Mais difícil do que falar “puerpério” é encará-lo. Também conhecido como pós-parto, esse momento na vida de uma mãe recente pode se transformar num thriller. Bem diferente do universo angelical e imaculado que permeia o imaginário social, a vida de quem acabou de ter um bebê pode ser vertiginosa. Fralda, xixi, amamentação, cólica, choro, horários trocados, falta de sono, falta de tempo para comer, tomar banho, fazer sexo, tristeza, solidão. Tudo em quantidades tsunamicas, além das alterações hormonais. O assunto nem sempre é confortável para as mães. Mas nós vamos falar sobre puerpério. E também sobre baby blues e depressão pós-parto. Para isso, conversamos com mães e especialistas que demistificaram a maternidade como todo mundo conhece.
Mãe de segunda viagem, a fotógrafa paulistana Daniela Toviansky recebe a reportagem da VICE enquanto o filho mais velho, Sebastião, de três anos, está na aula de natação. Confortavelmente aninhada ao peito, está a pequena Teresa, de apenas 45 dias. Durante o papo, Daniela coloca a mão dentro do sutiã e tira algo que parece uma gaze. “Uma coisa de puérpera: absorvente de peitos. Senão fica escorrendo leite. E o cheiro do leite azedo, ó, é um blend incrível”, ironiza.
Videos by VICE
“Cheiro de leite azedo, ó, é um blend incrível”, ironiza a fotógrafa Daniela Toviansky sobre o leite que vaza do peito
“Agora você vai ver a mágica de cuidar de duas crianças ao mesmo tempo”, ela pontua enquanto leva o primogênito para debaixo do chuveiro. Antes mesmo de surgir qualquer pergunta, Daniela dispara: “Você tem um bebê grudado em você o tempo inteiro. Você dorme mal porque o bebê acorda durante a madrugada. Você não consegue fazer xixi. Às vezes, passa o dia inteiro e você não escovou os dentes, não lavou o rosto, não foi ao banheiro”. Ela se autointitula como “mãe índia”, apelido das mulheres que acreditam no parto humanizado, na criação com apego, na livre demanda (quando o bebê mama toda vez que quiser), que preferem carregá-lo num sling (aquele tecido em que a criança fica enrolada na mãe ou no pai) do que num carrinho, que dão colo toda vez que ouvem um choro. “Nos chamamos de índia porque fulano fala ‘Ai, ter parto no chuveiro? Agachada? Sem anestesia? Amamentar com o peito de fora? Que coisa feia. Coisa de índia’. Opa, é nóis.”
Mas isso não quer dizer que o pós-parto fique mais fácil. “Quando você está puérpera em casa, está você e o bebê. De um jeito ou de outro, é como se você estivesse num asilo forçado porque você está separada da convivência social”, ela explica. Nesses momentos, surge o Facebook, “maravilhoso e ao mesmo tempo horrendo”. “Vejo meus amigos postando foto dos trampos que eles estão fazendo, e eu aqui, amamentando criança, não dormindo de madrugada, sem conseguir fazer a unha, zuada, sem grana, sem frila. Vai dando uma bad do mal.”
A fotógrafa teve os dois filhos de parto natural. “Então, não tinha corte de espisiotomia nem de cesárea pra cicatrizar”, ela relata. Episiotomia é o nome dado ao corte feito no períneo (região entre a vagina e o ânus) para facilitar a passagem do bebê durante o parto. De acordo com a pesquisa ” Nascer no Brasil “, da ENSP/Fiocruz, 53,5% das mulheres que tiveram parto normal passaram pela episiotomia em 2011. “Imagina o puerpério da mãe que não teve o bebê, que perdeu a criança?”, indaga Daniela.
É o caso da artista multimídia Estéfi Machado, que perdeu um casal de gêmeos no começo de 2013. No sexto mês de gestação, um sangramento acabou virando um coágulo no útero e fez com que ela tivesse de ficar internada por mais de 10 dias.
“Saí da maternidade sem nenhum bebê e com cara de recém-parida”, relembra a artista Estéfi Machado, que perdeu um casal de gêmeos ainda no hospital
No dia 2 de fevereiro, dia de Iemanjá – como ela mesma lembra –, Estéfi deu à luz seus dois bebês, Breno e Cecília, já sabendo que eles não sobreviveriam. “No hospital, me deram um remédio e apertaram meus seios com uma faixa para o leite não jorrar. Saí da maternidade sem nenhum bebê e com cara de recém-parida”, ela relembra.
