“No final dos anos 60, éramos um grupo de pessoas que buscava um espaço onde pudéssemos fazer nossas oferendas longe de preconceitos e discriminações”, conta o babalaô Ronaldo Antônio Linares, 83, idealizador do Santuário Nacional da Umbanda – Vale dos Orixás. A área verde, localizada em São Bernardo do Campo (SP), tem mais de 600 mil metros quadrados e é conhecida por suas estátuas de orixás, pelo cruzeiro das almas e seus espaços destinados às celebrações.
Pai Ronaldo relembra que, na época, a área estava devastada devido à exploração, por décadas, por uma antiga pedreira. Hoje o local se tornou a “meca” dos praticantes de religiões de matriz africana no Brasil. Somente no estado de São Paulo, existem mais de 141 mil seguidores, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
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Linares destaca que foi uma luta intensa junto ao poder público para que o Santuário pudesse ser construído. Na época, foi feito um acordo com a prefeitura e, como contrapartida, as pessoas iriam recuperar a mata devastada pela pedreira. “Nós íamos para o centro da serra do mar e trazíamos terra e mudas de mata atlântica”, comenta o religioso.
Hoje, além de espaço dedicado às práticas religiosas, o Santuário mantém diversas ações de preservação do meio ambiente, como um laboratório botânico, minhocário, viveiro de mudas e uma escola de ecologia. No local também é proibido o sacrifício de animais.
“Esse espaço é fantástico pra gente, pois a umbanda e o candomblé são religiões muito discriminadas. Só tenho a agradecer e fico emocionada quando venho aqui”, disse à VICE a psicóloga e mãe de santo Denise Renaldin enquanto visitava o local com o grupo de um terreiro de Santo André.
Praticante da umbanda há 15 anos, Denise diz que há três anos se tornou sacerdotisa. Porém, ela relata que antes era muito cética e não acreditava quando falavam para ela sobre o sacerdócio. “É algo tão maravilhoso na minha vida. Tem muita ligação com a natureza e com a espiritualidade”, afirma.
A infraestrutura do Santuário conta com lanchonete, banheiro e tendas que os visitantes podem locar aos finais de semana para a realização das práticas religiosas. Para as celebrações, as pessoas costumam levar frutas e objetos como roupas, pratos e copos. Durante a semana é feita limpeza do local. Os objetos perecíveis são descartados e os não perecíveis são doados para entidades que prestam assistência social na região. De acordo com Linares, as doações são feitas para instituições ligadas, inclusive, a igreja católica e protestante.
No entanto, o religioso pontua que o diálogo com outras narrativas religiosas nem sempre é amistoso. Ele ressalta que já houve muita perseguição, a ponto de fecharem uma estrada de acesso. “Pastores vinham até a entrada do Santuário, colocavam caixas de som apontadas para cá e faziam orações para expulsar o demônio daqui”, conta.
De acordo com a Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos (ONDH), a discriminação às religiões de matriz africana no país está entre as principais queixas de intolerância religiosa. Nos últimos dois anos, foram registradas mais de 1200 denúncias. Somente no primeiro semestre de 2018 foram 210 denúncias.
Com o objetivo de promover práticas de cidadania e conscientização, instituições de ensino da região costumam realizar visitas ao Santuário. Em uma delas, durante o mês de novembro de 2018, os alunos do terceiro ano da Escola Estadual Professor Amadeu Olivério participaram de uma roda de conversa com o pai Ronaldo Linares.
A professora Eliana Valadão Moura explica que a visita ao local surgiu de uma conversa em sala de aula sobre diversidade religiosa. “É importante que eles tenham contato na prática com o palco dos acontecimentos das coisas para além do mundo virtual”, pontua.
De família de praticantes do candomblé, a estudante Laiala, 17, relembra que quando contou para os colegas que era filha de santo, no primeiro momento alguns ficaram surpresos com a revelação. “Depois ficou tudo mais tranquilo quando comecei a explicar pra eles sobre a religião”, diz.
Ela afirma que a conversa com pai de santo Ronaldo foi bem importante e que ficou sabendo do contexto histórico da religião, que ela desconhecia. “Acredito que esse preconceito entre as religiões não deveria existir, pois as pessoas deveriam abrir mais as suas mentes.”
O legado de pai Zélio
Ronaldo Linares destaca que nunca pensou em ser pai de santo. Quando era jovem sonhava em ser médico. “Em 1968, percebi a necessidade de saber de onde vinha a umbanda e saber mais sobre os seus fundamentos.”
Em 1970, ele partiu para o Rio de Janeiro ao encontro de pai Zélio Fernandino de Moraes. Segundo os umbandistas, o médium recebeu em 1908 a mensagem do caboclo das Sete Encruzilhadas, que ordenou a criação de uma nova religião no país. Essa que deveria unir em suas práticas elementos do catolicismo, do espiritismo kardecista e de religiões indígenas e africanas.
Mais de um século depois do trabalho iniciado por Zélio de Moraes, as suas previsões se concretizaram e a umbanda se popularizou no Brasil. Hoje, de acordo com o IBGE, é a religião brasileira de matriz africana que mais tem seguidores no país. São aproximadamente 480 mil seguidores no país.
Linares se emociona ao falar de Zélio e diz que uma das coisas que mais o impressionou ao conhecê-lo foi a sua bondade e semelhança física com Chico Xavier. “Ele disse: ‘Eu sei porque você veio’. Não era preciso fazer as perguntas, ele tinha as respostas. Aí ele me contou como nasceu a umbanda”, rememora o pai de santo, visivelmente emocionado.
O babalaô atuou ainda no rádio e na TV, tendo como marca em seu trabalho a difusão de elementos das religiões de matriz africana. Ele também fundou o terreiro de umbanda Casa de Pai Benedito de Aruanda, em São Bernardo do Campo. O templo também é a sede da Federação Umbandista do Grande ABC, entidade que mantém o Santuário Nacional da Umbanda.
A influência dos terreiros na cultura brasileira
“Um povo que não tem consciência sobre a sua própria história não pode avançar para um futuro vitorioso e brilhante se não tiver a consciência do que ele é formado. Então por isso gera intolerância em relação ao povo negro, intolerância às religiões afro-brasileiras”, destaca a cantora Rita Benneditto, que é do Maranhão mas mora no Rio de Janeiro.
Ela, assim como outros artistas da cena cultural brasileira, busca inspiração na cultura dos terreiros. Vale lembrar do canto de trabalho dos escravos trazido por Clementina de Jesus, dos Afro-sambas, de Baden Powell e Vinicius de Moraes; da música de Maria Bethânia, Gilberto Gil e Clara Nunes, ou ainda, na literatura de Jorge Amado e no cinema com Glauber Rocha.
Rita lembra que iniciou o contato com o universo religioso ainda no Maranhão. Apesar de ter sido criada dentro da igreja católica, ela diz que sempre teve contato com os terreiros, principalmente por meio do tambor de mina e da encantaria maranhense (religiosidades afro-brasileiras muito comuns no estado).
Para a cantora, dado o contexto social e político vivido no Brasil, a arte tem papel essencial como instrumento de resistência e luta. “Nós temos que continuar resistentes, afinal, já passamos por escravidão e ditadura. Temos que continuar gritando, batendo tambor e seguir adiante para que essa história mude e a gente consiga se reconhecer como um povo livre, rico e poderoso”, finaliza.
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