O Tribunal da Relação de Lisboa decidiu na quarta-feira, 13, extraditar para Itália uma antiga agente da Divisão de Contra-Terrorismo da CIA, que é uma de mais de 20 operacionais da agência norte-americana acusados e condenados à revelia em Milão, Itália, por rapto, num caso relacionado com a célebre capitulação de um clérigo radical muçulmano em 2003.
Sabrina de Sousa, 60 anos, tem dupla nacionalidade portuguesa e norte-americana, e em Outubro de 2015, quando pretendia viajar para a Índia onde visitaria a sua mãe acabou detida no Aeroporto da Portela, na capital portuguesa, devido a um mandato de captura europeu emitido pelas autoridades italianas que sob ela pendia. Foi então obrigada a entregar os seus passaportes português e norte-americano enquanto um juiz decidia se seria ou não extraditada.
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Dias antes, a VICE News tinha estado com Sabrina de Sousa em Lisboa a gravar um documentário sobre a luta que trava há uma década para limpar o seu nome e clarificar o seu papel na rendição de Osama Mustapha Hassan Nasr, mais conhecido como Abu Omar, um clérigo muçulmano cujos ferozes discursos anti-americanos logo após o 11 de Setembro chamaram a atenção da CIA.
Vê aqui o documentário da VICE News com Sabrina de Sousa, filmado entre Lisboa e Milão, “The Italian Job”:
De Sousa e o seu advogado em Portugal, Manuel Magalhães e Silva, asseguram à VICE News que o Tribunal não os notificou formalmente da decisão de extradição. Mas numa declaração enviada à VICE News, o representante legal garante vai recorrer e Sabrina diz que exigirá um novo julgamento.
“Quando receber uma notificação formal vou recorrer para o Supremo Tribunal e no caso de a decisão ser confirmada pelo Supremo, vou recorrer ao Tribunal Constitucional”, refere Magalhães e Silva.
Uma fonte do Tribunal da Relação de Lisboa contactada pela VICE News adianta que o advogado de Sabrina de Sousa receberá a notificação formal da decisão hoje, sexta-feira,15, e que, depois, essa decisão será tornada pública. A mesma fonte realça ainda que como a visada pode recorrer da decisão, Portugal não avançará com qualquer iniciativa de deportação para Itália até que haja uma decisão definitiva do Tribunal. E, acrescenta, a fonte, como Sabrina de Sousa tem dupla nacionalidade e é uma cidadã portuguesa, um novo julgamento poderá ser realizado em Portugal e não em Itália.
Armando Spataro, o Procurador italiano de Milão que construíu o caso contra os agentes da CIA e conseguiu as condenações, não se mostrou disponível para comentar este novo desenvolvimento do caso. Em entrevista à VICE News em 2015, Spataro disse que De Sousa, que aponta como a “mentora” da operação Abu Omar, não teria direito a um novo julgamento a não ser que apresentasse provas que mostrassem – inequivocamente – que está inocente e a sua condenação é um erro.
E acrescentou ainda que, se ela quer limpar o seu nome, “deveria vir aqui e contar-nos tudo”.
A CIA recusou fazer qualquer comentário sobre os novos desenvolvimentos em Portugal. Nem a Agência, nem a Casa Branca, sob a presidência de George W. Bush ou Barack Obama, alguma vez admitiram publicamente que a capitulação de Abu Omar tenha ocorrido.
[Lê também “A Radical Imam, His Alleged CIA Kidnapper, and Their 10-Year Hunt for Justice“]
A actual situação de Sabrina de Sousa tem potencial para causar uma crise diplomática entre os Estados Unidos, Itália e Portugal, e ameaça levar à revelação de novas informações, muitas delas ainda sob o selo “Classified”, sobre a operação ultra secreta de Abu Omar e que os governos italiano e norte-americano têm tentado por todos os meios manter ocultas há mais de uma década. O caso criminal contra os agentes da Agência de Inteligência foi a primeira e única acusação a envolver americanos ligados ao altamente controverso programa de capitulação, detenção e interrogatório desenvolvido pela CIA.
Sabrina de Sousa viajou para Portugal na Primavera de 2015 via Marrocos. A sua chegada ao país fazia parte de uma nova tentativa da ex-oficial de responsabilizar a CIA e a Itália pelo que ela considera ter sido uma “capitulação ilegal” e obter ajuda por parte de advogados ligados aos Direitos Humanos e de um membro do Parlamento Europeu, de forma a poder limpar o seu nome.
“Sabia que estava a correr um risco, mas a dada altura quis viver [em Portugal] como uma cidadã livre e esta situação tem de ser solucionada”, contou De Sousa à VICE News em Outubro do ano passado, depois da sua detenção.
