Em 2014, a Beyoncé usou uma parte do discurso “We Should All Be Feminists” (“Todos deveríamos ser feministas”, em português), extraído do TED Talks da escritora e ativista feminista nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, como sample em “Flawless”, faixa do seu penúltimo disco, o BEYONCÉ. Com o trecho de Chimamanda explicando o conceito do termo “feminista”, a música se tornou um “hino pop” e ainda influencia boa parte do movimento feminista pós-2015.
Um reflexo direto dessa influência aqui no Brasil foi o que o Rimas & Melodias — projeto que começou como um cypher de sete minas já conhecidas do neo-soul e do hip-hop paulistano em 2015 mas logo se transformou num supergrupo musical — fez em “Manifesto/Pule, Garota”, faixa que fecha o seu EP de estreia, lançado nesta sexta-feira (15): o grupo convidou a filósofa e pesquisadora feminista negra Djamila Ribeiro para recitar alguns versos no final da música. “Com certeza, ‘Flawless’ foi uma referência, mas nós resolvemos fazer diferente” explica a rapper e cantora Tássia Reis, uma das sete integrantes do R&M. “Na música da Beyoncé, era sample. Já na nossa, a gente teve a honra de receber a maravilhosa Djamila no estúdio para gravar suas incríveis palavras, escritas especialmente para a nossa faixa.”
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“Vou falar, gritar e me emocionar quando enxergar Dandara [guerreira negra do período colonial do Brasil, esposa de Zumbi dos Palmares] em mim/E essa voz vai ser coletiva”. Essa e outras linhas lidas pela filósofa paulista — considerada uma das maiores vozes da consciência negra feminina no Brasil atual — no fim da música funcionam meio como um resumo do que DJ Mayra Maldijan e as cantoras/rappers Tatiana Bispo, Drik Barbosa, Karol de Souza, Stefanie, Tássia Reis e Alt Niss quiseram passar ao longo das sete faixas do primeiro EP homônimo do Rimas & Melodias: “Tentamos registrar o máximo da nossa verdade ali, tanto sobre nossas vivências individuais quanto coletivas”, conta Mayra. “Então, foi inevitável falar das questões que envolvem o fato de sermos mulheres (a maioria negra) e dos perrengues que passamos no dia- a-dia. E o rap foi e sempre será protesto, mensagem. Tentamos passar isso no disco, mesmo que nas entrelinhas.”
Como o grupo é muito grande — são sete integrantes, contando com a DJ —, as músicas se organizaram na seguinte forma: três faixas (intro, “Origens” e “Manifesto/Pule, Garota”) com participação de todas as meninas; três divididas em duplas (“Coroação”, “Paradoxo” e “Vivência”) e um interlúdio (“Sete Chaves”). Apesar de começar com uma intro descontraída, já na segunda faixa, “Coroação”, o disco assume uma postura mais “pé na porta”, com um hino à autoestima e garra da mulher preta, entoado pelas rimas de Drik Barbosa e Stefanie.
Logo após, vem “Origens”, música que trata sobre a ancestralidade de cada uma das artistas, temática bastante recorrente dentro do feminismo negro. Enquanto as rappers e cantoras rimaram e cantaram sobre suas famílias e influências, a DJ Mayra — que, além de cuidar das colagens e dos scratches, também cuidou da direção artística do EP — resolveu homenagear sua ascendência paterna armênia com um sample: “Fiz uma colagem com um sample de duduk, flauta típica da região da Armênia, sobre um beat na pegada house que ajudei a dar vida ao lado dos produtores do disco, Grou e Dia. Me questionaram porque não tem uma rima ali explicando minhas origens, mas eu sou DJ (em breve espero ser produtora também) e aquele era meu momento, a minha forma de me expressar. Nem tudo precisa estar dito, acho que a mágica da música também está interpretação, nas sensações”, explicou.
Depois de passar pela love song “Paradoxo”, dueto entre Tássia Reis e Tatiana Bispo, o EP apresenta “Vivência”, parceria entre Alt Niss e Karol de Souza. “A faixa traz uma temática aparentemente descontraída, mas na verdade é uma mensagem de libertação muito grande”, conta Alt Niss. “Poucas vezes vemos mulheres abordando a humanidade que se carrega, por medo do julgamento de tanta gente. Quantas vezes nos vemos ‘desromantizando’ (se a palavra não existia agora existe) a famosa ‘postura’ exigida de nós, mulheres? Poucas! Em outras palavras, a gente quer dizer que tudo bem tirar uma onda sendo mãe ou trabalhando pra caralho, segurando vários BOs que ninguém vê. Só a gente sabe o corre que é criar filhos, na maioria das vezes sozinha, ou sair da sua cidade e ralar de verdade pra botar os trampos para andar, fazer nosso dinheiro, superar várias dificuldades, e ainda aguentar o julgamento inescrupuloso porque estamos apenas vivendo, nos divertindo de vez em quando”.
Para Niss, esses temas deveriam ser abordados mais vezes no rap. “Mulher é foda, mas é feita de carne e osso também. E isso precisa infelizmente ser frisado. Ninguém é herói o tempo todo”. Na faixa final, além da participação da Djamila Ribeiro, as sete integrantes se reúnem novamente para fechar o disco com um grito de protesto a toda e qualquer forma de violência contra a mulher.
Além da direção artística da Mayra, o EP foi produzido por Grou, DIA, Nauak e Deryck Cabrera. Os beats vão desde boombap oldschool, até o trap, funk, soul e um pouco de house e arrocha em “Origens”. “Nos preocupamos em alinhar a sonoridade, já que somos muitas e cada uma tem seus gostos, mas isso não foi nada difícil, porque vimos que tudo se complementava”, diz Mayra. “Desde o início também já tínhamos a ideia de criar beats que se transformassem ao longo da música e terminar algumas delas com interlúdios. E mesmo traçando essa linha, deixamos os produtores bem livres para extrapolá-la e trazer elementos originais que dialogassem com tudo aquilo.”
O EP foi gravado nos estúdios da Red Bull em abril deste ano, em sete dias “muito catárticos de produção”. “A maior parte das letras foi escrita durante esse período, papel e caderno no colo mesmo. Depois disso, o disco foi pra etapa de pós-produção, quando entraram os interlúdios, colagens, scratches e a gravação da Djamila Ribeiro na ‘Manifesto’. Durante esse processo todo fizemos muitos shows e é com esses cachês que estamos pagando o disco, tudo de maneira independente”, conta Mayra.
As sete ainda seguem com suas carreiras solo. Alt Niss deve lançar seu primeiro disco “muito em breve”; Drik Barbosa acabou de assinar com a Laboratório Fantasma e está trabalhando no seu primeiro EP, que sai ainda em 2017; e Tatiana Bispo vai soltar um single também ainda esse ano. Mas o grupo pretende explorar bastante o trabalho coletivo das minas do Rimas & Melodias Brasil a fora. “Por enquanto estamos vivendo esse momento que é só amor. Nosso primeiro disco está saindo e estamos numa mistura de ansiedade e orgulho. Temos a intenção de fazer um disco com mais músicas porque vimos que funcionamos muito bem juntas em estúdio, só que, por enquanto, queremos mostrar pro Brasil inteiro esse nosso trabalho atual”, conta Tatiana. “Estar com as minhas irmãs no estúdio, criar tudo juntas, foi tudo mágico. Estamos caminhando, coletivamente, com muita coragem e determinação e é nítido que temos conseguido abrir portas onde antes elas nem existiam pra nós. Só que ainda há muito a ser feito pelas mulheres no rap”, reflete Drik Barbosa.
Ouça o EP no player abaixo: