Entrei disfarçado na Amazon para descobrir se as condições de trabalho continuam escrotas

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Entrei disfarçado na Amazon para descobrir se as condições de trabalho continuam escrotas

Fui o cara que embalou e enviou aquele binóculo à prova d'água que você comprou para o seu pai e as velas perfumadas que seu amigo secreto pediu.

A gigante do varejo Amazon anda com a reputação meio suja. Desde colaboração com o fechamento de lojas reais até sonegação de impostos numa escala sem precedentes, parece que a empresa multibilionária não tem folga. E, segundo relatos, nem os funcionários que trabalham lá.

Dois anos atrás, o Guardian e a BBC mandaram repórteres disfarçados para ver como era a vida dentro dos infames "centros de preenchimento" da Amazon. As descobertas não foram boas. Especialistas alertaram que os níveis de estresse podiam induzir problemas mentais; além disso, os repórteres ficaram com bolhas nos pés por andar infinitamente, os turnos eram muito longos e o salário, muito ruim.

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Alguns anos depois, eu queria ver se alguma coisa tinha mudado; ou seja, se algumas matérias negativas tinham obrigado esse gigante da internet a mudar seu comportamento – ou se a Amazon é simplesmente grande demais para se importar.

No entanto, primeiro, eu precisava ser contratado. Convenientemente, uma rápida pesquisa online me mostrou que meu timing pré-Natal estava certo. Neste ano, no Reino Unido, a Amazon vai contratar 19 mil funcionários "sazonais" – as pessoas que localizam, embalam e enviam aquele binóculo à prova d'água que você comprou para o seu pai ou as velas perfumadas que seu amigo secreto anunciou especificamente que queria quando vocês estavam tirando os papeizinhos.

Mandei meu CV para a agência de recrutamento e, alguns dias depois, me vi no escritório deles, sentado a uma mesa com meus futuros colegas de trabalho. Me entregaram uma pilha de formulários e contratos, com um "x" convenientemente marcando onde eu deveria assinar.

"Ei, posso levar isso para ler melhor na hora do almoço?", perguntei à minha recrutadora, Anginiezka, que estava gritando os nomes dos candidatos.

"Isso não vai ser possível, você não pode tirar os documentos daqui."

Considerando que aquilo era um contrato, fiquei ligeiramente preocupado por não poder analisar isso melhor. Porém, sem a chance de ler entre as linhas, fiz o que me mandaram e só assinei meu nome.

"Certo, agora você só precisa voltar aqui amanhã às 13 horas para o teste de drogas e álcool."

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Ao voltar para o teste, me juntei a mais de 50 candidatos esperando serem chamados no andar superior. "Acho que vou passar… quer dizer, espero que eu passe", um adolescente de Watford sussurrou para mim enquanto secava uma garrafa de um litro de água mineral. "Quanto tempo leva para maconha sair do seu sistema?"

Depois de um teste de bafômetro para ver se eu tinha bebido, recebi um pote para coletar minha amostra. "Encha isso até essa linha", disse o cara que estava me supervisionando. "Não dê a descarga: saia e entregue o que você conseguir.

Depois de entregar meu xixi, nossos resultados foram lidos para todos na sala. Tenho quase certeza de que isso viola a Lei de Proteção de Dados, mas, para ser sincero, sei pouca coisa sobre a Lei de Proteção de Dados. "Vejam isso como uma experiência que vai criar um vínculo entre vocês", comentou um homem de terno, sorrindo.

Para chegar ao armazém da Amazon – localizado num extremo da área industrial ao norte de Londres – no começo do meu turno, às 7h45, eu tinha duas escolhas: ir de carro ou pegar o trem até Hemel Hempstead; depois, tomar o transporte fornecido pela empresa de recrutamento, que cobra £ 7 [mais de R$ 41] pela viagem (quase o pagamento por uma hora de trabalho).

Não tenho carro. Então, às 6h45 do meu primeiro dia, fiquei esperando o transporte perto da estação. Cerca de 60 pessoas estavam ali, algumas fumando, outras com aquela cara animada que você pode imaginar. "Esse é o pior emprego que já tive", me falou um cara ucraniano.

