Bem-vindo à Inglaterra de Stormzy
Pintura por Reuben Dangoor

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Música

Bem-vindo à Inglaterra de Stormzy

O sucesso do artista de grime não é uma feliz coincidência: ele captou o espírito do tempo para moldar a cultura jovem inglesa à sua imagem.

Matéria originalmente publicada na VICE UK.

Crazy Titch foi um dos fundadores do grime, seu estilo instável e centrífugo foi tão responsável por moldar o gênero quanto as tiradas do Dizzee Rascal. Se as coisas tivessem acontecido diferente, seria ele o louvado como gênio na imprensa, a atração principal de festivais no arquipélago espanhol. Mas em 2005, Titch foi condenado por assassinato e pegou 30 anos de cadeia. E apesar das inúmeras apelações, ele está na prisão desde então.

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Uma das faixas do último disco de Stormzy é só uma ligação telefônica. De um lado da linha está Stormzy, o homem mais comentado na Inglaterra hoje. Do outro está Titch, talvez numa ligação paga ou num celular contrabandeado.

A conversa deles, às vezes, é de partir o coração. Titch está preso há tanto tempo que não entende o que é uma hashtag, e ainda faz referências ao filme Matrix. Mas a prisão também age como um filtro; você não fica ouvindo falar sobre Fulano ou Sicrano lá dentro, então o que passa pelos muros realmente importa.

Ele fala sobre os caras certificados (gente legítima, da pesada) que ele conheceu na prisão, de todo o país.

Sou certificado, meu nome é Crazy Titch, com certeza sou um milhão por cento certificado
Conheço manos certificados de toda parte
Brum, Manchester, Notts, Sheffield, Leeds, Manny, Liverpool
Todo mundo diz a mesma coisa: "Não sei o que é grime, mas sei quem é Stormzy"

Atrás das grades, apartado de toda a cultura e com acesso limitado à internet, Titch define o fenômeno do sucesso de Stormzy melhor do que ninguém.

Sim, Stormzy tem um dos discos mais vendidos do país, e provavelmente será o número um das paradas ao longo do ano, aparentemente vendendo mais que o número 3 a 20 juntos (falamos sobre o número dois mais tarde). Sim, o álbum levou de quatro a cinco estrelas de praticamente todos os críticos. Mas seu sucesso real não pode ser medido por venda de discos e louvor da crítica. Seu sucesso real se mede pelo seguinte: em apenas alguns anos, ele já abriu caminho para um clube raro de artistas britânicos — Adele, Oasis — amados por sua música, mas maiores que isso. Seu sucesso real é ter batido o X Factor numa batalha de Natal, fazendo lobby de seu próprio sucesso vestido como Papai Noel e mudando seus versos para um tom mais festivo (" The Easter Bunny used to cuss me / Now the tooth fairies they love me / Word to Ms. Claus she's lovely / She makes a sick turkey curry"). É sobre o Manchester United, o maior time de futebol do mundo, dizendo que ele é tipo um embaixador deles, como seus jogadores. É sobre ele ter sido denunciado pelos vizinhos, que acharam que ele estava invadindo sua própria casa em Chelsea, com a história indo parar na primeira página do Evening Standard, e com ele aparecendo no programa do Channel 4 The Last Leg para falar sobre o caso.

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Em 2017, Stormzy é o porta-bandeira do grime ou a última história de sucesso de garoto simples da música inglesa; ele basicamente é a cultura jovem inglesa. Claro, ele é apenas o mais proeminente de uma variedade de astros do grime que recentemente encontraram ou voltaram aos holofotes, e há outras subculturas com seus próprios faróis, mas não há outro jovem unindo todo mundo — os manos que batem no peito, os nativos da internet, a galera que se reúne no centro da cidade nas noites de sexta para comer kebab, e enxames de jovens britânicos que não estão interessados em nada disso; que nunca foram para a balada, que passam a maior parte do tempo olhando o celular.

