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​Eliane Dias: “A mulher negra da periferia sempre foi feminista”

Classe, cor e gênero num papo reto com a ativista, advogada e chefe do Racionais MCs, que participa do PopPorn neste domingo.

Todas as fotos são do Guilherme Santana.

O dia não ainda havia acabado para Eliane Dias. Eram quase seis horas da tarde no escritório da Boogie Naipe, localizado na extrema zona sul de São Paulo, quando ela conseguiu finalmente sentar para almoçar. Estava saindo de uma entrevista e pulando para a próxima, comigo, e parecia que ainda tinha trabalho pela frente. Eliane é advogada civilista e também especializada em direitos autorais, atua fortemente na política, coordenando o grupo SOS Racismo na Assembleia Legislativa de São Paulo e também é responsável por capitanear os negócios do maior grupo de rap do Brasil, o Racionais MCs.

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No dia do nosso encontro, Eliane estava toda de preto e brincou: "Estou de luto pela democracia". Naquela semana, as lembranças ruins da votação do impeachment na Câmara dos Deputados ainda estavam próximas e outra sessão igualmente longa no Senado era aguardada para definir o afastamento de Dilma Rousseff. Eliane passou os últimos tempos se dedicando com unhas e dentes, militando e mobilizando gente para impedir o impeachment.

A facada foi maior quando estava assistindo a votação da Câmara e Tia Eron, deputada negra e evangélica do PRB, se dirigiu até o microfone e votou a favor do impeachment. Foi difícil de engolir, quase um segundo golpe. "Fiquei triste a ponto de chorar. Eu poderia ser de qualquer partido, poderia estar morando num palácio, com o carro do ano e a porra toda, mas eu jamais votaria por um governo que vai tirar tudo do meu povo." Inconformada, Eliane chegou a cobrar Tia Eron num grupo de WhatsApp junto com diversas pessoas da política. Recebeu da deputada a frase "o choro é livre" em resposta .

Ainda com suas decepções recentes no campo democrático, Eliane nunca desacelerou o passo. Foi a grande responsável pelo lançamento do último álbum Cores & Valores do Racionais e rapidamente seu nome foi se espalhando pela imprensa como uma figura forte e competente para discutir sobre o machismo e o racismo do Brasil. Eliane também é mãe de Jorge, de 20 anos, e Domenica, de 16 anos, junto com Mano Brown.

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Dentre suas atividades, ela também foi chamada para presidir uma mesa de debates do PopPorn sobre Feminismo Periférico nesse domingo (12) "Eles foram ousados em me chamar e eu fui ousada em aceitar", diz. Em quase duas horas de papo, Eliane adiantou alguns tópicos que poderão ser levantados na mesa de debates, que também contará com a presença da consulesa da França Alexandra Loras e militantes feministas negras.

A SEXUALIDADE NA PERIFERIA

"Com 18 anos eu ainda era uma songa-monga sobre esse tipo de assunto. Demorei para me conhecer, pra saber direitinho como meu corpo funciona. Não tive uma pessoa que conversasse comigo, não tive acesso à televisão e internet. Quando eu engravidei pela primeira vez do Jorge, não podia andar e trabalhei só por três meses. Os outros seis meses fiquei deitada numa cama. Nessa época fiquei estudando anatomia, biologia e tudo do corpo humano. Sou muito bem resolvida com meu corpo hoje em dia, mas demorou.

Já foi mais difícil falar sobre sexo na periferia, mas ainda a sexualidade não é discutida com a maioria das mulheres. As mulheres heterossexuais não se conhecem muito bem. A gente vê muita menina engravidando a rodo e pegando AIDS, que aumentou o número nos últimos tempos. Só no último mês recebi notícias de quatro pessoas diagnosticadas com HIV positivo. Isso sem contar gravidez indesejada. Para mim, isso tudo faz parte dessa sexualidade mal resolvida entre as mulheres e a falta de informação sobre o nosso próprio corpo.

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Hoje a gente tá num momento do orgulho negro, então as mulheres negras estão procurando a se entender melhor. A religião na periferia até influencia em alguma coisa, mas não contribui em nada em proibir. O adolescente vai transar, sendo evangélico ou não. A única diferença que vai ter adolescente que vai transar com culpa e adolescente que vai transar sem culpa.

Leia mais: Se dependesse da Eliane Dias, o Racionais MCs seria uma Beyoncé

Sou super a favor do conhecimento, acho que nenhuma mulher que ganha nenê deveria sair da maternidade sem saber como funciona tudo. Quero propor um projeto assim, porque a menina fica lá três dias no hospital e em quatro horas ela vai ter que aprender como funciona essa porra de corpo.