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Quando o primeiro micro-ônibus chegou, as pessoas começaram a se empurrar. Uma mulher gritou: "Isso acontece todo santo dia! Jesus, eu estava aqui antes e não posso chegar atrasada de novo!".

Consegui me enfiar no ônibus seguinte, mas três pessoas não conseguiram assentos. "Esse é o último ônibus", afirmou o motorista, "vocês vão ter de sentar no chão".

Um sinal claro de que você é parte de uma força de trabalho valorizada: pagar para seu empregador te levar para o trabalho sentado no chão sujo de um micro-ônibus.

Numa sala de conferências, cercado por outros iniciantes, assisti a um filme curto projetado numa tela. "Good Feeling", do Flo Rida, saía pelos alto-falantes nas paredes. Seis balões meio murchos estavam pendurados no teto. Um mosaico de empregados se divertindo – até demais – passava no repeat.

"A Amazon se orgulha de que todo mundo aqui fique satisfeito", anunciou o "associado" no clipe, que parecia um tanto quanto lobotomizado. "É uma empresa que faz você se sentir valorizado como uma família."

Várias pessoas no vídeo diziam que o armazém era praticamente a ONU do mundo do varejo, com "vários países trabalhando com o mesmo objetivo", como era incrível "fazer os clientes felizes como se todos fôssemos clientes" e, bizarramente, como "a Amazon me deu o conhecimento e o know-how para atingir a grandeza".

As horas seguintes foram gastas comentando os termos do nosso contrato. Faríamos turnos de 11 horas e meia para alcançar a grandeza, segundo me disseram, com uma hora de folga dividida pelo dia. O almoço seria de 30 minutos (não remunerados), incluindo o tempo de andar das nossas estações até a cantina. Descobri que cada pausa era uma oportunidade para os fumantes inalarem dois cigarros e tomarem o café aguado – embora grátis! – das máquinas nos corredores.

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Aí veio a política de atendimento. A coisa de "nos divertimos pacas aqui" perdeu um pouco do charme depois que nos informaram que ficar doente uma vez, se atrasar uma outra e ficar doente de novo num período de três meses rendiam demissão automática. (Apesar de terem me dito isso no meu primeiro dia, a Amazon contestou meu relato, dizendo que a política se baseia num sistema de pontos, com seis pontos resultando em demissão e cada caso sendo considerado individualmente.) Remuneração por doença, aposentadoria e férias eram o mínimo padrão, apesar de a maioria das pessoas com quem falei não saber que tinha direito a pagamento se ficassem doentes.

Com meu primeiro dia chegando ao fim, fui conversar com um representante, que, segundo tinham me dito, seria o cara para procurar se eu tivesse problemas. "Meu nome está escrito errado no crachá, amigo", eu comuniquei a ele.

"Ah, tudo bem, o nome não interessa aqui – só precisamos do seu código de barras mesmo."

"Oi, gente, estamos começando a receber mais trabalho; então, a partir de amanhã, todo mundo vai começar uma hora antes!", gritou um cara na frente. "Vejo vocês às 6h45!"

"Moro em Barking", explicou David, o colega que sentava ao meu lado. "Como vou chegar aqui às 6h45?" A resposta: dois ônibus, um trem e uma corrida de £ 17 de táxi, tudo por £ 8 [R$ 47] por hora de trabalho.

Outra mulher disse que isso tornaria a jornada dela "completamente impossível". Conversei com ela lá fora. "É o seguinte: tive de acordar às 4h30 para chegar na hora hoje, e não saiu barato", ela frisou, fumando um cigarro. "Não posso ir embora agora, porque o custo de ir até a agência para a entrevista e o teste de drogas – vindo aqui por só cinco horas de pagamento – significam que fiquei no prejuízo."

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"Acho que não temos o que fazer", alguém deu de ombros.

Meu recrutador tinha se esquecido de me dar uma cópia do meu contrato; assim, não consegui verificar se isso estava de acordo com a lei. (A Amazon informou que os empregados sempre recebem uma cópia do contrato; então, meu caso foi provavelmente um deslize.)

