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Tecnologia

O que a ciência nos diz sobre “The Keepers” e as memórias reprimidas?

A série documental explora o assassinato da freira Cathy Cesnik e a suspeita de abuso por um padre na escola em que lecionava.
Imagem: Captura de tela/Netflix.

Há muito a ser explorado na nova série The Keepers, da Netflix, baseada em um crime verdadeiro que investiga o assassinato da irmã Cathy Cesnik ocorrido em 1969. Uma das maiores questões em suspenso na série documental diz respeito às memórias reprimidas e recuperadas: elas existem e são confiáveis?

The Keepers explora se a morte da irmã Cathy pode estar ligada às alegações de abuso sexual cometido por um padre no colégio em que lecionava. Algumas pessoas suspeitam que Cathy sabia dos abusos e intencionava denunciá-lo, o que fez dela um alvo. Mas essas alegações só vieram à tona no início dos anos 1990, duas décadas depois da morte de Cathy, quando umas das vítimas subitamente alegou ter recuperado lembranças dos anos de abuso até então reprimidas.

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O procurador do distrito e a Igreja Católica se recusaram a tomar qualquer atitude, então ela e outra vítima ajuizaram um processo cível contra o padre acusado, a Igreja e a escola. O caso foi recusado por um juiz porque as leis de limitações para alegações civis por menores de idade em Maryland tinham expirado. As duas vítimas – que se apresentaram como Jean Wehner e Teresa Lancaster, a protagonista do documentário – esperavam provar que desde que suas memórias estiveram reprimidas; a lei de limitações deveria ser estendida pelo juiz que decidiu contra seu argumento.

Parte do problema é que, em 1994, quando o processo cível foi aberto, havia muito debate sobre memórias reprimidas, lembranças recuperadas e memórias falsas, e o quão confiáveis elas são. A ideia ganhou espaço na mídia nos anos 1980 e 1990 e, naquela época, se tornou evidente que algumas alegações de lembranças de traumas da infância reprimidas e então recuperadas não eram verdadeiras.

As pessoas apresentaram a teoria da síndrome das memórias falsas, em que lembranças exageradas ou mesmo falsas de abuso são evocadas graças à sugestão de terapeutas e da influência de notícias dos jornais. Em 1994, psiquiatras e especialistas não tinham uma resposta para se um adulto poderia súbita e precisamente se lembrar de memórias há muito reprimidas de abusos na infância. Elas são reais? Se sim, quem poderia afirmar?

Desde então, a ciência ficou mais esclarecida. Alguns especialistas afirmam agora que a síndrome das falsas memórias, condição em que uma pessoa se lembra de algo que nunca aconteceu, não existe de verdade, ou que é muito rara. Enquanto isso, construímos um uma compreensão muito mais forte de como e por que traumas da infância poderiam levar a lembranças reprimidas. Pesquisas descobriram que essas experiências podem causar um estresse intenso, inundando o hipocampo – parte do cérebro considerada o centro da memória e das emoções – com hormônios esteroides, e rompendo a forma como as lembranças são armazenadas.

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Estudos mostram casos de memórias de traumas recuperadas subitamente as quais podem ser corroboradas com evidências, indicando que se trata de um fenômeno verdadeiro. Outros estudos mostraram que pelo menos 25% de vítimas de abuso sexual na infância esquecem ou reprimem as lembranças desse trauma em algum ponto de suas vidas adultas.

Em 2002, quando o Boston Globe expôs o escândalo de abuso sexual de crianças dentro da Igreja Católica, o entendimento das lembranças reprimidas já estava bem estabelecido. O que levou à condenação de ex-padres, como Paul Shanley, que tentou recorrer da decisão. A suprema corte de Massachusetts manteve a condenação, alegando que "a pesquisa do juiz de que a falta de testes científicos não torna incerta a teoria de que um indivíduo pode experimentar amnésia dissociativa foi amparada por registros, não somente pelo testemunho de especialistas, mas por uma grande coleção de observações clínicas e pesquisa na literatura acadêmica".

Na mesma época, outros casos semelhantes foram expostos ou sofreram reviravoltas com base em evidências de recuperação de lembranças. Infelizmente, ainda não se trata de uma ciência bem definida: ainda há muitos aspectos desconhecidos a respeito do funcionamento da memória e, sem corroborar as evidências, isso pode dificultar as provas que as lembranças de uma vítima são precisas, especialmente quando elas são recuperadas décadas depois do abuso.

Quanto ao caso apresentado em The Keepers, a Igreja Católica por fim pareceu aceitar a realidade das lembranças recuperadas, oferecendo acordos para 13 vítimas nos últimos anos.

A ciência está resoluta de que acontecimentos traumáticos causam perda de memória e que essas lembranças podem ressurgir anos ou décadas mais tarde. Mas no que diz respeito ao tribunal de justiça, esse fenômeno pode ser difícil de ser provado, e ainda é amplamente considerado caso a caso.