O homem sabe evitar, mas ele tá nem aí. O peso de perpetuar a espécie sempre é nosso. Essa responsabilidade continua com a gente e a mulher que abandona o filho ainda é mal vista, as pessoas acham que a mulher que abandona é ingrata.

Sobre esse caso recente do estupro coletivo no Rio da Janeiro, cheguei a receber a outra parte do vídeo do estupro quando a menina fica pedindo para que a soltem. Estou com tanta raiva que só tenho vontade de mandar matar todos eles [os homens que participaram da violência].

A grande maioria não acredita que o estupro seja uma violência, acham que a mulher vai ficar bem, que ela é culpada, que é submissa, que nasceu para isso, que não pode reclamar, que para ser violência a mulher tem que morrer, se ela diz 'não', não é o suficiente.

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Se os "intelectuais" agem dessa forma, na arte e na lei, se não acreditam na violência, imagine que muitos homens na periferia, que quase nunca estão a par do que se passa com as mulheres, vão acreditar que uma menina, uma criança que só tem tamanho, não ia querer ser estuprada por homens de quarenta anos, dezessete anos, vinte anos. Foram trinta e três homens que participaram e nenhum teve a força de dizer, 'não isso não esta certo, é uma menina, vamos parar com isso', eles se acham o máximo, e acham que todas as mulheres os desejam, é mais fácil por a culpa na vitima e fingir que esta tudo bem.

Mas a sororidade chegou. Vamos nos defender, vamos gritar, 'NÃO A CULTURA DO ESTUPRO'. Vamos deixar claro todos os dias que não gostamos, que não queremos ser estupradas e que mexeu com uma mexeu com todas."

SOLIDÃO DA MULHER NEGRA

"A mulher negra é vista apenas como um objeto para o sexo. O homem não quer a mulher negra para estar do lado dele, pra sair de mão dada, pra criar os filhos. Agora as coisas estão mudando, mas a solidão da mulher negra ainda impera. Ela passa a vida inteira sozinha, o homem negro não quer assumir uma mulher negra. Ele quer transar, mas não quer casar. Então a mulher negra acaba buscando mais relacionamentos casuais. Ela não tem ninguém na vida pra ir pro supermercado, ir pro cinema, acompanhar num médico, levar um filho na escola, não tem nada. Ela tem encontro casuais pra relações sexuais. Vai lá, transou, foi bom, tchau.

A solidão é evidente. De todas as mulheres da família da minha mãe, acho que das sete, uma só teve um marido presente. Se for olhando ao redor você vê que as mulheres estão sozinhas, mesmo casadas. Ela tem que batalhar e fazer tudo sozinha.

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A branca tem o problema de ser mulher, a negra tem o problema de ser os dois: mulher e negra.

E o homem não quer nem saber. E agora existe uma canalhada de homem por ai que só quer ficar com mulher que trabalha pra viver às custas delas. Não querem nem mais dividir as contas, querem que a mulher pague tudo. E quando separa pedem a guarda compartilhada para não pagar a porra da pensão.

Eu acompanhei bem por cima a questão do Rael e Emicida [ambos foram alvos de uma polêmica na internet por se relacionarem com mulheres que não são negras], mas eles não são os primeiros e nem serão os últimos. Não adianta a gente apontar o dedo, porque não tem o que falar. Isso é uma cultura que tá mudando, hoje vejo muito mais homens negros com orgulho de sair com mulheres negras do que antes. Mas não tem como dizer 'olha você é o errado'. Não pode generalizar também: 'Ah, só pode branco com branco e negro com negro.' Mas também não acho certo os homens negros só saírem com mulheres brancas. Eu trabalho com 18 homens e só dois deles têm mulheres negras e eu sou uma delas. Não sei definir e explicar, mas eu também não acho legal, eu gostaria que a coisa fosse natural e eu não acho natural. Eu gostaria que os casais e as relações inter-raciais fossem naturais.

Ser feminista negra é uma coisa. Ser feminista branca é outra coisa. Os problemas que uma mulher branca tem não chega aos pés dos problemas que uma mulher negra tem. A branca tem o problema de ser mulher, a negra tem o problema de ser os dois: mulher e negra. Se nós tivéssemos a mesma idade hoje, com certeza você teria 80% talvez mais de chances de ter um bom trabalho e de ser respeitada. Uma mulher branca não é sozinha, ela tem um homem branco. E o homem negro quer a mulher branca também."