Numa sentença histórica proferida em 2009, 26 americanos, 23 dos quais eram funcionários ou contratados externos da CIA, foram condenados à revelia, em Itália, por, entre outras acusações, ligações ao rapto de Abu Omar, ocorrido em Fevereiro de 2003. Sabrina de Sousa foi sentenciada a sete anos de prisão, a cumprir em Itália. No mês passado, uma das oficiais da CIA também condenadas, Betnie Medero, recebeu um perdão total concedido pelo Presidente italiano, Sergio Mattarela. O antigo chefe da delegação da CIA em Milão, Robert Lady, recebeu um perdão parcial, passando a pena de nove para sete anos. (Lady foi preso em 2013 ao viajar para o Panamá. Foi rapidamente libertado e regressou aos Estados Unidos antes que a Itália pudesse tentar fazer alguma coisa para a sua extradição. É ainda pouco claro que diligências terão tomado os Estados Unidos para o resgatar).
Numa declaração, Mattarela disse que tinha decidido decretar os perdões, porque Obama terá acabado com o chamado programa de capitulação, em que suspeitos de terrorismo eram capturados secretamente num qualquer país e depois enviados para outro para serem interrogados pelos serviços de inteligência locais – e por vezes torturados.
Em Fevereiro, de acordo com a notícia publicada pelo jornal italiano “La Stampa”, Sergio Mattarela tem agendado um encontro com Barack Obama na Casa Branca. O caso de Sabrina de Sousa – e um possível perdão a pedido da Administração norte-americana – bem como a capitulação de Abu Omar podem ser tópicos de conversa, ainda de acordo com o “La Stampa”.
“Fará o Presidente Obama a coisa mais acertada e protegerá TODOS os diplomatas e militares de poderem ser acusados por governos estrangeiros em casos relacionados com programas (capitulações) que são todos, sem excepção, autorizados pela própria Casa Branca e pelo Conselho de Segurança Nacional?”, questiona De Sousa.
Em resposta a questões colocadas pela VICE News, Mark Stroh, porta-voz do Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca, não quis comentar a notícia do “La Stampa”, nem confirmar a suposta visita do presidente italiano.
Um alto membro do gabinete de Mattarela disse à VICE News na quinta-feira, 14, que têm ocorrido diversas discussões sobre a possibilidade de um perdão total a Sabrina de Sousa entre entidades americanas e italianas desde que foi detida em Outubro de 2015. O responsável, que apenas aceitou falar sob anonimato, garante que Mattarela deverá tomar uma decisão, seja o perdão total, ou a redução de pena, no próximo mês.
Depois do desaparecimento de Abu Omar, uma investigação liderada por Spataro descobriu que o clérigo teria sido capturado numa rua de Milão em plena luz do dia por agentes da CIA e dos serviços de inteligência italianos e entregue ao Egipto, onde Omar garante ter sido brutalmente torturado durante interrogatórios sobre os seus alegados planos para recrutar jihadistas para combaterem americanos.
De Sousa, que operava sob disfarce diplomático no Consulado americano em Milão na altura dos acontecimentos – estava oficialmente inscrita como funcionária do Departamento de Estado – declarou-se de imediato inocente. No dia que a operação decorreu diz que estava numa estância de ski com o filho e tem provas que o confirmam. Reconhece que trabalhou como tradutora entre as equipas operacionais da CIA e a italiana que planearam o rapto, mas afirma que foi “posta de parte” muito antes da sua efectivação.
O procurador italiano, Spataro, explicou à VICE News o ano passado que mesmo que De Sousa não tenha feito parte do rapto em si no dia em que teve lugar, não deixa de ter um papel no crime.
“Não é só no caso de Abu Omar, mas em qualquer acto criminal, como roubo de automóveis, por exemplo, não é só culpado o executante, mas também quem ajuda na preparação”, justificou Spataro à VICE News.
Mas Sabrina de Sousa continua determinada em provar a sua inocência.
No último ano, fez-se valer de forma firme do Freedom of Information Act (FOIA) e processou a CIA e o Departamento de Estado, numa tentativa de lançar mão a documentos que possam revelar discussões internas sobre o caso de Abu Omar e provem que não esteve envolvida no seu rapto. Recentemente conseguiu obter cartas desclassificadas dos departamentos de Justiça e de Estado que revelam que há vários anos a CIA lhe garantiu que nunca seria acusada – quanto mais condenada – em Itália. O que se viria a revelar falso.
Em Junho de 2015, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos levou a cabo em Estrasburgo, França, uma audiência por acusações de, entre outras, Abu Omar não ter sido compensado pela sua capitulação e alegada tortura no Egipto. Espera-se que o Tribunal emita uma decisão mais para o final deste ano.
Esta reportagem teve o contributo de Sérgio Felizardo, Editor Chefe da VICE Portugal, e foi originalmente publicada na nossa plataforma VICE NEWS.
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