Essa reportagem integra a série Brazica, a nossa busca pelo lado mais inusitado do futebol nacional. Acesse todas as matérias aqui.
Além do preconceito escancarado contra gays, o futebol também esconde outra característica: a homofobia estrutural, aquela que dificulta, e muitas vezes persegue, a vida pessoal e profissional de quem não segue um padrão heteronormativo.
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Para contar um pouco desta história enrustida, separamos três depoimentos que dão o panorama de como o preconceito está nas entrelinhas.
Falamos com Sérgio Cenedezi, Alfredo Loebeling (que é hetero mas também foi alvo da homofobia) e de um ex-funcionário de clube (que preferiu não se identificar) para apresentar o óbvio que está escondido embaixo dos tapetes.
O ex-árbitro gay
Aos 54 anos, Sérgio Cenedezi talvez seja o grande nome da luta contra a homofobia nos bastidores do futebol. Assumidamente gay, o bandeirinha já apitou mais de 100 jogos da elite do futebol brasileiro, mas nunca foi indicado ao quadro da FIFA — onde estão teoricamente os mais qualificados —, segundo ele, por sua orientação sexual.
Nas linhas abaixo, Cenedezi conta como a homofobia estrutural aparece no futebol:
A minha carreira na arbitragem poderia ter ido muito mais além se eu não fosse assumidamente gay. Fui cotado para muitos jogos decisivos do Campeonato Paulista, mas quando o meu nome era colocado em pauta, sempre havia uma barreira. É mesquinho o trabalho de alguns dirigentes da Federação Paulista de Futebol. Eles se comportam como vaquinhas de presépio, fazem coisas obscuras dentro da instituição e não assumem o que fazem. Prefiro assumir a minha homossexualidade do que sair em alguma reportagem que eu roubei alguém.
O nosso mundo é homofóbico, e a homofobia tem dois canais. Se você for homossexual assumido nas suas funções e desempenha seu papel com muita presteza e o sistema não tem como tirar você, ele procura te deixar um pouco de lado. Mas uma coisa tenho que dizer: dentro do campo eu nunca fui vítima de homofobia, porque eu era xarope. Se alguém falasse alguma coisa para mim, eu ia pra cima. Isso, de certa forma, limitava um pouco o preconceito das pessoas. Eu tinha coragem porque nunca tive vergonha de ser o que sempre fui.
Não devo porra nenhuma para ninguém na minha vida. Um dos diretores da arbitragem hoje no Brasil, um cara forte lá dentro, uma vez me cantou e eu disse assim: ‘querido, eu não achei meu cu no lixo pra transar com você’. É um cara que mantém a pose de hetero como muitos outros por aí. Convivo com homens que são gays enrustidos até hoje. Homens casados que procuram por sexo escondido com outros homens. O mundo é muito podre pra falar alguma coisa de honestidade e transparência.
Amigo hétero
Quem corrobora o discurso de que Sérgio Cenedezi poderia ter ido além se não fosse sua orientação sexual é o também ex-árbitro Alfredo Loebeling.
O Sérgio foi um assistente que eu tive que era muito bom e ele nunca escondeu sua orientação sexual e eu também nunca tive problemas com isso, mas eu percebia que, por exemplo, tinha gente que não sentava para almoçar com ele, não tinha muita amizade com ele. Tinham também outros árbitros que eram gays, mas eles ficavam bem dentro do armário.
Eu jamais deixaria de trabalhar com uma pessoa devido a sua orientação sexual, mas sei de gente que evitava. Porque muitas vezes a gente ia junto no avião, ficava no mesmo hotel, dependendo da cidade ficava hospedado no mesmo quarto.
A gente brincava com isso, tirava sarro e não tinha muito mimimi. Ele levava na boa, porque não era agressivo, nada. No campo, em vários estádios menores, o alambrado fica mais próximo e a torcida fica ali do lado gritando. ‘Viado. Aí bandeira bicha’. Eu tirava sarro, falava para o torcedor. ‘Você tá elogiando o cara, ele é viado mesmo’. Ele ria e os torcedores também. Tudo depende de como você encara.
Eu sou gay? Não. Trabalhei com gays? Sim. Aquilo lá não era um filme pornô, era uma partida de futebol. Se ele tinha qualidade para ser um assistente de ponta, como ele tinha, por que não?
Ele sempre foi um cara que conhecia muito as regras do esporte. Quando ele parou a carreira, poderia ter ido com certeza para a escola de árbitros. Ele nunca foi chamado, eu não posso afirmar que foi porque ele é gay, mas é no mínimo estranho pela qualidade que ele tem. Nesses anos depois de sua aposentadoria passaram pela escola muito mais gente com menos conhecimento do que ele. E eu acho que coincidências têm limite.
O coordenador
Um ex-funcionário de vários clubes do interior de São Paulo também conta sobre a carreira interrompida precocemente por conta de sua orientação sexual. Ele já atuou como supervisor de categorias de base, coordenador de refeitório, coordenador de logística, entre outras funções. Por medo, ele não quis se identificar para esta reportagem:
Trabalhei com futebol 35 anos e eu poderia ter ido mais longe dentro dos clubes. Eu era visto como uma pessoa muito capacitada onde trabalhei e muitas pessoas me falavam que, se eu não fosse gay, eu estaria num grande clube. Isso me foi dito por treinadores e dirigentes que não são homofóbicos. Nós não vamos porque somos homossexuais. Não crescemos. Eu fui muito barrado por diretores. Eu fiz muito trabalho que gerou repercussão positiva, mas dentro do clube tive muitas barreiras.
Tem muito homossexual no futebol. Tem muita gente que é e não assume, principalmente treinadores e diretores. Tem muito, porque eu convivi. Os que não são assumidos são respeitados até certo ponto, quando tem um falatório aí já complica.
No futebol se você assumir pode esquecer. É assim. Eles não contratam. Se souberem, te mandam embora. É um absurdo.
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Assista ao nosso documentário Bicha!, um mergulho na homofobia do futebol brasileiro:
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