Este artigo foi originalmente publicado na VICE UK.
Em 2017, um aumento repentino de mortes relacionadas com o consumo de fentanil no Norte de Inglaterra e uma série de rusgas policiais a fornecedores, levaram alguns a acreditar que este potente opióide tinha, finalmente, começado o seu percurso no mercado britânico de narcóticos. Pensou-se que seria uma questão de tempo até que os efeitos devastadores que a droga tem provocado nos Estados Unidos e Canadá – muito devido ao facto de os dealers adulterarem a heroína com um fentanil mais barato e mais potente – se começassem a notar também na Europa.
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A 18 de Janeiro último, três traficantes que tinham sido apanhados em Abril de 2017 deram entrada na cadeia para cumprir uma pena de 43 anos pela venda de 2.800 pacotes de fentanil e 635 gramas de carfentanil puro. Isto através da dark net e a partir de uns armazéns em Leeds, West Yorkshire. Ainda assim, nos quase dois anos entre a detenção e a prisão efectiva destes indivíduos, uma repetição da tão temida explosão de fentanil que se viveu nos Estados Unidos não aconteceu. Se bem que é certo que houve um aumento da circulação e consumo da droga na Europa, nada se aproximou dos níveis verificados na América do Norte.
[Nota do editor: No início de Março, a Autoridade Nacional do Medicamento revelou que 430 unidades do medicamento Fentanilo Basi, um potente analgésico usado também como componente da anestesia,teriam desaparecido do distribuidor em Portugal. De acordo com o Infarmed, há uma investigação em curso para se apurar as causas do desaparecimento e a suspeita de roubo e possível entrada do produto no mercado ilegal são uma preocupação para as autoridades, que terão mesmo emitido um alerta internacional].
Vê: “Fentanil: a droga mais mortífera que a heroína“
Nos Estados Unidos, em 2017 registaram-se 29 mil mortes associadas a opióides sintéticos, principalmente fentanil. Já em 2016, esta droga tinha ultrapassado a heroína como a substância ilegal mais letal na América do Norte. Em comparação, no Reino Unido houve apenas 58 mortes relacionadas com fentanil nesse mesmo ano e 75 em 2017. A National Crime Agency (NCA), a versão britânica do FBI, explica à VICE que, apesar do aumento de vigilância, não se encontraram fornecedores importantes de fentanil desde 2017. Segundo esta entidade, nos últimos 18 meses, as apreensões de fentanil nas fronteiras e nas ruas do Reino Unido manteve-se em níveis “muito baixos”.
Uma análise realizada entre 460 consumidores de heroína, em 14 projectos de tratamento no Reino Unido levados a cabo entre Dezembro e Maio de 2018 pela Universidade de Manchester e o organismo contra a droga CGL, revelou que, em média, apenas três por cento dos participantes testaram positivo para fentanil.
“Actualmente, o fentanil desempenha um papel muito pequeno no mercado europeu da droga”, segundo o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (EMCDDA). Para além do caso isolado da Estónia – que é antigo – e de vários casos de mortes na Ucrânia, Suécia e Lituânia, no resto da Europa – e, aliás, do Mundo -, o fentanil continua a ser uma droga tão temida como escassa. Em 2016 houve 738 apreensões da substância na Europa e 40 mil de heroína. No seu Relatório Mundial sobre Drogas de 2018, o departamento da ONU contra a Droga e o Delito assinalava: à excepção da América do Norte e da Estónia, onde o fentanil domina o consumo de opiáceos desde há 15 anos, o impacto desta droga e de substâncias parecidas é relativamente baixo”.
Enquanto nos Estados Unidos se procura uma solução para a espiral de mortes causadas pelo fentanil e o resto do Mundo observa a situação com horror, surge a pergunta inevitável: porque é que, até agora, os principais fornecedores de heroína, um negócio bastante lucrativo, não quiseram adoptar o perverso mas económico modelo de negócio americano de misturar fentanil com a heroína que se vende na rua para maximizar lucros, apesar de que, muito provavelmente, isso também signifique acabar com as vidas de alguns dos seus clientes? Ou, reformulando: porque é que aconteceu na América do Norte e em mais nenhum lado?
Uma tempestade perfeita de factores ocorridos ao longo da última década resultou na actual epidemia de fentanil nos Estados Unidos. Começou com um aumento da marginalidade social e o excesso de prescrição médica de opióides, o que provocou um aumento da dependência destas substâncias. Depois, colocou-se em marcha uma campanha para restringir a prescrição de opiáceos e um aumento da procura de heroína, que por aquela altura era escassa e de má qualidade. Assim, para satisfazer essa demanda, os traficantes recorreram ao corte com fentanil importado da China.