O que torna as conquistas de Stormzy ainda mais impressionantes é que ele fez tudo isso sem uma gota de interferência externa. Ele fugiu de gravadoras e outros figurões da indústria da música. Seu clipe de "Shut Up", apresentado no Brit Awards, foi filmado ao vivo numa única tomada num parque. Ele ainda não lançou um single que não fosse impecavelmente um grime de 140 BPM. Ele já é o artista de maior sucesso sem gravadora da história do Reino Unido.

O sucesso de Stormzy não é uma feliz coincidência. Se estivéssemos em 2007, não 2017, e Stormzy fizesse a mesma música, e tivesse aceitado os mesmos riscos, não falaríamos sobre ele do mesmo jeito que estamos aqui falando agora. É uma questão de momento: na indústria da música, na cultura jovem, no próprio tecido do Reino Unido. Stormzy triunfou onde muitos pereceram porque ele tem um entendimento das tendências e mudanças, confiança para se arriscar, para apostar contra a casa. E fazendo isso, ele ajudou a moldar a cultura jovem à sua imagem.

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A história chata do grime é basicamente assim: era um som muito legal até 2004, aí todos os grandes astros fizeram música pop tosca com Calvin Harris e The Chuckle Brothers, e parecia que o grime tinha morrido. Aí, do nada, Meridian Dan lançou "German Whip", Skepta voltou a usar conjuntos esportivos e o grime foi salvo. Esse é um conto falso (muitas das maiores músicas do gênero — "Murkle Man", "Next Hype", "I Spy" — vieram durante a suposta baixa), mas é verdade que astros como Dizzee, Tinchy, Tinie, Skepta e Chipmunk, em vários pontos, tentaram fazer música pop. Muitas dessas tentativas agora são vistas como constrangedoras, não porque esses astros se venderam, mas porque tentaram se vender e fracassaram. Chipmunk e Ironik sampleando "Tiny Dancer" de Elton John, Skepta lançou o single de eurotrance "Bad Boy", Dizzee fez um dueto com Robbie Williams em "Goin' Crazy": essas músicas não eram simplesmente ruins, elas também nunca atingiram o sucesso que almejavam no mainstream.

Mas essas músicas não foram necessariamente escolhas deles, muitos artistas foram pressionados pela indústria conservadora que desconhece outra fórmula de negócios que não seja a do rock 'n' roll branca, mesmo quando está tentando apoiar a música negra underground. Veja a BBC 1Xtra, a rádio da BBC lançada como o lar da música negra. Eles tocavam todos os artistas de grime, mas preferiam seus hits pop aos sons realmente grime. Como Skepta disse ao Time Out: "A 1Xtra tirou o poder de nós… Nossos programas piratas influenciavam o que os fãs de grime compravam. Mas do nada isso estava nas mãos [da BBC], e eles disseram: 'Bang! Te pegamos! Faça pop ou não vamos tocar sua música'."

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O problema não é que a indústria desconfiava do talento negro, mas só entendia o jeito rock/pop de fazer música. Estive em um painel de deliberações da parada de sucessos da 1Xtra em 2014, quando o grime estava ressurgindo. Todos estavam discutindo quem era o número um: Ed Sheeran, Sam Smith, Rita Ora ou Disclosure. Foi muito estranho. Todo mundo naquela sala era um DJ 1Xtra — especialistas na nova música urbana inglesa — mas artistas como Skepta, JME, Wiley, nenhum deles tinha chance no top five. Em vez disso, o painel falava sobre como Rita Ora tinha uma linha de roupas. Era como se eles tivessem internalizado a medida da indústria da música de sucesso. Para eles, música como o grime nunca poderia ser número um, nem mesmo numa rádio de música urbana.

Stormzy percebeu que não precisava ser assim. Em vez disso, ele observou o sucesso de pessoas que encontraram maneiras de contornar os métodos tradicionais da indústria. Ele encontrou um jeito de tomar o controle de volta.

Ele observou os sucessos de Dizzee — não a fase constrangedora quando ele fazia dueto com Robbie Williams, mas o auge de seu sucesso nos festivais, quando estava tocando "Fix Up, Look Sharp" e "Bonkers" para multidões que só queriam dançar; que não ligavam para de onde a música tinha vindo, só que fosse boa. Ele viu Lethal Bizzle, um artista que também tentou fazer seu nome montando em outros gêneros, mas descobriu o sucesso quando começou seu próprio canal no YouTube, se tornando algo como um ícone lad. Bizzle invadiu a Inglaterra lad e apareceu no Match of the Day. E fazendo isso, ele definiu um tipo de modelo: O que é #Merky se não o sucessor natural de #Dench?