O centro de preenchimento é uma oficina gigante. Produtos em massa chegam, são desembalados e colocados em prateleiras. Os corredores infinitos ficam prontos, só esperando você colocar suas compras no seu carrinho virtual.

O estoque entra e sai, os princípios fundamentais do varejo. Mas isso não tinha nada a ver com as lojas em que trabalhei antes, claro, já que não há clientes à vista. Isso faz a Amazon ser um mundo totalmente novo de eficiência: sem rostos sorridentes, decoração agradável, luz suave ou a pretensão de que todo mundo ali está feliz. A produtividade reina suprema. Os trabalhadores recebem uma única tarefa por turno, seja desembalar produtos na chegada ou embalá-los de volta na saída. As tarefas tediosas não têm fim, não há contato direto com os clientes para passar o tempo. Turnos durante o dia e a noite significam que o lugar nunca para.

Andando até minha estação de embalagem, cada uma localizada ao longo de uma esteira, percebi que eu era só mais um entre centenas de pessoas em fileiras quase infinitas. Embaladores entediados, transportadores entediados, todos desesperados para atingir suas metas tanto para a hora como para o dia. O problema é que as metas nunca foram deixadas claras para mim – seria só um descuido? Uma mulher, Anna, destacou que isso era uma tentativa deliberada de nos manter "ignorantes e em alerta". (A Amazon diz que todos os funcionários recebem suas metas.)

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Como éramos novatos, treinadores nos acompanhavam para ter certeza de que não faríamos nenhuma burrada. Minha treinadora era a Jo, uma enfermeira de Londres que estava na Amazon há dois anos.

"Eles levaram vários golpes, a Amazon", ela me contou, se inclinando em sua mesa, "como aquela matéria da BBC sobre o lugar".

Perguntei sobre os pontos levantados pelas investigações – por exemplo, o barulho alto dos escâneres que podia, segundo os jornais, contribuir para o risco de problemas mentais.

"Você pode diminuir o volume deles", ela falou. "No final das contas, ninguém está te obrigando a trabalhar aqui."

Jo trabalhava na Amazon tempo suficiente para ter uma comunidade estabelecida: ela conhecia vários níveis da gerência e sabia como conseguir as melhores tarefas todos os dias.

Trabalhando ao meu lado estava um cara polonês de 23 anos chamado Peter.

"É o seguinte: na Polônia, eu trabalhava num armazém e ganhava, tipo, £ 2 por hora [menos de R$ 12]. Aí entrei para o exército, mas só podia ganhar umas £ 400 por mês. O trabalho é uma merda aqui, porém ganho mais – simples assim."

No terceiro dia, fiquei imaginando modos de passar o tempo. Quando você está no centro de preenchimento, seus pertences ficam trancados no seu armário – ou seja, nada de iPhones ou MP3 players –, e nada pode te preparar para a monotonia infinita e silenciosa que isso cria.

Consegui entrar com uma caneta e, na minha cabeça, para evitar o desenvolvimento de algum tipo de doença mental por repetição, inventei um jogo. Eu poderia escrever "ele morre no final" em todos os pacotes de livros. Ou um bilhete dizendo "Não consegui pensar em nada melhor; portanto, aqui vai o disco novo da Adele, amor", em todos os pacotes de presente.

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Entretanto, é claro que não fiz isso, porque eu ainda queria ser pago.

Isso só teve graça até as 10 da manhã, com oito horas e meia de turno pela frente.

***

Trabalhar na Amazon não me deu a chance de expor nenhuma prática ilegal, abuso de trabalhadores imigrantes ou de revelar pagamentos abaixo do salário mínimo. Na verdade, tudo estava bem dentro dos conformes.

O que ficou claro no meu tempo lá foi que, apesar das dramatizações das investigações anteriores, trabalhar na Amazon é só um serviço escroto – assim como vários outros serviços mundanos que pagam mal.

Enquanto houver chefes e lucro, sempre haverá empregos de merda. E, até sermos substituídos por robôs mais eficientes, eles vão continuar lá – e nós vamos continuar reclamando.

@MikeSegalov / @Ella_Desouza

Tradução: Marina Schnoor