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Música

Mais Que Uma Voz: Kingdom, Kelela e Porque a Música Eletrônica Não Entende o R&B

O produtor Kingdom, Kelela, música eletrônica e o R&B. Tudo isso harmonicamente junto ou não. A gente explica.

Como alguém que passou a maior parte de sua adolescência imersa num mundo de Caras Brancos Tocando Guitarras, eu gosto de pensar que meus dias de esnobe musical estão para trás. Na verdade, agora eu sou militantemente pró-qualquer coisa que provoque um comentário "nossa como os tempos mudaram" no YouTube, vindo de pessoas que de alguma forma chegaram à idade adulta sem percebê-la. Mas ultimamente eu tenho me pego de surpresa murmurando o quão esquisito é o fato de que a única música da Ciara que a maioria das pessoas conhece é “1,2 Step”, no puro estilo Old Man Yells At Cloud. Embora eu não tenha o complexo de superioridade em saber mais de uma música da Ciara, eu ainda acho que tem algo a mais na minha teoria meia-boca que não funciona para os dois lados.

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Há uma diferença entre zombar de alguém por não saber todas as letras de um b-side do Arctic Monkeys - você pode achar que estou exagerando, mas eu já fui uma dessas babacas e se serve de alguma coisa, eu estou subestimando o quão triste e preconceituoso é ser assim - e pegar no pé do ex-indie que acabou de tomar sua primeira bala e acha que você quer ouvir sua epifania amadora sobre como as Destiny's Child "até possuem algumas músicas decentes". Isso acontece porque o R&B vem há tempos sido taxado de guilty pleasure, que não vale a pena ser intelectualmente investigado.

Uma das maneiras na qual isso cruza com a música eletrônica é através do fluxo de produtores sampleando vocais de R&B na virada da década. Houve um período, mais ou menos um ano atrás, onde era muito provável que você ouvisse um vocal da Cassie com o pitch modificado servindo como percussão em um clube e, não estou tentando impor uma moratória sobre samples de R&B, mas a tendência a soltar uma Brandy ou Cassie nos sets têm se tornado algo seriamente datado.

O Kingdom, que comanda a gravadora do Fade to Mind, em LA, concorda. Fade to Mind e sua irmã Night Slugs têm sido as exceções que comprovam a regra quando se trata de samplear R&B, e o Kingdom tem um ótimo ouvido para entender como o sampling deve e não deve ser feito: "Eu acho que algumas pessoas usam samples de R&B achando que vão deixar sua música mais acessível, mas muitos nem sequer ouvem a música original, e se ouviram, foi muito brevemente. Isso acontece especialmente em casos como quando alguém está fazendo um remix inteiro usando um acapella. Acho que tem também um instinto em alterar o pitch e, na maioria das vezes, isso apenas soa como se eles estivessem com medo de revelar ao público o que realmente estão tocando. Eles o abstraem, o tornam anônimo e sem corpo".

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Na medida em que o processo de renderização de vocais R&B até se tornarem irreconhecíveis invadiu a música eletrônica, também rolou o desaparecimento das vozes negras femininas. Você sabia que existem pessoas que acham que o remix para “Say My Name” do Cyril Hahn é uma música original? Nem eu, até ouvir alguém que tinha ido recentemente a um set do Hahn em Glasgow reclamando que "ele só tocou alguns de seus próprios hits", e que "não esperava tanto R&B". Triste, considerando que dois dos maiores sucessos do Hahn (suas versões de Destiny Child's e Mariah Carey) são R&B - isso é, interpretações aguadas, pálidas e assexuadas de R&B. O Hahn também possui a mesma atitude de desprezo que eu estou falando: em uma entrevista para a Mixmag de outubro, ele justificou sua escolha de material dizendo "Não é algo que eu escuto de verdade, é mais um guilty pleasure".

