Alguém precisa trabalhar com a morte
Foto: Felipe Larozza/ VICE

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Alguém precisa trabalhar com a morte

A experiência de acompanhar a preparação de dois cadáveres para transporte e velório foi divisora de águas em minha vida.

Por volta das 23h40 do dia 28 de abril iniciei uma experiência que foi divisora de águas em minha vida. Aguardava a chegada dos cadáveres de um casal, morto em um acidente de carro no interior de São Paulo.

Havia marcado de estar no local umas 20h e foi o que aconteceu. Mas por conta do atraso de quase quatro horas para a chegada dos dois mortos, toda a estratégia que eu havia posto em prática para aguentar o tranco de acompanhar um embalsamamento (virar duas marias-mole num boteco próximo) já não valia de nada.

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Foto: Felipe Larozza/ VICE

Estava na recepção da Atendimento Especial ao Esquife (Aespe), empresa especializada em preparação técnica de embalsamamento, formolização, tanatopraxia, reconstituição facial e outros procedimentos feitos para preservar cadáveres que precisam ser embarcados em voos nacionais e internacionais.

"Agora, vamos conferir o estado em que estão os corpos", afirmou o técnico em necropsia Alexandre José Ferreira Santos.

Ele trabalha na Aesp desde 2009, quando foi ao local para prestar serviço de pedreiro. É o responsável pela construção da geladeira onde corpos são guardados enquanto trâmites burocráticos são realizados, antes da liberação dos cadáveres. Por causa da convivência com o dono da empresa, foi convidado, e aceitou, fazer o curso de necropsia.

Santos caminhou até uma perua Kombi que trouxe os corpos de um homem e de uma mulher . Ambos seriam despachados para outro estado. Descobrimos que eram namorados e que viajavam no carro da empresa onde o cara trampava. O primeiro caixão aberto foi o da mulher.

Identificando a causa do óbito

Por ser jornalista, acreditava estar habituado a ver cadáveres. No entanto, quando o esquife foi aberto e virado sobre a mesa de mármore tive meu primeiro choque. A mulher estava nua e com o semblante sereno. Parecia dormir. Mexendo no corpo, Santos nos indicou a provável causa da morte: uma grande lesão na parte de trás do crânio, permitindo ver inclusive massa encefálica.

Segundo o atestado de óbito despachado do interior, a causa mortis foi "politraumatismo". "Mas é engraçado. O médico escreveu a causa da morte sem mexer no corpo", afirmou o técnico.

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O estranhamento ocorreu, pois, mortes violentas demandam o trabalho de necropsia do Instituto Médico Legal (IML), que é subordinado à Superintendência da Polícia Técnico-Científica.

De acordo com a Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP), existem três indicações "clássicas" previstas em lei para que um corpo seja encaminhado e analisado pelo IML:

Morte violenta (por acidente de trânsito ou de trabalho, homicídio, suicídio etc);
Morte suspeita;
Morte natural de pessoa não identificada.

"Nos casos de morte por falta de assistência médica ou por causas naturais desconhecidas os corpos são encaminhados para o Serviço de Verificação de Óbito (SVO), subordinado à administração municipal", explica a pasta em nota.

Santos manuseou o corpo da mulher e adiantou que não o abriria. "Isso deveria ter sido feito pelo IML."

Tanatopraxia. Foto: Felipe Larozza/ VICE

Por causa disso, optou em realizar no cadáver uma tanatopraxia. O procedimento, que já foi explicado com detalhes pela VICE, se resume em abrir a veia femoral, geralmente pela coxa, e introduzir um cano que vai preencher o corpo com formol e outros produtos químicos. "Além disso, a gente também seca o corpo", disse Santos se referindo ao processo de tirar o sangue dos cadáveres.

Enquanto falava, muito sangue jorrava pelo nariz da moça. O vazamento era facilitado pelo técnico, que inclinava a cabeça da mulher em direção aos seios. Ela parecia me encarar com serenidade, enquanto sua boca e queixo eram encharcados por líquido vermelho.

