Este artigo foi publicado originalmente na VICE UK.
A Europa é uma união, mas também uma mistura complexa de países com leis, idiomas, valores, políticas de drogas, salários mínimos, bebidas e anedotas próprias. A vida pode ser totalmente diferente consoante o lado da fronteira em que nasceste, até dentro dos limites da UE. Na VICE.com, trazemos-te histórias que mostram como as fronteiras dos países que dividem e delimitam a Europa influenciam o dia-a-dia daqueles que vivem perto delas.
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Enquanto o Reino Unido enfrenta uma luta liderada por um governo conservador e o Brexit permanece sem solução, o “apoio irlandês” e a administração da única fronteira entre o Reino Unido e a Europa permanecem no centro do debate político britânico, mas o grande impacto humano que a vigilância dessa fronteira supõe continua a ser ignorado.
O reforço dos controlos na fronteira entre a Irlanda e o Reino Unido pode comprometer as oportunidades das mulheres de viajarem a território inglês para poderem abortar. Antes do referendo de 2018, sobre a revogação da proibição do aborto na Irlanda, este era ilegal tanto na República da Irlanda como na Irlanda do Norte. As mulheres irlandesas viam-se obrigadas a viajar para o Reino Unido de avião ou de barco para terem acesso a esse serviço.
Segundo o Departamento de Saúde do Reino Unido, 4633 mulheres viajaram a Inglaterra para abortar em 2017. Dessas mulheres, 61 por cento eram irlandesas e 22 por cento residiam na Irlanda do Norte. Desde que o referendo foi aprovado no ano passado, estes números mudaram ligeiramente: o relatório de 2018 indica que houve menos 213 mulheres a viajarem da República da Irlanda para outros locais para abortar mas, ao mesmo tempo, em 2018 o número de mulheres da Irlanda do Norte que viajou para fora das suas fronteiras para abortar ultrapassou o do ano anterior por 192 pessoas.
Assim, apesar das mudanças nas leis da Irlanda, onde já é legal abortar com gravidezes de até 12 semanas, muitas mulheres continuam a sair da Irlanda do Norte e da República da Irlanda para o Reino Unido para abortar. Falei com Mara Clarke, directora da Rede de Apoio ao Aborto ASN (Abortion Support Network), para descobrir a origem desse fenómeno. Ela começou a ajudar mulheres a encontrarem sítios para abortar quando ainda morava em Nova Iorque, onde alojava no seu estúdio as mulheres que precisassem de sítio onde recuperar durante noite seguinte.
Depois de se mudar para Londres em 2005, Clarke percebeu que as mulheres que viajavam para o Reino Unido para abortar precisavam de apoio. O Irish Women Abortion Group, uma iniciativa de Anne Rossiter, foi forçado a suspender a sua actividade em 2000 como resultado do boom da economia irlandesa no final da década de 1990 e da abundância de voos low cost entre a Irlanda e o Reino Unido, o que facilitou o deslocamento de mulheres que queriam abortar. Mesmo assim, após a crise económica de 2008, o número de mulheres que precisavam de ajuda para ir abortar ao Reino Unido voltou a crescer. Em 2009, Clarke fundou a ASN para atender a essa necessidade, oferecendo apoio e acomodação segura.
O referendo de 2018 foi uma vitória crucial para as mulheres irlandesas, uma vez que desafiou as autoridades patriarcais e católicas que desempenharam um papel essencial no momento da criação de uma Irlanda independente. Clarke explica que o ASN passou por uma mudança positiva desde que a proibição do aborto foi revogada, já que o número de mulheres a entrarem em contacto caiu. Mas, embora os pedidos de ajuda ao ASN tenham diminuído, as mulheres a pedirem apoio precisaram de mais recursos do que nunca: instituições de caridade contribuíram com mais de 98.700 euros em doações em 2018.
Segundo Clarke, uma das coisas que mudaram desde o referendo é que, hoje em dia, quando as mulheres ligam para a linha de apoio “pedem menos desculpas do que nunca, têm mais segurança e são mais directas a pedir ajuda”. Então, porque é que ainda precisam de ajuda e ainda viajam até à Grã-Bretanha?
Muitas mulheres não sabem que estão grávidas durante as primeiras semanas e, quando descobrem, o procedimento que têm que seguir na Irlanda pode demorar tanto tempo que, quando lhes é concedido o aborto, o prazo legal, que é de 12 semanas, já passou. No Reino Unido, este é possível até 23 semanas e 5 dias de gravidez.
“Muito do trabalho de Clarke baseia-se em ajudá-las a arranjar estratégias para que possam ir ao Reino Unido, passarem despercebidas, abortarem e regressarem à Irlanda sem que ninguém descubra que alguma vez saíram do país.
Clark explica que muitas mulheres que vão ao ASN são mais velhas e normalmente acham que estão a passar pela menopausa, muitas vezes porque já têm filhos crescidos e não consideram a possibilidade de outra gravidez. Outros casos comuns são os de mulheres que estão em relações abusivas ou são vítimas de coerção reprodutiva. Normalmente, essas mulheres não são capazes de conseguir um médico: muito do trabalho de Clarke baseia-se em ajudá-las a arranjar estratégias para que possam ir ao Reino Unido, passarem despercebidas, abortarem e regressarem à Irlanda sem que ninguém descubra que alguma vez saíram do país.
Muitas das clientes de Clarke vêm de centros de apoio directo – a solução do governo irlandês para o aumento dos pedidos de asilo que ocorreu em 1999 – instalações nas quais muitas delas se vêem obrigadas a viver durante anos, enquanto aguardam que a sua solicitação de asilo seja processada.