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Tanto Bizzle como Dizzee deixaram a qualidade de sua música escapar enquanto tentavam ir além de sua cena. Stormzy queria encontrar uma maneira de fazer o que eles fizeram, mas sem se comprometer, sem ter que ligar para o Calvin Harris. Então ele aceitou três grandes riscos.

O primeiro risco foi financeiro. Recusar gravadoras deu a ele liberdade, mas deixou um furo monetário. Ele substituiu a renda que viria de uma gravadora recebendo muitos patrocínios e fazendo negócios com marcas, Adidas, Nando's, Subway, Spotify e Google. Se 15 anos atrás os astros da primeira geração do grime tivessem conseguido tantos patrocínios, eles teriam sido acusados de vendidos, mas Stormzy apostou corretamente que os fãs hoje veriam mais determinação do que anticomercialismo, como principal sinal de autenticidade. Adolescentes que cresceram com marketing indireto não ligam para acordos com marcas. Eles ligam se pessoas que admiram são manipuladas por caras brancos de 45 anos, que em determinado momento da história assinaram coisas como The Kooks e agora acham que sabem fazer um astro. E além do mais, a Adidas é legal.

O risco seguinte foi cultural. Quando começou a fazer música, Stormzy fazia UK rap, mas por volta de 2012 ele passou para o grime, a música que ele amava quando garoto. A popularidade do grime sempre foi subestimada, mas algo diferente estava acontecendo à época. Boy Better Know estava fazendo shows lotados para públicos de cidades médias que o adoravam; os hipsters viam o grime como algo autêntico na época, quando o resto da música estava começando a parecer muito calculada. A maioria dos artistas achava que isso só poderia ir até certo ponto — que o grime sempre seria underground — mas Stormzy percebeu que o país inteiro estava pronto. Ele estava pensando em artistas americanos como Kanye, Kendrick, Chance, Drake e até Beyoncé, que estavam fazendo discos mais desafiadores, sendo celebrados pela crítica e não sofrendo reações comerciais negativas.

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Em 2014 ele disse ao Noisey: "Fui do jeito que eu era. O Jump Off TV fez um debate se eu deveria mesmo ter ido de conjunto de moletom. Mas pensei, essa não é hora de me ajustar. É hora de representar, não de baixar o tom. Eu queria mostrar quem éramos à queima-roupa: DJ, bares, agressão. Essa é nossa cultura". Essa atitude foi levada até seu disco, que combina grime com gospel e faixas vocais, sobre sua fé e períodos de luto. É honesto, diferente de música criada por um senso de convicção, todo lado dele deve estar à mostra.

Talvez o maior risco tenha sido político. O grime frequentemente é chamado de música de protesto, mas esse senso de resistência tem que ser inferido pelo público; como gênero, ele sempre tendeu a se afastar da política tradicional. Stormzy mudou isso. Ele apoiou publicamente Jeremy Corbyn, chamou Zac Goldsmith de "pussyole" por sua campanha racista, falou sobre soluções para a crise de habitação e bateu de frente com qualquer um que quisesse demonizá-lo com base em preconceito. Ele falou sobre o Brit Awards quando sentiu que o grime e artistas underground não estavam sendo representados, algo que provocou mudanças na premiação deste ano e acabou na BBC News. A faixa de abertura de seu disco aborda duas questões: uma com a rádio LBC — "LBC's tryna' black ball me / And tryna' blame your boy for knife crime" — e outra com os clubes do centro de Londres por políticas de entrada racistas — "Fuck DSTRKT and fuck all these nightclubs / And fuck giving money to people that don't like us / There's riots in the city just tell me where I sign up."

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E acho que esse será o legado de Stormzy. Ele não é um artista político; ele não faz necessariamente música de protesto, mas ele nunca tem medo de representar o que acredita, ou os grupos que o veem como seu representante. Do modo como uma geração de gente velha e entediada vê Noel Gallagher como sua voz num mundo confuso — é assim que nós falaremos de Stormzy.

