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'Atlanta' confronta sociedade em seus atritos raciais sem apelar a panfleto

Segunda temporada da aclamada série de Donald Glover chega enfim à Netflix.
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Foto: Divulgação/ FX

Ao final da primeira temporada de Atlanta, acompanhamos Earn voltando para sua casa ao som de Elevators, do OutKast. Caminha pelas ruas de East Point, até que um trovão no céu, um tipo de som e fúria que dá o tom de toda a série, interrompe a música de forma magistral – é quando descobrimos que o personagem de Donald Glover não tem uma casa; ele mora em um depósito.

Não deixa de ser uma noite feliz: depois de ter dado o dinheiro do mês para a ex, mãe de sua filha, ele conta o seu punhado de dólares. Ao mesmo tempo, há uma delicada tristeza: o dinheiro ainda não é o suficiente (quando será?). One for the money, two for the show, diria o duo mais célebre de Atlanta. OutKast parece presente de maneira orgânica na vida de Earn. A música compensa o relacionamento fracassado, a pouca grana, dormir sozinho num depósito em vez de dormir com Vanessa, a ex, que cogita que o dinheiro veio das drogas. O racismo, estrutural, está ali a todo o tempo, mesmo com a mulher com quem Earn teve uma filha. Resta cair fora. Resta a música. This ain’t gon’ stop, so we just gon’ continue.

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A partir desse ponto começa a segunda temporada de Atlanta, que chegou à Netflix recentemente, ainda que com um atraso enorme. A velha estratégia da Netflix de nos encher de séries lixo, concebidas e produzidas pela gigante que agora compra briga com Hollywood, e nos dar um pouco de qualidade a conta-gotas. Bom, assim é a vida – basta ver Atlanta para saber disso. Muito lixo todo dia para breves e atrasados momentos de beleza.

Resumo breve para quem não lembra o que rolou na primeira temporada ou para quem não viu a série: Earn, interpretado por Donald Glover, e o primo Paper Boi estão crescendo na indústria fonográfica do hip-hop, em Atlanta, Geórgia. Depois de um tropeço inicial, envolvendo um crime (quando ouvem a música de Paper Boi pela primeira vez no rádio, a cena termina em tiroteio – o que o amigo Darius, que fecha o trio protagonista, interpreta como um déjà vu), eles crescem, ganham respeito, mesmo com uma sequência enorme de roubadas, grana escassa, e uma boa dose de tristeza.

Donald Glover é a máquina criativa por trás da série. Sim, o Childish Gambino que fez troça com Jim Crow e com um baseado no videoclipe mais marcante de 2018: This is America. Ah, sim, ele também fez o grande Lando Calrissian em Han Solo, da franquia Star Wars – isso sem contar outros destaques, como a finada série-culto Community. Atlanta é um produto cultural da mente de Glover, e só podemos agradecer aos deuses por isso.

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Corram à Netflix, caso não tenham visto ainda. Não é preciso gostar de hip-hop, não é preciso sacar todas as referências (e são muitas), para apreciar Atlanta. Você pode gostar de Mozart, de jazz experimental, pode achar o rap uma arte menor, como diz Teddy Perkins a Darius, “coisa de adolescente” (ao que Darius responde, em seu típico espírito nonsense, que Jay Z tem 65 anos), e assistir à série.

Não é preciso ser negro – como não é preciso ser judeu para apreciar O Complexo de Portnoy, de Philip Roth, ou Um Homem Sério, dos irmãos Coen. Atlanta, aliás, cuida bem dessa questão, de inúmeros modos sutis, quando mostra uma cantora branca recebendo milhares de likes fazendo uma cover acústica do sucesso de Paper Boi. Darius comenta que as garotas brancas adoram isso.

Há uma tiração de onda de como uma cultura pode ser distorcida e retorcida até virar lixo branco, e nós brancos podemos rir com eles. Fale com um negro, fale sobre sua cultura, fale com um judeu, fale sobre sua cultura, mas não seja um imbecil e tente imitá-los (e diminuí-los). Não passe vergonha.

Isso também fica claro na quantidade de vezes em que a bandeira dos Confederados aparece na segunda temporada, em algumas das roubadas que o trio se mete, do episódio de Teddy Perkins a uma frat-party de uma universidade de elite. A bandeira que marcou um dos períodos de maior opressão na história dos negros nos Estados Unidos parece ficar piscando em nossa mente.

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Mas não só: o episódio em que Vanessa (a ex) leva Earn a uma Oktoberfest. Ali não há nenhum racismo explícito (e sim estrutural), mas é um dos capítulos mais angustiantes de toda a série, não só da segunda temporada. Vanessa, que é meio negra, meio germânica, fala em alemão com o bartender e sentimos na alma a exclusão. Não precisamos saber alemão para saber que há um flerte na frente do negro que está sendo chutado daquele meio nojento e infantiloide de baboseira prussiana.

Teddy Perkins, o misterioso personagem que Darius enfrenta ao buscar um piano em sua casa, não deixa de ser uma representação desse estado das coisas. Em uma cultura onde o negro é recebido na bala, cria-se uma máscara bizarra, com uma patologia psiquiátrica e social no talo. No começo do episódio (calma, não é um spoiler!), Darius faz questão de comprar um boné com a bandeira dos Confederados, com os dizeres Southern Made (feito no Sul, frase tipo “orgulho de ser católico” etc etc). Beleza. Aí ele risca algumas letras com um canetão e a frase no boné se transforma em U MAD. A frase pode ter um sentido estrito, uma resposta à frase tosca do boné, mas pode ter uma conotação ao universo de Wonderland que Darius estaria por entrar, ao confrontar Teddy Perkins em sua mansão. Wonderland, da Alice, com o insólito invadindo o real, ou Neverland, não a de Peter Pan, mas a de Michael Jackson, referência que me parece clara no episódio. Você decide.

As roubadas que os personagens se metem demarcam um território anômalo da segunda temporada de Atlanta, o que coloca o futuro de Earn na reta: como empresário, ele precisa garantir menos roubadas a seu primo Paper Boi. Acabou a farra de tratar tudo “em família”, e é preciso se profissionalizar. Arrumar um advogado judeu (os judeus ganham destaque no fim da temporada), fazer mais grana, conseguir mais shows, gerenciar melhor o business. “Família é importante, mas dinheiro é mais importante”, Paper Boi reflete com uma bandeira dos Confederados enorme atrás dele e de Earn.

One for the money, two for the show. Moving on up in the world like elevators. Me and you. OutKast ressoa aos nossos ouvidos sem parar. Like elevators.

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