A ASN também se dedica a apoiar estas mulheres e as que não têm documentos e vivem na Irlanda. Segundo Clarke, o processo pelo qual as mulheres sem documentação, como as do apoio direto, passam é mais complicado, porque lhes é exigido visto para entrar e sair do país – até quando viajam para o Reino Unido. Estes vistos são muito mais difíceis de obter desde o referendo do Brexit porque os regulamentos do Escritório Central foram reforçados. Clarke deixa claro que a ASN não tem implicações políticas e não participa em nenhuma campanha relacionada, mas expressa as suas preocupações sobre a saída do Reino Unido da Europa e de como isso poderá vir a afectar as mulheres em situações vulneráveis, que tanto ela como os seus colegas tentam ajudar.
Seria de esperar que, após o referendo irlandês, as mulheres da Irlanda do Norte começassem a cruzar as fronteiras da República para abortarem, em vez de viajarem de barco ou de avião até ao Reino Unido. Mas esse não foi o caso: na verdade, nos últimos dois anos, as viagens de mulheres da Irlanda do Norte para o Reino Unido aumentaram, devido ao procedimento envolvido.
Uma das possíveis razões para isso é o procedimento imposto às mulheres na Irlanda do Norte para se qualificarem para um aborto na República, assim como o limite de semanas que têm. Como residentes da República, elas devem comparecer a um mínimo de consultas médicas prévias, o que implica um custo de medicamentos e deslocações. Isso faz com que o custo total de um aborto seja de cerca de 400 euros, uma quantia que nem todos podem pagar. A opção mais barata é comprar um voo barato para o Reino Unido e, com a ajuda do ASN, ter acesso a alojamento e a serviços de saúde no mesmo país.
Outra consequência possível da saída do Reino Unido da União Europeia nas viagens para abortar está, irónicamente, relacionada com as eleições. O Reino Unido é um dos três países da Europa que oferecem a possibilidade de aborto após 14 semanas, na Suécia é legal até às 18 semanas e na Holanda até às 22 semanas, embora este último país tenha apenas duas clínicas médicas que permitem realizar o processo a mulheres não residentes. Nos hospitais, solicitar o aborto é muito mais complicado para elas. Portanto, o Reino Unido é importante por ser um dos países em que há uma maior margem de tempo para abortar. Se sair da União Europeia, as repercussões não afectariam apenas as mulheres irlandesas, mas também as mulheres de toda a Europa – especialmente aquelas que vivem num contexto menos privilegiado ou que não tenham passaporte europeu.
“Vamos tirar a Irlanda do Norte da era arcaica, como fizemos no sul e vamos lutar juntas”
Este ano, no Dia Internacional da Mulher, activistas de ambos os lados da fronteira reuniram-se em Belfast, onde se manifestaram juntas pelos direitos humanos e pela liberdade de decisão sobre os seus próprios corpos. Falei com Siobhan Shiels, que estava lá. Shiels está ligada a ambos os lados como parte do grupo Abortion Rights Campaign, liderado por um grupo de mulheres de Donegal (a sul da fronteira) até ao norte de Belfast, com o objectivo de dar visibilidade e apoio aos activistas da Irlanda do Norte que estão a lutar pela legalização. De acordo com Shiels, o Partido da Aliança da Irlanda do Norte viajou à República para dar apoio durante a campanha pré-referendo e, agora estão a fazer o mesmo com as mulheres do norte.
“Vamos tirar a Irlanda do Norte da era arcaica, como fizemos no sul e vamos lutar por isso juntos. Eu não acho que o aperto dos controlos de fronteira nos possa impedir nem evitar que nos ajudemos uns aos outros ”, explicou ela.
Quando falei com Anne Rossiter, escritora e activista nos seus setenta anos, ela contou-me que em 1970, quando o aborto era ilegal, ela se dedicava a ajudar as mulheres que precisavam dela. “As mulheres sempre se apoiaram umas às outras”, disse-me.
Anne não queria que passassem pelo mesmo trauma que ela passou e propôs-se a acomodar as mulheres que visitavam o Reino Unido para abortarem. Disse-me que já acolheu centenas delas ao longo dos anos.
Ela também me explicou que muitas das mulheres que optaram por ir a Inglaterra o fizeram porque a Irlanda é pequena, por isso é mais provável ser descoberta lá do que em Londres. “Embora o aborto tenha sido legalizado, o estigma e o remorso ainda estão muito presentes e as mulheres são perseguidas por esta decisão.”
Segundo Anne, o director geral da companhia aérea Ryanair, Michael O’Leary, foi considerado um herói por muitos activistas dos direitos ao aborto: há muitas mulheres a viajarem em vários dos voos noturnos de Dublin para Londres, para irem abortar. Anne comenta que, “uma vez que sabes, começas a saber identificá-las.”
“Apesar do aborto ter sido legalizado, o estigma e o remorso ainda estão muito presentes e as mulheres são perseguidas por esta decisão.”
Um aspecto que preocupa Anne é como é que o Brexit e o recente auge do nacionalismo podem afectar os direitos das mulheres. Fala da proibição do aborto no estado da Geórgia, nos Estados Unidos e também do poder incondicional que foi dado ao partido político DUP da Irlanda do Norte em Westminster, para garantir a maioria conservadora na Câmara dos Comuns. Anne acredita que a ascensão de partidos políticos de direita, como a Liga do Norte na Itália e o VOX em Espanha, entre outros, poderia ser uma ameaça à liberdade pela qual os europeus tanto lutaram desde a Segunda Guerra Mundial, que foi também o propósito da criação da União Europeia.
Uma das liberdades que está em perigo é a livre circulação pela Europa. Tanto as mulheres da República da Irlanda como as da Irlanda do Norte podem confirmá-lo: essa independência é vital para as pessoas que vivem em países com políticas restritivas em relação ao aborto.
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