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FEMINISMO E SORORIDADE NA PERIFERIA

"A mulher negra da periferia sempre foi feminista. Por que? Porque a gente faz tudo, mas só não temos consciência disso. Minha mãe criou quatro filhos, de quatro homens diferentes. Ela sempre foi independente, sempre fez as coisas dela. Ela nunca se submeteu a nada, ela nunca ficou, nas palavras dela, sob o pé de ninguém. Ela criou três filhas dessa forma. Somos três mulheres e um homem. Às vezes lutamos de uma forma mais silenciosa, outras vezes a gente vai pra cima, mas a gente luta.

Inúmeras mulheres negras são assim. As mulheres negras nunca abandonam seus netos, seus filhos, os terreiros de candomblé na maioria são chefiados por mulheres negras e são elas que abraçam e acolhem todo mundo. Então o feminismo é presente. Se você sair comigo agora, te levo em mais de 30 casas que são chefiadas por mulheres negras. Elas criam os filhos, se tem marido vai bem, se não tem marido vai bem também.

As mulheres negras não se encontravam antes, não se enxergavam. O trabalho em favor da discriminação foi tão grande que a mulher negra não se identificava na outra. E agora a molecada tá trazendo isso de novo, vejo isso muito na molecada que tá unida, desencanada e bem de cabeça. Tem uma militância de aceitar seu cabelo, sua raça. E isso tá ajudando para que as mulheres negras se unam, se encontrem e se reconheçam e tá fazendo com que a gente tenha uma coisa bem simples, desde um grupo de Whatsapp até a gente se unir na vida real.

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Isso é algo muito novo pra mim. Eu passei a maior parte do tempo sozinha e tô achando ótimo. Está enriquecedor e estamos se conhecendo, adquirindo um novo conhecimento para saber que não é coisa do destino que define a vida da mulher negra. É o seu gênero e sua raça que define o que vai acontecer."

O MITO DA MULHER DESCOMPENSADA

"Sempre acham que sou louca. As pessoas sempre me falam isso especialmente quando eu tô certa. 'Ah você é louca'. Eu logo já quebro as pernas e falo que é machismo e cai a ficha do pessoal.

A gente tem que lutar contra nossa própria essência feminina para poder ser respeitada. Isso é uma tortura.

Na época que eu trabalhava com a Leci Brandão já vi os deputados tratando a Leci como burra, como louca. A mulher que tem estar sempre estar um tom acima para se fazer ouvida. É cansativo, é péssimo. A gente não precisa desse desgaste todo para ser entendida. A essência feminina no geral não é bruta. Ela tem que ouvir, ter paciência, entender, tem que ter tempo, saber o horário pra falar as coisas, pensar, saber os caminhos, para não causar um caos. Para você criar um ser humano saudável é extremamente complicado. Eu criando meus filhos vi o quanto que é difícil criar um ser humano saudável, são, num mundo como esse.

Não é fácil e a mulher mesmo que não tenha cultura nenhuma ela consegue fazer isso pela sua natureza. Ela tá lá no meio do mato, só ela e o filho, ela consegue fazer um ser humano de mente saudável só pela sua natureza. E a gente tem que estar em outro tom, a gente tem que estar guardando nossa essência maravilhosa, trazendo um sentimento que nos deixa desconfortáveis para poder conversar, agir, discutir, dirigir trabalhar e todas as coisas da vida.

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Você não pode ser meiga, porque está dando entrada. Não pode falar baixo, porque você é fraquinha. E assim vai. Se você se arruma é porque tá querendo, se se pinta tá indo pra guerra. A gente tem que lutar contra nossa própria essência feminina para poder ser respeitada. Isso é uma tortura."

AUTOESTIMA

"Eu tive muito problema de autoestima, sempre me achei feia. Me acho feia até hoje. Sempre achei que eu poderia ser melhor. Sempre achei que poderia ter a cintura mais fina, até gosto da bunda pequena, mas sempre achei que minha boca podia ser mais sinuosa, que meu cabelo poderia ser mais escuro ou mais claro. Já usei cabelo de todas as formas. Já usei raspado, com black power, sem black power, preto, teve uma vez que usei vermelho e azul e preto.

Eliane no escritório da Boogie Naipe.

Hoje em dia eu acordo e olho no espelho e falo 'tô bem'. Só quando me olho com o rosto inchado, boca inchada, sem maquiagem e olho e falo "Eliane, você tá bem na foto', mas ai no final do dia já falo 'puta que pariu'.