Num relatório recentemente publicado pelo International Journal of Drug Policy, Dan Ciccarone, professor da Universidade da Califórnia, São Francisco e especialista no mercado de heroína, salienta que a crise do fentanil aconteceu depois de três epidemias sucessivas de opióides. “Na primeira, as overdoses relacionadas com opióides começaram a aumentar no ano 2000 e foram aumentando ao longo de 2016. Na segunda epidemia, as mortes por overdose de heroína começaram a aumentar de forma significativa em 2007 até ultrapassarem as mortes por overdose de opióides em 2015. A terceira onda de mortalidade teve como causa o fentanil, substâncias semelhantes e outros opióides sintéticos administrados de forma ilícita. Inicialmente, as mortes aumentavam lentamente, mas dispararam depois de 2013”, explica Ciccarone.
Vê: “Heroína mexicana: a rota da papoila“
Para a maioria dos fornecedores de heroína, o fentanil foi uma opção mais apelativa, rentável e fácil de importar e produzir do que a heroína. Era uma substância habitual no mercado negro dos Estados Unidos, onde se consumia desde a década de 1970. E, com seis milhões de receitas médicas de fentanil prescritas por ano, apresentava numerosas oportunidades de investimento ilegal.
Os cartéis da droga mexicanos, que desde 2006 têm vindo a testar substitutos de heroína, são responsáveis pelo fornecimento de grande parte da heroína que se vende nas ruas dos Estados Unidos. Descobriram o fácil que era obter fentanil, principalmente importando-o da China, mas também produzindo-o nos seus laboratórios. Esta potente substância mostrava-se muito útil quando o fornecimento de heroína era escasso e dissimulava-se muito facilmente ao misturar-se com a heroína “branca” produzida no México e cada vez mais predominante nos mercados norte-americanos. A desvantagem, como se tornou evidente de seguida, era que, devido à sua altíssima potência, matava mais pessoas do que a heroína que pretendia substituir.
Este factor constitui um afastamento drástico do “modelo de negócio normal” no tráfico de drogas. Pela primeira vez na história, os dealers de heroína norte-americanos decidiram ignorar uma das regras de ouro da venda de drogas: não matar os clientes. Existe um consenso cada vez maior em como os produtos adulterados com fentanil que se comercializam como heroína, são produzidos por razões puramente económicas e não porque exista uma demanda entre os consumidores, que obviamente preferem a substância não adulterada. Mas, o que levou os produtores a assumirem o risco de perder grande parte dos clientes, umas 30 mil pessoas, em 2017?
“A única resposta razoável é que a clientela norte-americana é maior do que o que queremos reconhecer e essa “perda” não se entende como tal entre os líderes do negócio”, assinala Ciccarone. E acrescenta: “A outra hipótese é a de que estamos perante um negócio sem líder definido, isto é como o Faroeste e ninguém está aos comandos. Talvez uma subsecção de um cartel tenha tomado as rédeas da venda numa zona dos Estados Unidos e esteja a promover o fentanil, mas, ainda assim, é uma jogada arriscada e com consequências letais”.
Vê: “A epidemia da dependência de xarope para a tosse no Zimbabué“
Tino Fuentes é assessor para a redução de danos causados pelas drogas. Para ele, o modelo de negócio do fentanil é tão rentável para os produtores que, em várias ocasiões, os testes que realiza a supostas doses de heroína têm mostrado que, na verdade, não contêm nem um grama de heroína. Fuentes acredita que, num futuro próximo, a heroína nos Estados Unido pode converter-se numa “droga VIP”, já que é tão barato substituí-la.
O especialista diz-nos ainda que um quilograma de heroína custa entre 26.500 e 44.100 euros e gera benefícios que rondam os 220.800 euros, enquanto um quilo de fentanil custa 10.600 euros e pode chegar a gerar mais de um milhão de euros de benefícios. “Agora, os traficantes não se preocupam muito com os clientes”, sublinha Fuentes. E acrescenta: “Não é que estejam a tentar matá-los, mas operam numa base de tentativa-erro para aperfeiçoar o corte de fentanil e não querem saber se morre gente no processo. É uma situação muito lixada”.
Então, o que é que impede os traficantes europeus de seguirem os passos dos seus colegas dos Estados Unidos? Poderá ser esse factor a solução para a tragédia que está a acontecer na América do Norte? Por muito que possa parecer óbvio, o que é um sucesso num mercado de droga pode não o ser noutro. A metanfetamina, por exemplo, é uma substância muito consumida nos Estados Unidos, enquanto na Europa o seu consumo é quase simbólico. E é por isso que, na Europa, não se deu essa tempestade perfeita de marginalidade social, excesso de prescrições de medicamentos com opiáceos e fornecimento de heroína adulterada.
