL.
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Lord e DK da dupla ADL (Além da Loucura), de Teresópolis.

Do lado de pessoal de fora, entre aqueles que nunca ultrapassaram as bocas e aqueles que sequer haviam entrado numa favela, o sentimento era de respeito. Depois do Slam, rolou uma Batalha de MCs organizada pela galera da Roda do Paquistão e a apresentação do grupo local Faixa de Gaza. Para encerrar a noite teve apresentação da a dupla de rap ADL, que nunca escondeu que o rap os salvou da vida do crime, tocando seus hits e partes dos cyphers “Favela Vive” e “Poesia Acústica”. Conversei com DK47, muito satisfeito com a participação: “Acho muito importante essa marcha organizada pela favela. Porque nessa falsa guerra às drogas sempre é o favelado que sai mais prejudicado. Nada mais justo que o nosso lado se organizar em favor da legalização. Acho importante vir aqui, nessa favela que eu já conheço há vários anos, agora fazendo rap, é a prova de que música e a cultura reconstrói o ser humano”.

Ano que vem tem mais.

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