Entre a série Adidas x Songs From Scratch, e os trabalhos do Future Brown com gente como Tink, Maluca e Ian Isiah, parece que as linhas entre R&B e música eletrônica estão se tornando cada vez mais tênues. Kingdom é crítico quanto à falta de polimento nas mixagens: "A mixagem pode ser um problema dentro dessas colaborações underground. Eu dou mais atenção à estética das grandes gravadoras porque seus padrões são muito altos. Se você toca sua música no clube, no carro ou no iPhone, você vai receber o conjunto completo. Tudo depende da gravação, mas para mim o vocal toma muita energia. Com 'Bankhead', eu gastei meses inteiros apenas indo e vindo nos canais, tentando achar o ponto certo. Eu acho que alguns produtores do Songs From Scratch estão fazendo produções em massa que ainda soam como algo feito no Logic Pro. Eu ainda sou parcial com beats que têm algo de zoado".

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Por que ele acha que esse abraço unilateral do R&B tem se desenvolvido tão fortemente na música eletrônica atual, consumida através das lentes da nostalgia? "Acho que tem algo seguro sobre ser retrô para essas pessoas que tem medo de R&B", responde o Kingdom. "Eles acham seguro apenas jogar um hit antigo, mas a ideia de realmente ser um fã e pesquisar o que está acontecendo com o artista já seria demais. Isso cria uma distância, os permite empacotar a música de uma certa maneira". O tempo que ele passou em estúdio com a Naomi do Electrik Red (o quarteto originalmente de dançarinas do Usher na época que o Kanye West abria seus shows, e o DJ do Kanye era ninguém menos que o A-Trak da Fool's Gold) permitiu-lhe obter um maior conhecimento sobre o que é exigido de um produtor quando se trabalha com uma vocalista - conhecimento que usou mais tarde para suas produções para a mixtape da Kelela, Cut 4 Me.

Por mais que eu tenha ouvido Cut 4 Me, e por mais que eu ache merecida sua indicação ao BBC Sound of 2014, eu dedico uma quantidade saudável de olhar enviesado ao jeito que ela e outras cantoras são enquadradas como a alternativa positiva ao R&B comercial. Para seu crédito, Kelela sabe o que faz. Ela é tão rápida em citar Brandy e Aaliyah como influências, como também Amel Larrieus e Yukimi Nagano, mas isso não impediu que o The Guardian publicasse não um, mas dois, artigos neste ano que trazem seu nome como uma espécie de prenúncio do R&B aceitável.

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O primeiro nomeia a Kelela (entre outras) como "as futuras estrelas do R&B experimental", mas o segundo tem um tom um pouco mais capcioso. Ele implica que a Kelela, junto com suas companheiras da Saint Records, Solange e Cassie, estão "determinadas a serem mais do que apenas colírio para os olhos” - e conclui que "apenas o tempo dirá se a autonomia feminina terá seu lugar no R&B mainstream". Isso se apoia na mesma retórica “tirem as crianças da sala” que demoniza o R&B como excepcionalmente e exclusivamente misógino e, aparentemente, permite que o resto desse fosso patriarcal também conhecido como Terra obtenha um passe livre.

A presunção de que vocalistas femininas são apenas musas para um estúdio composto (na maioria das vezes) apenas por homens é uma atitude já datada, e que não existe apenas neste lado comercial do espectro. Em abril do ano passado, a Solange Knowles foi ao Twitter corrigir suposições feitas sobre o seu papel no processo de produção: "Acho muito decepcionante quando sou apresentada como o ‘rosto’ da minha música, ou a ‘musa vocal’ quando eu componho ou colaboro em cada música, porra. Como alguém pode ser uma ‘musa vocal’ para suas próprias melodias, histórias e palavras que escreve? Vocês estão entendendo tudo errado. Eu tenho escrito e produzido minha própria voz desde os dois anos, neguinho. Sexismo na indústria da música não é novidade".

A Solange abriu uma discussão no Twitter sobre críticos diletantes de R&B e seus #deepbrandyalbumcuts. Muitos desses críticos encontraram seu caminho dentro do gênero através da nova safra de artistas cool do R&B; FKA Twigs, Banks e Kelela. Mesmo que isso não torne esses críticos e artistas indefensáveis, a atitude levou a um subtexto de que esses novos artistas de R&B são bons, porque eles não são nada como aqueles outros artistas de R&B. Isso tem aparecido lentamente na comunidade da música eletrônica, que já possui um relacionamento problemático e turbulento com o R&B como ele é.

