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Música

Gótico e Nada Suave: Uma Entrevista com o Diretor do Documentário sobre a História do Madame Satã

O novo longa-metragem do jornalista Wladimyr Cruz investiga raízes e legado do porão que é o underground do underground cultural paulistano.

Quem viveu o underground de São Paulo nas últimas três décadas (entre um e outro hiato) tem alguma história para contar do Madame Satã. E agora um dos principais antros da contracultura da cidade acaba de ganhar um documentário. Uma Nova Onda de Liberdade – A História do Madame Satã conta, com registros e entrevistas com personalidades da época, as histórias e momentos eternizados vividos no casarão da Bela Vista.

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Um desses personagens é o diretor e jornalista Wladimyr Cruz, o Wlad, que circulava em meio a punks, góticos, travestis, prostitutas e skinheads e frequenta até hoje o Madame. Ele estreou como diretor de longa-metragem em Woodstock, Mais Que Uma Loja, e promove o lançamento de Uma Nova Onda de Liberdade – A História do Madame Satã na sexta (27), em Santo André (saiba mais sobre a festa de lançamento aqui).

Wlad conta como surgiu a ideia do documentário, quais foram os momentos que viveu no “porão mais underground de São Paulo” que não saem de sua cabeça e qual foi o legado que esta geração, que serviu para abrir a mente de muita gente, deixou para os dias de hoje.

Noisey: Como foi seu primeiro contato com o Madame Satã?
Wladimyr Cruz: O primeiro contato da maioria do pessoal da minha idade, cerca de 30, 40 anos, acredito que foi o mesmo: com as lendas. Ouvir falar de um casarão onde rolavam coisas X e Y, coisas boas, coisas ruins, mas principalmente coisas absurdas, e que davam ao local aquele ar meio de 'proibido' ou perigoso. Ir efetivamente, pela primeira vez, foi em meados dos anos 1990, na época em que a casa estava totalmente mergulhada no esquema gótico. Não reconheci a casa das lendas que ouvia falar, mas gostei principalmente pelo som ser totalmente diferente do que era tocado em qualquer outra casa noturna que eu pudesse frequentar na época. A partir de então frequentei o casarão regularmente até o seu fechamento, em 2007 [a casa reabriu em 2012].

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O Madame Satã, hoje apenas Madame, desde que abriu as portas sempre foi um ponto de encontro das pessoas que prezavam pela liberdade, que muitas vezes não tinha na maioria dos lugares convencionais. Como surgiu a ideia de abrir a casa e na sua opinião, qual o segredo para se manter na ativa até hoje?
A casa abriu de uma forma despretensiosa, a princípio por uma galera das artes cênicas, uma espécie de restaurante teatral. Disso, virou uma casa punk, um reduto de uma intelligentsia, depois uma casa gótica, e enfim um nightclub bem estruturado onde tudo isso convive em uma roupagem moderna. Muita água rolou por ali, e é muito disso que contamos no filme. Agora, sem dúvida, o motivo de ela estar aberta até hoje em primeiro lugar vem do fato do casarão ser tombado historicamente. Ele precisa servir para algo com um propósito em que não precise ser modificado. Além disso, e talvez o mais importante de tudo, é o amor do público pela casa. Este mesmo amor fez com que pessoas que frequentam lá desde os anos 1980 continuem a frequentar, e que mantém muito de sua estética viva, passando de geração a geração. Este mesmo amor que fez um moleque que chegou a ser boy do administrativo da casa nos anos 80 hoje ser o dono do local após reformar um espaço, que na época, estava desacreditado e lacrado pela prefeitura.

