As rosas caídas na terra seca na frente do centro de reabilitação Estrada para Minha Recuperação ainda não murcharam. Elas caíram dos portões da clínica humilde nos arredores da cidadezinha mexicana de Irapuato, onde foram deixadas por pessoas em luto. Além de velas derretidas e uma fita da polícia rasgada, isso é tudo que resta de um tiroteio que matou 27 jovens usuários de drogas em recuperação aqui semana passada.
Esse último capítulo macabro da brutal guerra do crime no México mostra como usuários de drogas – incluindo aqueles tentando ficar limpos nas clínicas de reabilitação privadas sem regulamentação, conhecidas como anexos – cada vez mais acabam no meio da violência dos cartéis.
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Numa estrada de terra e escondida da via principal, na comunidade de classe baixa de Arandas, a casa amarela de dois andares é ladeada por um terreno baldio à direita e uma casa vazia à esquerda. Na frente tem um grande portão branco por onde Miguel Regalado, 60 anos, observa o interior. Ele levou a VICE News para onde seus três filhos – Omar, 39 anos, Cristian, 30 e Giovanni, 27 – foram mortos.
“Passei pelo Giovanni no caminho pra casa do trabalho [na quarta-feira retrasada], ele estava vindo aqui trazer refrigerante para os irmãos”, disse Miguel, que é mestre de obras. A casa da família fica a dois minutos a pé da clínica. “Um pouco depois, por volta das 17h, meu vizinho veio bater na porta dizendo que tinha acontecido um tiroteio no anexo. Eu corri pra cá.”
Cristian e Omar sofriam há tempos com vício em metanfetamina – a droga preferida de muitos no estado central de Guanajuato. Giovanni, o mais novo dos três, estava visitando os irmãos no dia do ataque.
Versões dos eventos variam entre os relatos da mídia e das autoridades. Entre três e sete homens armados entraram na clínica logo depois das 17h em 1º de julho. Eles mandaram as poucas mulheres presentes saírem, depois foram para o segundo andar, onde mandaram todos os homens deitarem com a cara no chão. Segundo as autoridades, os atiradores perguntaram o paradeiro de uma pessoal em particular.
O que é indiscutível é que eles abriram fogo indiscriminadamente, e suas balas mataram 24 homens instantaneamente. Outros três morreram pelos ferimentos depois. Dois dos mortos eram garotos de 14 anos, segundo membros da comunidade, o que não foi confirmado nem negado pela promotoria estadual.
Dias depois, a casa amarela está trancada e silenciosa, as cortinas da janela da frente estão fechadas. Alguns cachorros de rua brincam ao redor dos pés de Miguel. Ele é baixinho, está usando um boné Jeep e tem a barba aparada rente. Ele chama minha atenção para uma camiseta e uma meia sujas de sangue no chão.
Sentada ao lado dele na frente de sua casa humilde em Arandas, Rosa Santoya parece atordoada enquanto ouve o marido falar sobre seus filhos mortos. Seu cabelo tingido de preto está preso. Ela fecha os olhos por alguns minutos às vezes enquanto fala. “Quando cheguei [ao anexo] tinha muita gente lá. Uma mulher saiu e disse que todos os meus filhos tinham morrido.”
Esse é o quarto ataque a anexos na cidade de Irapuato este ano. Desde dezembro, foram 13 ataques assim no estado de Guanajuato, segundo Nicolás Pérez Ponce, chefe de uma associação que representa centros de reabilitação. Não há números oficiais de ataques aos centros desse tipo no México, mas segundo a mídia, eles começaram em 2009.
Centros de reabilitação são alvos dos cartéis porque são parte das zonas de vendas de drogas que as gangues lutam para monopolizar. Controlar usuários de drogas é a nova dinâmica da batalha feroz por controle entre dois cartéis rivais de Guanajuato.
O cartel local Santa Rosa de Lima e o nacional Cartel Nova Geração Jalisco (CNGJ) lutam pelo controle dos lucrativos mercados ilegais da região, e a exigência de lealdade dos consumidores e traficantes de drogas é parte dessa guerra.
“Ataques aos anexos são uma mensagem clara de um cartel para o outro”, disse Angelica Ospina-Escobar, presidente da Rede de Redução de Danos do México, a Redumex. “Esse ataque mais recente era uma mensagem para o cartel de Jalisco de que o [Santa Rosa de Lima] não está feliz com o controle que Jalisco tem.”
Hugo Winslow Ramirez, 44 anos, usa drogas na cidade desde os 14. Os braços e pescoço dele são cobertos de tatuagens do Coringa, seu ídolo, e a parede de seu quarto em uma casa de concreto num bairro de classe trabalhadora é enfeitado com o logo dos Beatles e imagens de mulheres seminuas recortadas de revistas.