Em casa, o primeiro filho da artista, Teo, com seis anos na época, não entendeu a situação. Além de lidar com o próprio luto, ela precisava cuidar da família, que também sofria. “Chorei muito, muito.”
Recomendaram que Estéfi começasse a fazer terapia. E, quando ela finalmente criou coragem, marcou com uma profissional especializada em perdas maternas. Não podia ser pior. “A mulher esqueceu e não apareceu.”
A artista não chegou a ter depressão pós-parto, mas, dois anos depois, a labirintite atacou e os médicos recomendaram uma pequena dose de antidepressivo – também por conta da perda dos gêmeos. O apoio do marido, da família e dos amigos foi essencial. “O tempo cura. Sem dúvidas. Tem de ter muita paciência.” Ela diz que a “fábrica continua aberta” e que, se vier outro bebê, será bem-vindo. Só que o coração aperta quando Teo, seu primeiro filho, pergunta: “Quando meus irmãos vão voltar?”.
O BABY BLUES E A DEPRESSÃO PÓS-PARTO
Doutora em psicologia pela USP (Universidade de São Paulo) e psicanalista, Cristiane Geraldo Folino estuda a questão da maternidade há 16 anos. Ela detalha em fundamentos médicos as dificuldades vividas durante a gestação e o puerpério. “Na literatura médica, encontramos alguns autores que descrevem as alterações hormonais e fisiológicas como verdadeiros ‘tsunamis’ no corpo”, pondera a especialista. Durante a gestação, ocorre certa regressão no funcionamento psíquico da mulher. Por isso muitas grávidas ficam mais sensíveis. “Há também um acesso facilitado aos conteúdos e conflitos inconscientes.”
Baby blues, apesar do nome poético, é a tristeza que aparece após o parto.
No entanto, assim como o puerpério tem começo, ele também tem fim. “A maioria dos autores da área médica aceita como tempo de duração normal do puerpério o período de 6 a 8 semanas”, explica Cristiane.
Baby blues, apesar do nome poético, é a tristeza que aparece após o parto. Pode ter também outras denominações, tais como síndrome da tristeza pós-parto, blues materno e melancolia pós-parto. Geralmente, ele surge no terceiro dia após o nascimento da criança, podendo durar em torno de quinze dias (ou mais). “É descrito geralmente por um estado depressivo benigno, transitório, e aparece na maioria das mulheres que acabaram de ter um parto”, afirma Cristiane. Sintomas como choro, tristeza, fragilidade, falta de confiança em si e sentimento de incapacidade acometem cerca de 70% das mães. O mesmo pode acontecer, inclusive, com mães de crianças que foram adotadas.
Para a psicóloga e psicanalista, o baby blues não é valorizado; por isso, tantas mulheres se angustiam ao se flagrarem despreparadas para lidar com sentimentos tão intensos. “Vivemos uma cultura que idealiza a maternidade, não dando margem para a mãe se sentir autorizada a sentir nada além de júbilo por ganhar um filho, gerando ainda mais conflito e solidão em uma grande parte das mulheres.”
Diagnosticar a depressão pós-parto (DPP) pode ser complicado devido à semelhança com as flutuações de humor que ocorrem nas duas primeiras semanas do puerpério. Para Cristiane, há um indicador importante: “Um baby blues que se arrasta e não evolui positivamente precisa ser mais bem acompanhado e avaliado”.
De acordo com a especialista, 10% das mulheres que dão à luz sofrem de DPP.
SINTOMAS DA DEPRESSÃO PÓS-PARTO (DPP)
perda de energia e interesse;
perda da capacidade de experimentar prazer;
sentimentos de culpa;
dificuldade de concentração;
perda de apetite;
insônia ou sono excessivo;
ataques de ansiedade, pânico;
pensamentos obsessivos, pessimistas;
em casos mais graves, pode haver pensamentos de morte ou suicídio.
Outros sintomas:
Cansaço intenso;
anorexia, perda de peso;
sentimento de incompetência frente ao bebê.