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Após o procedimento, Santos começou a costurar a perna por onde introduziu o formol no corpo. Por causa de uma cicatriz de cesariana na barriga da vítima, concluiu: "Essa mulher já foi mãe".

Então, Santos resolveu verificar o estado do outro corpo. O acompanhamos até a parte externa da empresa. Abriu o caixão. Havia folhas de jornal sobre o rosto, ou o que sobrou da face do homem.

"Esse aqui vai dar trabalho", antecipou o técnico.

Voltamos à sala de procedimentos e Santos pegou um aspirador de líquidos. Empurrou uma, duas, três vezes com força contra a barriga e, após um som oco que jamais esquecerei, introduziu o cano no abdômen da mulher. Isso é feito para literalmente aspirar o que resta de sangue e também de fezes do corpo. Questionei como ele se sentia fazendo isso. "Me sinto normal", foi a única coisa que respondeu.

Foto: Felipe Larozza/ VICE

Após aspirar a mina, o técnico colocou serragem na nuca dela e a transferiu para outra mesa de mármore. O pior estava ainda por vir.

Santos saiu e, com o auxílio do motorista da Kombi, abriu e virou o caixão com o corpo do homem sobre a mesa onde havia feito a tanatopraxia na mulher.

O rosto do cara estava desfigurado. Concluímos no "olhômetro" que provavelmente o homem não deveria estar usando cinto de segurança no momento do acidente, diferentemente da mulher.

Santos preparando as ferramentas de trabalho. Foto: Felipe Larozza/ VICE

O técnico verificou que havia um corte em "y" no peito da vítima – indicando que o corpo teria sido submetido a uma necropsia. No entanto, ao abrir os pontos, o técnico constatou que o IML do interior "maquiou" o procedimento. "Isso é antiético. Enviaram corpos de pessoas que morreram em um acidente sem fazer a autópsia." A causa da morte do cara, segundo atestado de óbito, também seria politraumatismo.

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Já que o IML não fez o trampo, Santos pegou uma faca de açougue e começou a abrir o corpo.

Foto: Felipe Larozza/ VICE

Eu usava uma máscara cirúrgica acreditando que isso iria me ajudar a encarar os cheiros da morte. Ledo engano. Assim que a barriga da vítima foi aberta, senti um odor que nunca havia inalado em minha vida. Só de escrever sobre isso sinto novamente o cheiro fétido, misturado ao de formol.

Com perícia, Santos cortou todas as camadas de pele e abriu o tórax do homem. Primeiro tirou o coração e nos mostrou, depois os pulmões, diafragma, intestinos, rins, fígado, baço e pâncreas.

O corpo ficou oco sobre a mesa de mármore e os órgãos foram depositados dentro de um tonel.

Enquanto órgãos e vísceras "marinavam" em produtos químicos, Santos iniciou o processo de limpeza do cadáver. Jogou água no tórax oco, depois o forrou com um saco plástico, do mesmo tipo usado em latas de lixo, e depois depositou uma camada de serragem sobre o saco.

Achou a veia femoral, dentro do tórax aberto, e iniciou o processo de injetar formol no corpo também. Para cada cadáver são usados oito litros d'água e 400 mililitros de formol, explicou o técnico.

Enquanto os produtos químicos eram injetados, Santos virou o corpo e, pela enorme abertura feita com faca de açougue, começou a jorrar sangue.

Questionei qual o tipo mais difícil de cadáver para ser embalsamado. Sem pensar, Santos respondeu ser o de obesos. "É muita camada de gordura para cortar."

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Foto: Felipe Larozza/ VICE

Depois de vinte minutos, os órgãos ficaram como borracha e, um a um, foram recolocados dentro do corpo, juntamente com serragem (foram usados dois baldes, com 3,5 litros cada do material). Santos garantiu que, após este procedimento, o corpo pode ser velado por um mês "sem preocupação".

