Fomos lá e vimos: Peter Hook

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Música

Fomos lá e vimos: Peter Hook

Um moche de gerações.

“She’s lost control! She’s lost control again!” O refrão disparado pelo tom de voz cavernoso de Peter Hook espalha-se pelo salão do Armazém F, no Cais do Sodré, como um mandamento. A actuação do britânico, acompanhado pelos The Light, ia a meio da terceira de quatro partes e eu estou no andar superior da sala, incapaz de manter o esqueleto quieto. É que, ao som da mítica frase dos Joy Division, é impossível não escalar à memória a imagem do malogrado Ian Curtis a dançar esta malha ao mesmo tempo que tem um ataque epiléptico. E pelo que vejo, não serei o único a remeter-me a tal recordação e a obedecer à sentença: lá em baixo, o controlo perdeu-se há muito e gera-se um moche que arrasta a juventude e os punkers dos anos 70.

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Pouco passava das 22 horas da nublada noite de Sábado quando entrei na sala de espectáculos do antigo TMN Ao Vivo para uma performance inédita: Peter Hook a tocar os dois álbuns de estúdio dos Joy Division: Unknown Pleasures (1979) e Closer (1980), banda pós-punk que fundou há 40 anos e que ainda hoje é celebrada por via do misticismo que paira sobre o então vocalista Ian Curtis, que se suicidou em 1980. O espaço ainda não estava totalmente cheio, mas já não se vislumbravam muitos metros quadrados para a malta mais atrasada. Do lado direito da porta giratória estão as escadas que dão acesso ao primeiro andar e é aí que me posiciono, quatro degraus acima do solo, para a primeira parte do concerto. Daí perscrutei a multidão e logo reparei que o difícil era encontrar alguém que não tivesse uma t-shirt negra prensada com o padrão de frequência de um pulsar, a cover art de Unknown Pleasures. Mas entre a Geração X, com os primeiros punks portugueses, alguns ainda vestidos com casacos de cabedal e cabelos cor da noite, estava uma significativa representação do punk jovem, que cresceu com o mito Ian Curtis e que opta por cabelos verdes, vermelhos ou roxos ao negrume característico da época. Nesse arrastamento dos olhos pela audiência ainda me detenho num rapaz alto, cara fechada e cabelo despenteado, cortado à tigela, que juro assemelhar-se à reencarnação moderna do vocalista da banda de Manchester. Dez minutos mais tarde eis que entram no palco os cinco membros dos The Light — Jack Bates (baixo), David Potts (guitarra), Paul Kehoe (bateria) e Andy Poole (teclado) —, todos eles de camisa negra, a condizer com as gigantes lonas de pano ilustradas com as capas dos álbums em concerto e que cobriam a parede por detrás dos instrumentos. O público ergue os braços, aplaude o quinteto, para logo a seguir elevar os decibéis acima da média quando uma figura de porte forte, cabelo grisalho, corrente prateada pendurada nas calças e t-shirt cinzenta, com a inscrição Top Gun, salta para o palco. Peter Hook surge energético, pega no seu baixo vermelho-sangue e, sem demoras, arranca logo para a primeira parte do concerto, que contempla sete músicas dos New Order. Era Peter Hook a abrir… para Peter Hook. Num concerto com quatro encores, tal como um jogo de basquetebol, maçudo seria descrever todas as músicas que foram tocadas (se quiserem, podem consultar aqui). Além disso, New Order é distinto de Joy Division: o primeiro é um som muito mais electrónico, dentro dos teclados e baterias surgidas na época New Wave; o segundo é um rock melancólico e depressivo, sempre mais voltado para a guitarra e, sobretudo, para um baixo melódico e de tom mais visível. Do alinhamento de New Order, “Age of Consent” e a conhecida “Blue Monday” fizeram o público vibrar e aqueceram devidamente para o espectáculo seguinte. Tal como no gráfico do pulsar de Unknown Pleasures, a selecção do alinhamento foi oscilante. Com New Order, o ambiente desanuviou-se e a audiência foi-se soltando; já a entrada de Joy Division fez-se num ritmo mais tranquilo. O melhor ficou guardado para o fim, até porque Hook sabia da extensão do concerto, pelo que tinha de agarrar os presentes para não os perder desde cedo nas baladas que falavam mais aos fãs de base. O truque, então, era recorrer a uma malha mais conhecida em cada fase do concerto para manter o pessoal preso no anzol. Na primeira parte, o destaque foi para “Isolation” (Closer), um som mais expansivo, com um teclado pressionaste e gasto, que deixou tudo e todos em movimento, especialmente um rapaz mais entusiasta que não se cansava de fracassar numa imitação ácida da dança de Ian Curtis, enquanto bafava uns charros e bebia cerveja como água. Na terceira parte, Peter Hook abriu com “Digital”, música lançada em 1978 num dos primeiros EP’s da banda, e que vive de um baixo vibrante e uma bateria simétrica; mais à frente, “Disorder” (Unknown Pleasures), mais dada a uma guitarra gritada; e, claro, para expulsar o punk que há em todos nós, “She’s Lost Control” (Unknown Pleasures), que deu azo aos empurrões e saltos desenfreados. Mesmo oscilante, o espectáculo foi em crescendo e o grosso das músicas marcantes foi performizado. É claro que o som estava remasterizado, mais digital, e senti falta daquele eco hermético que oiço nos álbuns originais, e a esse sentimento ainda somo uma súbita e estranha visão de Ian Curtis no palco com um portátil Apple ao lado. A voz de Peter Hook, originalmente um baixista, também não é comparável à de Curtis, embora, consciente ou não, Hook herdou muitos dos maneirismos de palco característicos ao vocalista. Recupero o folgo e aponto à última parte. Isto promete e está tudo em comunhão com os artistas. Peter Hook compensa a pouca interacção com o público com uma performance de patrão no palco, com poses de “nesta merda mando eu”, a esgalhar solos de baixo junto do público e distribuindo apertos de mão, garrafas de água e cigarros. É uma da madrugada, faltam cinco músicas para o final e as minhas apostas iniciais estavam intactas: “Transmission” (Warsaw) e “Love Will Tear Us Apart” (single de 1979) vão fechar. E assim foi. E assim perdemos todos o controlo, aos saltos, aos berros, com cerveja pelo ar. E assim vi novos e velhos a mocharem uns nos outros. E assim, mesmo longe da plateia, me pegaram desajeitadamente ao colo enquanto pulávamos com “Looovvee, love with tears us apart…again.” A actuação terminou três horas depois do início com uma insurdecedora celebração dos presentes. Peter Hook, ensopado em suor, desfaz-se da t-shirt “Top Gun”, atira-a para o meio da sala e uns quantos bravos lutam pela recordação. E enquanto nos encaminhamos para a saída, ainda a trautear a última música, vamos recuperando o controlo que deixámos escapar por momentos. O espectáculo não me defraudou e acredito que o mesmo dirão as diferentes gerações de punkers que se uniram num ambiente de misticismo e revivalismo que vão mantendo firmes nos anais da música contemporânea mitos como Ian Curtis e Joy Division. Fotografia por Francisco Henrique Melim

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