É terrível você ser obrigada a mudar seu cabelo para poder trabalhar. É terrível também você achar que não pode mudar o cabelo. Eu não aceito esse tipo de coisa. Se eu quiser meu cabelo alisado, eu vou usar. Se eu quiser meu cabelo black power, eu vou usar.

Existe a cobrança para não alisar o cabelo. Hoje as pessoas vêem uma mulher com cabelo liso e acham que ela não está em sintonia em 2016. Falam que ela não é muito negra, que ela é submissa, que ela não está em sintonia com o movimento. Existe essa cobrança sim. E existe também a cobrança de alisar o cabelo ou deixar ele preso. Eu odeio esse tipo de coisa, detesto.

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Eu acho que existe um grande numero de mulheres que estão raspando o cabelo para tocar o foda-se. Nem crespo, nem liso. Não vou agradar nem preto e nem branco e quero ver falar alguma coisa. E é horrível você alisar seu cabelo para ser aceita ou deixar seu cabelo crespo para ser aceita. Hoje todo mundo tem sua tribo e hoje existe uma tribo de black power que se você chega com a cabelo liso você não é aceita. Tem que ser livre para usar seu cabelo do jeito que quiser.

A pressão é mais em cima da mulher e é o fim da picada, porque a mulher é linda com seu corpão, cabelo preso, na sua estatura, no sorriso, no seu jeito. Se o cara ou se a mulher não percebem isso, não merecem ficar com ela."

A VIDA ANÔNIMA X FIGURA PÚBLICA

"Eu sempre gostei de poder realizar as coisas sem as pessoas saberem quem eu sou e o que eu estou fazendo. É muito inteligente. A vaidade é uma coisa muito perigosa.

Eu realmente não quero ser sexy. Não quero usar uma saia ou uma blusa decotada, porque não quero ser sexy. Ninguém dá ouvidos pra uma mulher negra. E uma mulher negra casada com uma figura pública menos ainda. Parece que eu sou uma, como se fala? Ah, eu sei sim. Parece que eu sou uma bela, recatada e do lar (risos).

Antes as pessoas achavam que eu era uma pessoa de pouco saber. Sabe? Que eu era uma bela, recatada e do lar. Eu tenho que provar todos os dias que não sou uma idiota. É péssimo isso, é extremamente cansativo, ter que provar toda hora que eu sou capaz, que eu estou certa, que eu sou coerente, sabe?

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Quando não me conheciam as pessoas não me levavam a sério. Agora, elas pensam duas vezes. Eu não brinco e o que eu falar tá falado. Sou dedicada e extremamente responsável. Eu erro também, mas erro tentando acertar."

HEROÍNAS

"É difícil lembrar de todas elas. As duas mulheres que tive foi minha mãe e a Carolina de Jesus que achei o livro dela, Quarto de Despejo, num lixo. E depois eu tive acesso as outras. Marilena Chauí, gosto da luta da Frida que foi ousada e maravilhosa, gosto da resistência e personalidade da Dilma, eu gosto de inúmeras cantoras desde a Rihanna até a Chaka Khan, adoro elas demais, gosto do jeito delas. Por baixo é assim. Eu sou do candomblé, eu gosto do jeito que eles falam, do tamanho grande. Eu gosto da sabedoria, da calma, do jeito materno, adoro as orixás.

Tem as militantes todas, a Djamila Ribeiro é ótima. Adoro ouvir ela, ela sabe o que está falando, ela escreve bem. Adoro a Marília Gabriela. Ela tem uma voz e jeito maravilhosos. Mas eu me inspiro e aprendo com muitas mulheres anônimas. As vezes a gente vai buscar uma referência lá do outro lado do oceano e o que a gente quer está bem do nosso lado.

Eu recentemente tive acesso à história da Vênus Negra e eu vi aquele sofrimento da Vênus muito próximo da mulher negra. Daquele sofrimento que passou, ela era representada como um bicho. E aquele silêncio dela trouxe muita referência pra mim. A Vênus me trouxe muita proximidade. Aquele silêncio constante, a tristeza constante, é uma coisa muito familiar. E fumar e beber, mas eu vejo muito hoje isso nas mulheres negras. Esse silêncio. Eu vou nos lugares, adoro gente, e eu vejo muito o ser humano. Eu vou estar olhando o comportamento. Não é forçado, eu gosto de fazer isso. Eu ainda vejo muito hoje isso, o silêncio absurdo das mulheres da periferia, uma dor, uma introspecção, uma dor que ela não acha que vale a pena falar. A Vênus tinha uma dor que ela achava que não adiantava falar."

*A entrevista foi editada para proporcionar uma melhor leitura.

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