Ele disse que no último ano, nove colegas usuários foram mortos (a VICE News não conseguiu verificar de maneira independente essa informação). Cartéis rivais distinguem seus produtos vendendo metanfetamina e maconha em embalagens de cores diferentes marcadas com as iniciais de sua marca.
“Se você compra de um cartel, você não pode comprar de outro”, ele disse. “Se te pegam com drogas de outros cartéis, eles te matam.” Os traficantes também são obrigados a escolher um lado, e a maioria das bocas nas ruas da cidade atualmente são controladas por um dos maiores grupos criminosos do México – o CNGJ – disseram fontes da comunidade. “As coisas mudaram muito – não era assim antes”, disse Winslow.
O ataque ao anexo de Irapuato teve o maior número de mortos até agora, e veio entre um dos episódios mais mortais de violência relacionada a drogas desde que o presidente Andres Manuel Lopez Obrador assumiu no final de 2018. Obrador comentou sobre o ataque em uma entrevista coletiva no dia seguinte, chamando o caso de “muito grave”.
Guanajuato é uma rota de tráfico vital para as drogas que vão para os EUA do México. Nos últimos anos, o estado se tornou um mercado imensamente lucrativo para metanfetamina. Irapuato fica num corredor industrial de fábricas e linhas de montagem de carros – e os trabalhadores usam metanfetamina para ficarem alertas durante as longas e monótonas horas de seus turnos. Desde 2013, a demanda para tratamento para vício em metanfetamina cresceu sete vezes, segundo números oficiais locais.
O aumento das mortes de usuários de drogas em Guanajuato coincide com as maiores taxas de assassinato que o estado já viu. Homicídios tiveram um pico entre 2016 e 2019, de 1.100 para 3.540 mortes, tornando esse o estado mais violento do México. Mais policiais foram mortos aqui que em qualquer outro lugar do país este ano – mais cinco pessoas foram mortas um dia depois das execuções no anexo. E tem mais, nem o COVID-19 desacelerou os homicídios. Em março, abril e maio deste ano, o estado registrou 840 assassinatos – no mesmo período do ano passado, o número foi de 702.
Usuários de drogas são vistos por muitos como dispensáveis. E acredita-se que os mortos na guerra do crime no país estavam todos envolvidos com o tráfico de drogas, um mito que sempre se mostra errado.
Depois dos assassinatos em massa, o chefe de segurança pública de Guanajuato, Alvar Cabeza de Vaca, descreveu anexos como “ninhos de atividade criminosa”, sugerindo que aqueles que morreram eram partes de cartéis e mereciam seu destino. Mas o governo do estado não apresentou provas disso. Rosa e Miguel sabiam que os filhos tinham problemas com drogas, mas negam a acusação de que eles trabalhavam no tráfico.
Até o momento, as autoridades prenderam três pessoas em ligação com o caso, mas não deram mais detalhes, e recusaram os pedidos de entrevista da VICE News.
“Famílias que sofreram essas perdas não só têm que suportar a dor, mas o estigma do governo chamando seus mortos de ‘criminosos’”, disse Juan Miguel Alcántara, advogado, consultor de segurança e ex-procurador público.
Que as vítimas de violência no México trabalhavam com o tráfico é um argumento usado pelo governo desde sempre. Isso ajuda a desconsiderar mais de 275 mil mortes que aconteceram desde 2007. Oficialmente, mais de 60 mil pessoas desapareceram no México desde que a “guerra às drogas” começou. Cada vítima deixa para trás um pai, mãe, irmãos, esposos e filhos. Mas num país onde nove em cada dez assassinatos não são resolvidos ou investigados, essa retórica não é baseada em fatos.
Os cartéis tentaram lavar as mãos do ataque da semana passada. O CNGJ negou estar envolvido através das redes sociais, fazendo o líder do Santa Rosa de Lima, José Antonio Yépez Ortiz – ou “el Marro” (o marreta) – fazer o mesmo num vídeo que circulou pela internet e em grupos do WhatsApp.
“Não tenho nada a ver com isso”, ele diz, sentado numa cadeia numa sala branca com chão de azulejos brancos. Ele disse que o governo estava armando pra ele, e colocou a culpa no CNGJ. Recentemente, as autoridades locais fizeram uma ofensiva contra o grupo de el Marro, prendendo vários de seus parentes.
“Cedo ou tarde, a verdade vai aparecer”, ele diz.
Mas no México, os verdadeiros culpados pela violência relacionada com drogas continuam opacos. Impunidade e um governo sobrecarregado e sem credibilidade significam que os culpados são decididos principalmente por fofocas, especulações e hipóteses.
Para Rosa e Miguel, a morte de seus três filhos é um fato inequívoco. “Eles mataram pessoas inocentes que só queriam mudar de vida”, diz Rosa.
Para muitos mexicanos, Cristian, Omar e Giovanni – em pouco mais de uma semana – já são apenas números num mar de mortos.
Edith Dominguez colaborou com esta matéria.
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