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Muitos parecem não conseguir apreciar o R&B a menos que ele siga certas regras; aparecendo em um vocal morto-vivo, ou numa colaboração com um dos "nossos" (leia: eletrônico) produtores. Perceba como a FKA Twigs tem tanta influência da Janet quanto a Ciara, mas sua performance traduz essa influência de uma maneira muito mais compatível com a estética dos bros de deep house. Ou como a expressão de R&B da Kelela é considerada muito mais crível do que a da Rihanna, por que a Kelela tem o pessoal do Night Slugs e do Fade to Mind na cola. Claro, ouvir Rihanna cantando em uma faixa do Total Freedom seria incrível, mas sugerir que, até o dia em que ela faça isso, nós não deveríamos levá-la a sério, me faz ter vontade de gravar um CD inteiramente com samples da Rihanna e escrever “bitch, please” em cima com uma canetinha.

O que o Kingdom acha sobre o papel da Fade to Mind neste período de transição do R&B, onde tantos artistas são legitimados precisamente por suas coproduções ou colaborações com produtores de música eletrônica? “Eu não sei qual o nosso papel per se, mas eu sei que temos algo especial para dizer sobre isso, porque somos fãs de R&B desde o primeiro dia. R&B sempre foi algo que ouvimos, estudamos e discutimos sobre - e tocamos, remixamos e editamos. Não é apenas uma novidade ou plano b para nós”.

Há definitivamente um aspecto racial na maneira na qual o R&B (e por extensão, o pop) é praticamente o único gênero onde mulheres de cor tomam conta do show. O sucesso da Beyoncé é citado tanto quanto o do Obama quando algum idiota liberal precisa de um exemplo da “América pós-racial”, mas esse exemplo vai a chão quando você considera o quão larga é a escala onde o R&B ainda é considerado inferior, ou apenas algo “para diversão”, pelas pessoas agarradas à noção arcaica da ideia binária underground/mainstream; como se o primeiro não tivesse constantemente informando, e sendo colhido, pelo segundo.

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A forma pela qual o R&B é julgado como descartável em artigos como esses e produtores como o Hahn é perigosa, porque permite uma discreta retórica sexista e racista. “É a mesma coisa que acontece nos clubes, e com a atitude em geral em relação ao R&B”, insiste o Kingdom. “É ótimo que eles estão dando cada vez mais respeito às pessoas do underground, mas existe uma ideia de que o R&B popular ou mainstream não pode ser levado a sério. Temos sido apresentados a um monte de imagens repetitivas e fabricadas da mulher na música. cada vez mais pessoas sabem que um monte de artistas do mainstream não escrevem suas músicas, então acho que isso, de uma certa forma, faz com que o que se produz no underground pareça mais legítimo. Isso os excita”.

Artistas de R&B que evitam noções socialmente construídas da negritude são bem-vindos nas curvas da música eletrônica, e são mais abraçados que seus colegas. A narrativa branca dominante não apenas controla o que é e o que não é pensado como um significante de negritude, mas os classifica e policia de acordo com uma política de respeitabilidade babaca - é por isso que Solange recebendo beats do Dev Hynes, ou Kelela recebendo beats do Jam City, são consideradas parcerias criativas mais legítimas do que Rihanna fazendo beats com o Mike Will.

As mulheres de cor que são constantemente descritas como “cabeças de vento”, como "engrenagens da indústria do entretenimento capitalista”, são mais espertas e atentas ao underground do que você imagina. Ficar surpreso quando você percebe que elas tem as idéias no lugar e sabem o que estão fazendo diz mais sobre suas percepções rasas sobre mulheres do que qualquer outra coisa. O dia em que os guardiões da música eletrônica deixarem de lado o que sabem sobre o mainstream, especialmente quando suas noções do que é mainstream estão implicitamente ligadas à raça e gênero, será um dia melhor.

Sophie Kindreich é jovem demais para levar essas coisas tão a sério. Você pode segui-la no Twitter aqui: @sophiekindreich

Esta matéria foi originalmente publicada aqui no Thump.