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Quem está zoando com as cores dos quadros de Van Gogh?

Em 1889, quando pintava pelas ruas de Arles, na França, Van Gogh pouco ligava para as crianças que passavam do outro lado da rua e atiravam pedras, frutas ou restos de comida nas suas costas.

O pintor também não se incomodava com os adultos que, ao bater com os punhos na cabeça, o zombavam de pirado. Nem mesmo empurrões, jatos d’água ou gritos das vizinhas o tiravam do sério. O foco do holandês era a tela.

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De pincel em mãos, ele se desligava do mundo e, com o cenho franzido, testava dezenas de misturas de tintas sobre o quadro. Ao terminar, anotava cada detalhe dos semitons em sua caderneta sob nomes como “azul-purpúreo”, “rosa-amarelado”, “lilás-pálido”, entre outras criativas expressões que fariam inveja aos criadores brasileiros de marcas de esmalte.

Tamanho esmero com as cores deu resultado: hoje qualquer ser humano com visão saudável reconhece os girassóis amarelos e os traços vibrantes de Van Gogh a metros de distância. De uns anos para cá, porém, de acordo com entendidos da arte e da química, essa pureza quase científica dos quadros de Vincent está em risco. Segundo eles, várias das obras do pós-impressionista estão perdendo brilho e cor.

Não é papo de louco, não: cientistas da Universidade de Antuérpia, na Bélgica, comprovaram no mês passado que, em ao menos um quadro, a cor vermelha usada pelo holandês está embranquecendo. A causa seria uma reação química provocada pelo gás carbônico junto à iluminação de luz azul — presente na grande maioria das lâmpadas de LED.

Dá para imaginar o textão raivoso que o Van Gogh mandaria no Facebook caso estivesse vivo, não?

A explicação do fenômeno é quase simples: por meio de técnicas de tomografia e de difração de raios X, os pesquisadores analisaram amostras do quadro Wheat Stack Under a Cloudy Sky, de 1889, exposto no Museu Kröller-Müller, na Holanda, e notaram que, quando o óxido de chumbo, responsável pelos pigmentos vermelhos do quadro, entra em contato com a luz azulada e com o gás carbônico, transforma-se em outros compostos de chumbo de cor esbranquiçada. De acordo com o líder da pesquisa, o químico Koen Janssen, as reações ocorrem devido a grande sensibilidade do óxido de chumbo para com os raios de luz azulados. “É uma mudança bastante significativa nos tons das cores”, diz Janssen.

O quadro em questão. Crédito: Reprodução

A degradação ocorre em quatro fases, afirma o químico. Na primeira, quando a luz infringe sobre o óxido de chumbo, é gerado um óxido de chumbo altamente reativo. Na segunda fase, esse óxido de chumbo reativo captura gás carbônico e água do ar para formar um mineral raro, o plumbonacrita. O exótico mineral reage, em uma terceira fase, para um hidróxido de carbonato de chumbo, o hidrocerusita. Na quarta e última etapa, a hidrocerusita pode ser convertida em cerusita, também conhecida como “chumbo branco”, bastante usada por pintores para atingir tons esbranquiçados.

Ou seja: a luz do LED se mistura com o gás carbônico da atmosfera e zoa as pinceladas avermelhadas. Mais ou menos como se você lavasse a camisa do seu time repetidas vezes de modo errado. Vai dar ruim, óbvio.

Mas a pesquisa chama a atenção mesmo por mostrar que o “fenômeno esbranquiçador” pode estar ocorrendo com várias obras de artistas contemporâneos ao holandês. Os três elementos da reação química captada pelos cientistas belgas são muito abundantes em exposições, afinal: chumbo vermelho é usado por pintores desde sempre — é o pigmento mais usado para atingir tons avermelhados; já a luz azul é cada vez mais utilizada pelos museus, que preferem o LED pela sua eficiência energética; e o gás carbônico, bem, está sempre por aí, né?

A degradação não fica só na conta do vermelho. Em 2012, uma pesquisa similar mostrou que as cores amarelas de alguns quadros do pintor holandês e do francês Paul Cézanne estão se tornando mais opacas quando expostas aos raios azulados do LED. Nos testes de laboratório, cientistas de Itália, Bélgica, Holanda, França e Alemanha notaram que alguns pigmentos de amarelo cromático se tornaram mais amarronzados em poucos dias de exposição direta a luz azul do LED. Desde então a luz amigona do meio ambiente passou a ser vista como inimiga da arte.

Mas será que estamos sendo justos com o LED?

Na opinião dos especialistas no assunto, não estamos, não. O buraco, dizem, é mais embaixo: é a própria mortalidade dos materiais. “A degradação por meio da luz é inevitável. O LED está longe de ser vilão”, afirma Valéria de Mendonça, coordenadora de conservação e restauro da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Segundo a estudiosa, os grandes inimigos das pinturas são o oxigênio e os raios ultravioletas (UV), presentes nas lâmpadas halógenas, as convencionais.