Tudo isso se juntou em abril, quando Stormzy se apresentou com Ed Sheeran no Brit Awards; fez três shows surpresa em público e curtiu com os adolescentes ali depois; cozinhou frango e bateu papo com Tim Lovejoy no Sunday Brunch; virou panquecas com Raymond Blanc para a GQ; retuitou endossos de Adele, Rio Ferdinand e Ed Sheeran; e fez um discurso emocionado para jovens negros no The Observer.

"O principal para mim são meus reis negros", ele diz. "E isso não é para ostracizar jovens negras ou homens brancos mais velhos, ou asiáticos, não é para ostracizar ninguém, é só para dizer 'OK, jovens negros do meu país, quando se trata de quem vai alcançar, você são sempre os últimos'. Então preciso falar com meus jovens reis negros, porque sou um de vocês, que somos sempre os últimos. E eu digo para eles 'Vocês são foda, vocês são legais, vocês podem fazer isso. Vocês são melhores que qualquer coisa que disseram que vocês são. Vocês são tão poderosos quanto eu. Vocês são tão foda quanto eu. Tão ambiciosos quanto, e podem ser tão criativos e incríveis quanto eu, Kanye West, Drake, Frank Ocean, todas essas pessoas que vocês veem. Vocês podem fazer isso."

Esse é o Stormzy. Mas agora é hora de falar sobre o homem que pode impedi-lo de chegar ao topo absoluto das paradas. Um homem chamado Rag'n'Bone Man.

Rag'n'Bone Man, que já venceu Stormzy como artista revelação no Brit Awards, é a antítese de tudo que Stormzy representa. Ele é da velha cena musical, dos cálculos cínicos de computador para fazer soul music que parece moderna o suficiente para tocar na Radio 1, mas clássica o suficiente para tocar na Radio 2, a mesma fórmula que permitiu que a música britânica fosse invadida por imensos chatos como Sam Smith, John Newman, Emeli Sande, Ella Henderson, Jess Glynne, etc., etc. Ele é um homem que tem tão pouco a dizer sobre si mesmo, sobre sua música, sobre a Inglaterra, que nas duas oportunidades que teve para discursar no Brits ele ficou sem fala. Procurando o nome dele no Google News, é impossível achar qualquer notícia de verdade: "Rag'n'Bone Man: 'Nunca esperei ir tão longe'" e "Essa filmagem mostra a voz poderosa de Rag'n'Bone Man". A coisa mais próxima de uma história de verdade é uma manchete do Star desta semana: "Rag'n'Bone Man revela que prefere ficar abraçado com seu gato que sexo, drogas e rock 'n' roll".

Então estamos numa encruzilhada. A Inglaterra tem que decidir: queremos mais pessoas como Stormzy — gente que vai representar a juventude britânica, que não será cooptada pelas antigas forças que só querem tornar tudo chato e sem sentido? Ou queremos mais pessoas como Rag'n'Bone Man, um cara tão chato que numa lista de "5 coisas que você precisa saber sobre Rag'n'Bone Man", a número 4 é "ele assinou com a Columbia Records"?

Não sei qual será a resposta, mas sei de uma coisa: ano passado falei com um grupo de adolescentes de 16 anos de Leyton, Londres. O que eles me contaram sobre sua vida me pareceu completamente alienígena. Eles nunca tinham ido a uma festa na casa de alguém, a maioria nunca tinha bebido, eles passavam a noite de sábado vendo coisas no celular. Eles não falavam sobre música do mesmo jeito que a minha geração falava: Eles basicamente assistiam vídeos no YouTube. Quando perguntei se havia algum artista que eles realmente gostavam, eles mencionaram uma pessoa entusiasmadamente. E não era Rag'n'Bone Man.

Dos detentos colegas do Crazy Titch na prisão de segurança máxima, até os adolescentes de Leyton, até as mães sentadas no sofá assistindo Sunday Brunch, e as muitas minas no WhatsApp dele: A Inglaterra é de Stormzy.

@samwolfson