Vê: “Férias de heroína na República Checa“
Para além de uma gestão mais controlada dos opiáceos com receita, a Europa talvez tenha a salvação para a epidemia de fentanil no seu histórico némesis: o Afeganistão. Um país que as tropas britânicas tentaram subjugar, sem sucesso, em três ocasiões diferentes ao longo dos últimos 200 anos. No ano passado, cultivaram-se papoilas numa extensão de terreno equivalente a quase 263 mil campos de futebol nesse país, um narco-estado que produz 90 por cento da heroína que se vende no Mundo inteiro. Tudo isto, apesar das tentativas de invasão por parte dos exércitos de países do Ocidente e da destruição dos campos de cultivo por parte dos talibãs.
Como consequência, os distribuidores europeus de heroína levam nove anos a desfrutar de um abastecimento estável de heroína de alta pureza e baixo custo, o que, enquanto o Afeganistão continuar a ser a gigantesca quinta de heroína que é, torna desnecessária a procura de alternativas como o fentanil. A pureza da heroína que se vende nas ruas do Reino Unido alcança os 40 por cento e o quilo vende-se por cerca de 22 mil euros. Nos Estados Unidos, por sua vez, a pureza média da heroína é de 33 por cento e o quilo vende-se por quase o dobro do que no Reino Unido, a 44.220 euros.
Outro factor a ter em conta é que é daca vez mais fácil contrabandear heroína a partir do Afeganistão. Hoje, é menos provável que nunca que mercadorias ilegais contendo heroína sejam interceptadas à entrada do Reino Unido. O número de apreensões na fronteira britânica alcançou mínimos históricos em 2018, apesar do aumento da pureza e da descida dos preços da heroína, o que é indicativo de que o abastecimento da droga no país está estável e abundante. Ao contrário da heroína que se produz no México, a do Afeganistão é castanha, o que torna mais complicado misturá-la com fentanil, que é um pó branco.
De momento, para os traficantes europeus o fentanil não é apelativo. “Enquanto houver heroína barata disponível e de fácil acesso, para quê mudar para algo mais problemático? Porque é que haverias de querer trocar um iPhone por outro telefone? Terias que ter uma razão, um produto que te ofereça algo melhor”, diz Jonathan Cole, professor da Universidade de Liverpool e especialista em mercados de droga. E realça: “Se o negócio da heroína vai bem, em que é que te beneficia acrescentares-lhe fentanil? Já estás a ter benefícios sem a necessidade de matares os teus clientes”.
Quando questionado sobre o fentanil, um dealer de heroína de Liverpool que faz entregas ao domicílio diz que não conhece nenhum traficante na cidade que acrescente tal substância ao seu produto: “O nosso material é suficientemente bom sem fentanil e não queremos matar os nossos clientes”.
Os que têm a tarefa de monitorizar os grupos organizados de tráfico de drogas, asseguram que, de momento, nada indica que o fentanil esteja a ganhar popularidade entre os traficantes britânicos. “A produção no Afeganistão aumentou significativamente e aqui está-se a vender material de alta pureza; talvez seja essa a razão pela qual não se esteja a adulterá-la com fentanil”, explica Vince O’Brien, chefe de operações contra o narcotráfico da NCA. O’Brien também enumera outros factores, como o encerramento do mercado de drogas da Internet Alpha Bay, em 2017, que dificultou a compra de fentanil por esta via. Por outro lado, O’Brien salienta ainda que talvez a cobertura mediática da crise do fentanil nos Estados Unidos tenha gerado um certo alarme entre os líderes do tráfico de heroína europeu: “O fentanil é muito tóxico e é possível que os grupos traficantes tenham medo de eles próprios serem vítimas ou de apanharem penas muito altas por matarem os seus clientes”.
Vê o primeiro episódio de “Hamilton’s Pharmacopeia”
Tudo isto pode mudar se, por exemplo, ocorrer algum desastre na bem oleada máquina do ópio afegão, como uma praga que afecte as plantações de papoila, ou um decreto anti ópio incentivado pelos talibãs, tal como o que aconteceu em 2000. No caso norte-americano, a resposta óbvia parece ser combater fogo com fogo.
Em vez de perder milhões de dólares na construção de um muro que não vai servir para impedir o fentanil de cruzar uma fronteira, nem para travar o tráfico desta substância pela Internet ou correio, a aparição de um produto que lhe faça concorrência poderia ser uma via de escape à armadilha mortal em que se encontram, actualmente, os Estados Unidos. Seja este novo produto comercializado através de serviços de tratamento de toxicodependência para pacientes que não queiram largar a heroína, ou por organizações criminosas com capacidade de travar o modelo actual, o resultado seria uma diminuição do número de mortes.
De qualquer maneira, o que parece cada vez mais inevitável à medida que se prolonga a proibição, é que o tráfico de drogas se está a afastar inexoravelmente das substâncias de origem vegetal distribuídas pelas vias tradicionais e está a adoptar um formato mais tecnológico: drogas sintéticas, elaboradas em laboratórios clandestinos, compradas online e distribuídas de forma escondida, entre um milhão de outros pacotes castanhos; drogas que são, também, muito mais letais que as substâncias naturais que, não tarda nada, irão substituir definitivamente.
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