Por que os LGBTs estão “cancelando” artistas héteros

As cantoras Anitta e Valesca

Fulano foi expulso do “vale”, cancela o ciclano, #RipBeltrano. Várias dessas expressões têm tomado as redes sociais nos últimos meses, promovidas por LGBTs que apontam deslizes de artistas e personalidades até então consideradas aliadas do movimento.

A mais recente foi a cantora Valesca Popozuda. Antiga conhecida do público, a funkeira repudiou publicamente o então candidato à presidência Jair Bolsonaro (PSL) em suas redes sociais, durante as últimas eleições, e sempre levantou a bandeira do combate ao preconceito. Mas isso não a tornou imune ao tribunal da internet.

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O caso #RIPValesca

Nas últimas semanas, Valesca resolveu postar um stories no Instagram com seu amigo maquiador Agustin Fernandez. A figura ficou conhecida durante as eleições de 2018 por apoiar publicamente Bolsonaro, criticar de forma enfática os movimentos LGBT e sugerir que a cantora Pabllo Vittar deixasse o Brasil após o resultado do pleito.

Valesca defendeu o amigo das mensagens raivosas que recebeu em seu direct, dizendo que ele poderia falar o que quisesse e que seu público teria que respeitá-lo. Os 30 segundos de vídeo lhe causaram o cancelamento de, ao menos, dois shows destinados ao público LGBT e uma chuva de críticas nas redes sociais, endossadas com a tag #RIPValesca, que elucidava a “morte” da artista para os fãs.

Ao perceber os danos, Valesca gravou vídeos pedindo desculpas e assumindo o erro. A cantora chegou a dizer que mesmo que a comunidade lhe virasse as costas, ela jamais deixaria de lutar contra o preconceito. A fala aparentemente não colou e, dias depois, ela gravou outro afirmando que não apoiou e não apoia Jair Bolsonaro, que entende não poder se colocar no lugar de um LGBT ou mesmo de uma mãe de LGBT, que continua na luta contra a homofobia e pedia, mais uma vez, o perdão a quem havia se sentido ofendido.

Radicalismo?

O momento é realmente extremo, mas fruto de um amadurecimento, na visão de Pedro HMC, criador de conteúdo do canal Põe Na Roda, que trata da temática LGBT. “Antigamente, todo mundo falava o que queria e éramos tão carentes e ignorantes em relação aos nossos direitos, que tolerávamos qualquer coisa. Na campanha eleitoral tomamos um choque tão grande que, desde então, estamos com o pé atrás com todo mundo”, explica.

Em relação a Valesca, Pedro acredita que a cantora tenha sido vítima de desinformação. “Ela é uma pessoa que sempre esteve ao lado do movimento. Talvez não tivesse a noção da fama dele (Agustin). Acredito que tenha sido usada, pois ele está fazendo tudo para aparecer. Ele sabe o quão queimado está entre os LGBTs.”

Sem ajuda, sem pink money

O presidente da Câmara de Comércio LGBT, Ricardo Gomes acredita que os boicotes são válidos e ajudam a educar os artistas e personalidades sobre as demandas da comunidade: se querem “pink money”, precisam estar ao lado do seu público.

A expressão pink money é uma alusão ao poder de compra da comunidade LGBT. Ainda não existem dados oficiais sobre essa representatividade no Brasil.

Na visão do especialista, o momento atual do país não permite omissões. “O posicionamento de que todos tenham os mesmos direitos, independente de qualquer marco indentitário que carregue, deveria ser o pensamento de qualquer pessoa, principalmente uma pessoa pública”, afirma.

“Não precisamos de música para boate”

Essas atitudes podem ajudar a instruir cantores ou personalidades heterossexuais que queiram se aproximar da comunidade. “Se a pessoa não vai vestir a camisa, que não suba no trio da Parada LGBT e não use roupa de arco-íris para se dizer amiga. Precisamos de gente que nos defenda nesse momento e não de música para boate”, afirma Pedro.

O influencer espera que esse momento mais radical tenha fim, mas deixe uma lição aos artistas ou personalidades que queiram se aproximar ou fazer dinheiro com a comunidade. “Espero que crie uma consciência nas pessoas que LGBT não é bagunça. Somos o público mais fiel, que sustenta essas cantoras: mostre que valoriza nossa existência, que nós valorizaremos a sua”, ele diz.

Todos podem errar

O jornalista e administrador da página do Facebook Igreja de Santa Cher na Terra, Renan Wilbert, acredita que a comunidade finalmente está acordando para o poder que tem. “Apesar de não sermos unidos em vários aspectos, percebemos que movimentamos dinheiro e, em uma sociedade capitalista, é só atacando o bolso que as pessoas acordam”, afirma.

Apesar de ter uma página que faz referência à cantora americana, ele diz que não é saudável endeusar artistas ou criar expectativas irreais: todos são humanos e podem errar.

Ele incentiva que os LGBTs conheçam mais os artistas de dentro da comunidade, incentivem o surgimento de cada vez mais nomes que os representem, mas frisa que o momento não é de se fechar em uma bolha. “Acho que não tem isso de ‘vai ser banida do vale para sempre’, pois cabe a transformação, o que repensar sobre as atitudes. Todos podem errar, o que conta aí é capacidade de se redimir”, explica.

Valesca não foi a primeira

Antes da ex-integrante da Gaiola das Popozudas, outros artistas passaram por rituais de “cancelamento” pela comunidade LGBT. A demora no posicionamento para a adesão ao #EleNão fez com que Anitta ganhasse uma hashtag no topo dos trending topics do Twitter, #AnittaIsOverParty.
A primeira reação da cantora foi dizer que não era obrigada a revelar seu voto. Isso enfureceu ainda mais seus fãs LGBT, uma vez que, no mesmo ano, ela havia sido homenageada na maior parada LGBT do mundo, em São Paulo.

Depois da repercussão, Anitta fez outro vídeo no Instagram explicando que havia errado, ainda não revelaria seu voto, mas não ajudaria a eleger o candidato do PSL. Na ocasião, ela desafiou Ivete Sangalo, Preta Gil e Claudia Leitte a se posicionarem. Apenas a filha de Gilberto Gil respondeu ao chamado.

Já em 2019, Nego do Borel enfrentou fúria semelhante ao chamar a mulher trans Luisa Marillac de homem em seu Instagram. Ele chegou a ter a gravação de seu DVD adiada e as participações de Ludmilla e Luisa Sonza canceladas. Anitta também precisou se explicar por tê-lo colocado no palco em um show de pré-carnaval, no Rio de Janeiro.

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