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Patologia dual: o diagnóstico encontra a substância

A importância deste tema reforça a necessidade de continuar a estudá-lo. Fomos a Coimbra saber porquê.
via Wikipedia

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Entenda-se por patologia dual (PD) a coexistência de um diagnóstico psiquiátrico e do abuso ou dependência de substâncias (álcool ou outras drogas), independentemente da relação de causalidade entre ambos.

Nos últimos anos, vários estudos no campo da psiquiatria forense confirmaram uma relação próxima entre risco de violência e abuso de substâncias, aumentando ainda mais o risco na presença de PD. A dependência ou abuso de substâncias são muitas vezes sub-diagnosticados, e as perturbações de personalidade (50-90%), doenças afectivas (20-60%) e perturbações psicóticas (15-20%) são os diagnósticos mais associados à PD. O abuso de álcool ou drogas aumenta a irritabilidade, diminui o controlo do impulso e agrava a sintomatologia psicótica, podendo levar à prática de vários crimes violentos.

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Os tipos de crimes mais frequentemente encontrados foram: homicídio, incêndio, ofensa à integridade física, furto e roubo.

Quisemos determinar a prevalência da PD nos doentes internados no serviço de psiquiatria forense (SPF) do CHPC-CHUC, procurando descrever e relacionar as variáveis socio-demográficas, clínicas e judiciais, de forma a conhecer melhor esta realidade. Trata-se de um estudo transversal, descritivo e analítico em que se procedeu à recolha de informação dos processos clínicos de todos os doentes internados no SPF, em Janeiro de 2012.

Em relação à caracterização socio-demográfica constatou-se que, dos 88 doentes internados, 82% eram homens e 18% mulheres. A média de idades destes indivíduos era de 47 anos, não diferindo entre sexos. Apenas 18,1% dos doentes completou 7 ou mais anos de ensino e 15,9% eram analfabetos. Um 55,7% dos doentes tinha entre 1 e 6 anos de escolaridade, uma vez mais, não foram encontradas diferenças estatísticas entre sexos, no que diz respeito à escolaridade. Apenas 9,1% dos doentes eram casados ou viviam em união de facto, 65,9% eram solteiros, 18,2% divorciados e 6,8% viúvos. A percentagem de doentes que não trabalhava, no momento precedente ao internamento, era de 56,8%: 6,8% estavam desempregados, 20,5% reformados e 29,5% não tinham profissão.

Como esperado para a população portuguesa, o abuso ou dependência do álcool é muito mais frequente do que o de outras substâncias, no caso dos homens, embora nas mulheres a diferença não seja tão elevada.

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No que toca à caracterização clínica, os diagnósticos mais significativos foram: debilidade (33%), esquizofrenia (46,6%) e alcoolismo (44,3%). Os diagnósticos de esquizofrenia e alcoolismo ocorreram maioritariamente nos homens. O sexo feminino predomina no grupo de não consumidores de substâncias (68.8% vs. 41,7%), enquanto os homens apresentam maior consumo de álcool (52,8% vs. 12,5%).

Os tipos de crimes mais frequentemente encontrados foram: homicídio, incêndio, ofensa à integridade física, furto e roubo. Não existem diferenças entre sexos, para o tipo de crime cometido. Encontrou-se relação entre alguns diagnósticos e tipos de crimes, nomeadamente: alcoolismo e incêndio, esquizofrenia e porte de arma ilícita, debilidade e abuso sexual, e toxicodependência e furto/roubo ou tráfico de drogas.

50% dos doentes internados no SPF apresentam PD. Quando comparamos estes doentes com os doentes internados no serviço, mas sem PD, constatamos que os primeiros são mais novos (43,7 anos vs 50,3 anos). Existe uma tendência para a PD afectar mais indivíduos do sexo masculino, mas sem relevância estatística.

Como esperado para a população portuguesa, o abuso ou dependência do álcool é muito mais frequente do que o de outras substâncias, no caso dos homens, embora nas mulheres a diferença não seja tão elevada. O consumo concomitante de álcool e outras drogas é frequente, e é de destacar o significativo número de doentes com um padrão de consumo errático de variadíssimas substâncias (haxixe, heroína, cocaína, anfetaminas, alucinogénicos, etc), muito negativo para a evolução da doença e um grande desafio para as equipas terapêuticas.

Da análise socio-demográfica destacam-se os baixos níveis de escolaridade, com dois terços dos doentes com menos de 6 anos de ensino; o elevado nível de inactividade profissional e o grande número de indivíduos solteiros, divorciados ou viúvos. Não foram encontradas diferenças socio-demográficas entre os doentes com e sem PD, pelo que nos parece que, mais do que o consumo de substâncias, é a situação de pobreza e exclusão social que propicia o envolvimento em actividades ilícitas. Permanece por esclarecer o sentido da relação de causalidade entre a doença psiquiátrica e a situação socio-económica.

A importância deste tema reforça a necessidade de continuar a estudá-lo. Seria útil avançar dos estudos de prevalência, de carácter descritivo, para a análise dos processos que determinam o ingresso no sistema judicial e, no sentido inverso, os que auxiliam a prevenção ou a reintegração social. Estes estudos podem permitir estruturar melhores políticas públicas, para que não se corra o risco de nos confinarmos à re-expansão de um modelo institucional com ênfase na protecção dos indivíduos não doentes. Ao invés, deve-se enfatizar a prestação de serviços integrados em redes de suporte, de tratamento individualizado e adequado e com vista à reinserção social.