“Muitos desses processos físicos e químicos de deterioração ainda estão em curso”

“Temos uma grande variedade de equipamentos para evitar a oxidação dos materiais, como caixas que funcionam como cápsulas do tempo e, no caso das iluminações, usamos muitos vidros antireflexo que bloqueiam o UV”, afirma. “O LED é um bom amigo: não emite UV e ajuda a ter um gasto energético bem menor. Mas claro: ele não faz milagre de rejuvenescer a obra e pode reagir com compostos orgânicos e deteriorar.”

Para a arquiteta e designer de luz, Fernanda Carvalho, responsável pela iluminação de diversas exposições no MAM e no CCBB, o problema ocasionado pelo LED em algumas obras pode ter a ver com o modo como foi aplicado — de modo exagerado, talvez. “Toda luz afeta os materiais, algumas mais, outras menos. O LED, além de ser o menos danoso, hoje tem uma qualidade impressionante, é uma tecnologia madura. Mas não é por que não tem UV que pode ser usada diretamente por horas incidindo sobre as obras”, diz.

Exposição “Impressionismo: Paris e a Modernidade” em 2012 no CCBB/SP. A arquiteta e designer de luz Fernanda Carvalho teve de usar luz halógena para imitar o efeito da luz natural e remeter ao cenário que os impressionistas pintaram as obras. Para reduzir os efeitos, usou filtros corretivos com ajuste de temperatura e expôs as obras por curto período. Crédito: Ministério da Cultura/ Flickr

Fernanda explica que o dano causado nas obras pela iluminação é acumulativo. Isso significa que cada vacilo prejudica um pouco a pintura de modo irreversível. O papel dos restauradores e iluminadores então é controlar a quantidade de deterioração. Eles têm que se virar para achar algo que funcione como barreira em relação às luzes e, ao mesmo tempo, satisfaça a exigência das obras na exposição. É tão complexo quanto parece, diz.

A mudança de cores por causa das luzes ocorre desde pelo menos o século XIX. Começou quando cientistas descobriram que as tintas à base de água usadas no papel pelo pintor inglês William Turner estavam desbotando. Van Gogh, que utilizou bastante ambos materiais, sofre com o fenômeno desde sempre. “Muitas das pinturas de Van Gogh que vemos hoje não são exatamente as que ele pintou”, afirma Agnes Brokerhof, cientista sênior do Ministério de Educação, Cultura e Ciência, especializada em conservação preventiva. “As nuvens brancas que vemos hoje eram rosa quando Van Gogh pintou. O quarto dele também mudou de cor consideravelmente ao longo do século passado.”

Como lidar com isso? De acordo com Agnes, o jeito é definir uma impecável configuração de luz. “A primeira coisa que os donos de museus devem fazer é perceber o quanto os trabalhos são sensíveis a luz e, a partir disso, especificar quanta mudança é aceitável.” Para conservar melhor as obras, diz a cientista, é melhor utilizar o sistema de rotação: deixar a obra um bom tempo no escuro e exibi-la em curtos espaços de tempo com luzes mais brandas. Outra solução, sugere Agnes, é deixar a obra o tempo todo em lugar escuro e usar interruptores para acenderem as luzes somente quando o visitante chega. “Filtros e lâmpadas sem UV são imprescindíveis em todos os casos”, afirma.

A verdade é que não há uma solução 100% eficaz para os materiais das obras não deteriorarem. A ciência ainda engatinha na questão de como tratar os quadros do modo correto para que nossos netinhos possam, de mãos no queixo e óculos de aro grosso, olhar os traços e cores com a mesma qualidade que nós. “A pesquisa científica é importante para que nos faça escolher a melhor abordagem na conservação preventiva e nos tratamentos reais de conservação e restauro”, afirma Ella Hendriks, professora da Universidade de Amsterdã e conservadora senior do Museu Van Gogh.

O maior desafio, ressalta Ella, diz respeito ao uso das tintas usadas pelos pintores do século XIX que não se mostraram estáveis ao longo do tempo. “Muitos desses processos físicos e químicos de deterioração ainda estão em curso. É importante verificar as condições ideais do abrigo e da exposição das obras a fim de retardar o processo de envelhecimento.”

A situação do restauro de obras de artistas do século XIX se assemelha ao método de experimentação de cores de Van Gogh: tentativa e erro. Quando o pintor queria atingir certo efeito com as tintas, tentava chegar lá por repetidas vezes e camadas. Podia demorar anos para atingir o tom desejado.

No caso dos curadores não é muito diferente: eles testam na base do empirismo o que é mais eficaz para abrandar a degradação das obras. Desde os anos 80 as novidades tecnológicas vêm sendo muito aplicadas nos museus — os vernizes potentes, os filtros corretivos, as luzes de LED e os vidros antirreflexo são alguns dos melhores exemplos.

Por ora, os cientistas ainda não descobriram se alguma dessas tecnologias pode se mostrar ineficaz com o tempo. A torcida é que laboratórios, autoridades e universidades percebam a importância histórica e cultural desse tipo de investigação científica. Van Gogh, seus fãs e nossos netos agradecem.