A professora Joana*, que, antes de engravidar, sofreu um AVC, é portadora de necessidades especiais neurológicas. “Fiquei com algumas sequelas. Tenho problema de memória, de visão, hipersensibilidade ao barulho.” Mas nada disso a impedia de ser mãe. Tanto que engravidou.
Os sintomas de DPP começaram logo nos primeiros dias depois do parto. “Desde que a neném nasceu, eu tive aquela coisa de ficar chorosa. Que é normal. Eu chorava à toa. A única coisa que me fazia sorrir era a bebê. Foi um período em que fiquei muito sozinha.” Ela já havia lido sobre baby blues. E acreditou que, talvez, a tristeza passasse. Talvez, não.
“Pensei que alguma coisa estava errada comigo”, revela a professora Joana*, que cogitou tirar a própria vida durante a depressão pós-parto
A gota d’água foi quando ela saiu do shopping, colocou a filha dentro do carro e, por conta dos problemas de memória, acabou trancando a criança lá dentro. “Tentei me manter calma, chamar o chaveiro. Mas o povo do shopping ficou mais desesperado do que eu tentando arrombar a porta. Comecei a chorar. Acabei quebrando o vidro. Ali foi o gatilho pra eu me sentir uma inútil, [pensar] que eu ia prejudicar a bebê, que eu fazia mal pra ela. E, aí, começaram a vir umas ideias mais nocivas. Se é que você me entende.”
Joana cogitou se matar. Kardecista, a professora acredita na vida eterna. “Pensei que alguma coisa estava errada comigo. Sempre fui uma pessoa otimista. Nunca pensei uma coisa dessas. Não sabia pra quem pedir ajuda.”
Joana fez o que eu, você e todo mundo faz: recorreu ao Google. Lá, ela viu que poderia conversar com um psicólogo ou mesmo com seu obstetra. Ela optou pelo segundo, que, depois de uma bateria de exames, concluiu que ela estava com hormônios alterados. Foram quase sete meses tomando medicação e recebendo apoio da família. Ficar sozinha era estritamente proibido. Atualmente, Joana está melhorando, embora nossa entrevista tenha sido por telefone uma semana depois que sua mãe havia falecido. “Agora estou conseguindo entrar nos eixos e voltar à normalidade”, respondeu, aliviada.
Identificar uma mulher com DPP nem sempre é uma tarefa simples e pode passar despercebido até mesmo por quem está mais próximo. Apesar de estarem emocionalmente ausentes e desconectadas de suas crias, as mães deprimidas podem estar presentes do ponto de vista físico e concreto, exercendo de forma mecânica suas tarefas com o filho.
COMO IDENTIFICAR A DPP (DEPRESSÃO PÓS-PARTO)
Na mãe: observar o estado geral, de higiene, a presença de queixas somáticas, depressão grave, relação conflituosa com o (a) parceiro (a), ausência de rede de apoio, principalmente do (a) companheiro (a) e de pessoas significativas do sexo feminino, dificuldades financeiras acentuadas, ocorrência prévia de aborto ou morte de filhos, luto durante a gestação ou no pós-parto.
No bebê: observar a presença de distúrbios psicossomáticos recorrentes, distúrbios do sono e do apetite, retardo do desenvolvimento ou do crescimento; bebês considerados “difíceis”, que choram muito e não são facilmente apaziguados.
MOTIVOS
Mas o que leva uma mãe a ter depressão pós-parto? Cristiane afirma que se trata de um fenômeno plurifatorial. “Muitos elementos podem estar envolvidos. Entretanto, do ponto de vista que trabalho, posso resumir que [se trata] de uma dificuldade de lidar com os profundos impactos e reverberações que um filho traz no horizonte da vida de quem gera e cuida de um bebê”, discorre a especialista. Há também o aspecto de que a mulher deixa de investir na sua vida anterior para investir na gestação do filho e no seu lugar de mãe. “Mas não penso que a mulher tem o poder de controlar o que se passa dentro dela.”
“Eu tinha minha grana, comprava minhas coisas, ficava lendo revista de fotografia. Hoje em dia, eu nem tenho mais interesse nessas coisas. Fico procurando onde tá mais barato a carne moída”, diz a fotógrafa Daniela Toviansky
A fotógrafa Daniela conhece bem o assunto. “Eu tenho saudade de fazer frila, de sair de casa e não ter horário pra voltar, de ter grana”, ela suspira. “Ontem, fui ao shopping e queria comprar um vestido pra mim, mas só comprei roupa de criança.” Comprar, inclusive, tornou-se um verbo pouco utilizado na família nos últimos tempos. “Eu tinha minha grana, comprava minhas coisas, ficava lendo revista de fotografia. Hoje em dia, eu nem tenho mais interesse nessas coisas. Fico procurando onde tá mais barato a carne moída. Porque agora é uma pessoa a menos em casa trampando.”
No final de fevereiro, a reportagem da VICE esteve em um evento organizado pelo site Somos mães de primeira viagem para falar exatamente sobre o puerpério. Ali, a psicóloga Paloma Vilhena, especializada em gestação, parto e pós-parto, palestrou para algumas mulheres citando pontos importantes do que acontece no puerpério.
Uma dessas coisas é a exclusão do mundo adulto: a mulher se vê rodeada de brinquedos, assistindo a desenhos e filmes infantis. É como se as grandes paixões não existissem mais, ainda que os velhos papeis, sim: uma mulher com um filho recente continua sendo filha, amiga, esposa, profissional.
OS LUTOS DO PUERPÉRIO
Perda da barriga; perda do sonho do parto perfeito; perda de quem “eu” era; perda de cuidado e atenção (agora tudo é voltado para o bebê).
De acordo com Paloma, as mulheres têm dificuldade para falar sobre o assunto. E o diálogo é essencial para ajudar os sintomas mais difíceis a passar. “É importante conversar com as pessoas, poder falar sobre o que você está sentindo, ter alguém que não vá te julgar. Alguém que te ajude a perceber que isso vai passar porque vai passar. É temporário”, explica a profissional.
Para a administradora Regina Coelho, mãe de uma criança de 10 meses, esses encontros entre gestantes e mães facilitam o diálogo. “Ninguém quer compartilhar dor. Eu não quero que você sofra como eu. Mas saber o que você passa ameniza o meu sofrimento.”
TRATAMENTO
Segundo a psicóloga e psicanalista Cristiane, o primeiro passo é oferecer suporte à mãe que passa por dificuldades no puerpério, tenha ela qualquer sintoma patológico ou não. Pequenos gestos já ajudam: como auxiliar nas tarefas da casa, preparar uma refeição ou se disponibilizar para cuidar do bebê para que ela descanse. Discutir a possibilidade da procura de um profissional especializado é essencial quando os sintomas estão presentes.
Nem sempre o tratamento é feito com remédios, embora eles ajudem. “Não podemos negligenciar alguns casos que precisam ser acompanhados cuidadosamente por psiquiatras e devidamente medicados”, afirma a especialista. “Mas o que percebemos muitas vezes é um uso indiscriminado dos medicamentos antidepressivos sem o devido acompanhamento.”
Uma alternativa é oferecer outros meios para que a mulher possa a dar novos significados para suas vivências, como o próprio processo psicanalítico, que não lida apenas com os sintomas.
Cristiane, que há anos se dedica ao tema, acredita que na nossa cultura exista certa indisponibilidade para lidar com as dificuldades e tristezas. Principalmente quando elas acontecem no puerpério, “no qual a mulher é apenas autorizada a sentir júbilo”. Para a especialista, se entristecer é responder naturalmente a uma perda. “A escuta e o acolhimento cuidadoso da tristeza materna deveriam ser algo que as mulheres pudessem contar.”
Durante o evento sobre puerpério, as mulheres presentes falaram sobre suas experiências e também debateram sobre mulheres que não querem ser mães, embora engravidem. A psicóloga Paloma lembrou uma palavra sagaz: empatia. E falou sobre a importância de reconstruir a maternidade romantizada, na qual tudo é lindo e perfeito. Em um slide reproduzido na parede, ela deixou a seguinte mensagem final: “Não julgue, acolha mulheres que não gostam de ser mães; mulheres que não podem ter filhos; mulheres que não querem ter filhos. Tenha empatia”.
*O nome da entrevistada foi substituído para proteger sua identidade