Reconstruindo a face

Após fechar o tórax do cadáver, Santos pegou um carretel de linha de pipa, número dez, uma agulha e começou a estudar o rosto da vítima.

Iniciou o procedimento enxertando algodão dentro do crânio, para que recuperasse volume e facilitasse a costura da face.

Enquanto costurava o rosto do homem, falou já ter construído um nariz de gesso que ajudou a reconstituir a face de outra vítima. "O Santos é o (Pablo) Picasso do embalsamamento", gritou da recepção o colega de trabalho Rafael Lourenço de Carvalho, que cuida da parte burocrática do trabalho com os cadáveres.

Após preencher o crânio com algodão e costurar todo o rosto, a face do morto foi higienizada e, depois disso, seria maquiada.

Os corpos estavam prontos para serem transportados para o Nordeste e velados por suas famílias.

Despachando os cadáveres

O proprietário da Aesp, Airton Lima, o "Tripa", explicou que as funerárias entram em contato com ele, que de sua parte contata companhias aéreas para reservar voos para o ente querido "trabalhado na empresa". "Para embarcar um corpo em voo internacional são necessários declaração de óbito registrada em cartório, a tradução disso (para o idioma do país para onde o cadáver será despachado), ata de embalsamamento e declaração de que não há doença contagiosa. A conversão para outros idiomas é feita por tradutores juramentados."

"Tripa" mostrando a geladeira construída por Santos. Foto: Felipe Larozza/ VICE

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Em casos nacionais são usados basicamente RG ou CNH da vítima, declaração de óbito, ata de embalsamamento e a guia de livre trânsito (documento usado para transportar os corpos a uma distância superior a 400 quilômetros). "Isso garante que fronteiras sejam passadas sem o risco de que o corpo seja retido por autoridades". Um embalsamamento na empresa de Tripa custa em média R$ 6,8 mil, incluindo o caixão.

Atualmente são trabalhados mensalmente na Aespa entre 50 e 60 cadáveres. Até cinco anos atrás, a empresa de Tripa era a única que oferecia este tipo de serviço no Brasil. "Agora tem concorrência. Antes disso, fazíamos umas cem intervenções por mês." Iniciou este tipo de serviço entre 1987 e 1988. A Aesp funciona no atual endereço, em Guarulhos (grande São Paulo) desde 2002.

"Clientes" famosos

A Aesp embalsamou figuras conhecidas da política e do meio artístico. Passaram pelo local os corpos de Jorge Lafond, popularmente conhecido como "Vera Verão", Nair Belo, Paulo Autran, Dominguinhos, Orestes Quércia, Antônio Carlos Magalhães, José de Alencar, Romeu Tuma, Itamar Franco e Ruth Cardoso, mulher do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

Além deles, a empresa também cuidou de vítimas de tragédias. Embalsamou 49 dos mais de 200 mortos de um acidente da empresa aérea Air France, em 2009. O voo sairia do Rio de Janeiro com destino à França.

Foto: Felipe Larozza/ VICE

Também embalsamou 99 de 187 corpos das vítimas de um acidente da empresa TAM, ocorrido em 2007. A aeronave se chocou contra um prédio da própria empresa, ao lado do Aeroporto de Congonhas.

Nunca mais serei o mesmo

Após presenciar o processo de embalsamamento, demorei dias para conseguir escrever sobre. Durante este tempo, refleti que nos corpos onde foram feitos os procedimentos habitaram consciências que farão falta aos que cá ficam.

Santos me disse que encara sua profissão como algo "espiritual". Demorou para que eu sentisse isso, pois só conseguia pensar na aparente brutalidade física do embalsamamento.

A morte é a única certeza e, ao mesmo tempo, a maior dúvida da humanidade. Inevitável e cotidiana, faz com que saquemos a lindeza de viver, quando isso é verdadeiramente percebido como um presente passageiro.

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