Foi no Madame Satã que nasceram bandas importantes do rock nacional como RPM, Inocentes, Titãs, Ira! entre outras. Fale sobre a importância do casarão da Bela Vista para o cenário musical independente que temos nos dias de hoje.
O Madame não era o único, é importante lembrar. Tivemos o Napalm, o Retrô um tempo depois, casas que foram importantíssimas para a criação de um circuito alternativo. Acho que a contribuição do Madame pro cenário e circuito da época foi o de ser praticamente um mainstream do underground, dando uma visibilidade a mais para os artistas que tocavam lá, e claro, liberdade para suas respectivas expressões artísticas. E isso é relevante pro cenário atual, pois foram casas como o Madame que solidificaram o formato de noite alternativa que temos hoje. Se temos um monte de casas na Augusta com pista escura e banda autoral no palco foi porque o Satã e tantas outras deram a cara a tapa antes e provaram que essa era uma equação possível.

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Claro que os tempos mudaram, mas é fácil notar que no Madame de hoje ainda é possível esbarrar em góticos, punks e metaleiros – gente que antigamente, se colocadas sob um mesmo teto, rolariam brigas e confusões na certa. O que mudou em relação a estes movimentos de agora comparado a duas décadas atrás?
Brigas entre grupos jovens urbanos sempre existiram no Brasil, e sempre vão existir, mas na época a falta de informação e a informação deturpada reinavam absolutos, e davam combustível para que isso fosse um estouro um tanto mais barulhento. Hoje em dia quem perde um tempinho a mais, ou se importa um pouco mais, tem acesso a informação e confunde menos as coisas. Além de que, claro, vivemos em tempos de uma juventude mais domesticada e menos rueira.

Em Woodstock, Mais que Uma Loja você conta a trajetória de uma loja/gravadora independente que ficava próximo ao Metrô Anhangabaú, em São Paulo, e que foi um dos principais pontos de encontro da galera do thrash e death metal. Quais foram as principais dificuldades em conseguir resgatar informações de décadas atrás durante a produção destes dois documentários?
Material em vídeo desta época: ele não existe, simples assim. Era super caro para se filmar algo, ou mesmo para fotografar. Pouca gente tinha acesso. Era caro e difícil pro usuário doméstico comum. Não tem ilustração, e o que temos, tem uma qualidade horrível. E por isso mesmo contar essas histórias oralmente é tão importante, para que elas não se percam no buraco negro da história.

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Quais foram as situações mais doidas que já viveu e presenciou no Madame Satã? Se pudesse voltar atrás e viver tudo de novo nos dias de hoje, o que valeria a pena?
Não peguei uma fase de loucura no Madame. Quer dizer, nada que eu possa contar pode ser considerado loucura perto das histórias do filme, como por exemplo você chegar no clube e ter uma vaca – sim, o animal – pastando no meio da pista de dança, cercada por galinhas pintadas em cores flúor correndo em torno dela. Isso é loucura. O resto – bebida, droga, sexo, briga – são coisas da noite e tem em qualquer lugar. E claro, não apenas eu, mas todo mundo que já viveu isso, faria de novo. Faz parte do processo.

Você já esteve em outros clubes undergrounds e polos de contracultura, como Londres, Berlim ou Nova York? Se sim, quais são ou foram os lugares que conheceu e que acha que se enquadraria com o Madame Satã?
Sim, já estive, e o Madame é algo único. Principalmente por sua história, claro, mas como clube é também algo único. A gente consegue traçar paralelos do Satã com o Studio 54, pela liberdade sexual e o envolvimento com a liberação gay na noite; com a Batcave, pelo som soturno e os darks; com o C.B.G.B.'s, pelas bandas no porão e seu palco embrionário; ou mesmo com algum galpão de Chicago na época do nascimento da house music pelo seu pioneirismo com a música eletrônica… Cada um em seu devido lugar geográfico e histórico no comparativo, claro, mas ainda assim, nenhum deles é o casarão do Bixiga. E hoje, no mundo, nenhum clube punk (ou coisa que o valha) tem tantos anos em atividade e uma história tão plural dentro de sua cultura e arte local.

Você é fã de punk rock das antigas e de bandas punk/hardcore mais atuais também. Qual a banda que ainda não tocou e falta tocar no Madame?
Nacional? Um monte. Temos gerações de bandas punk que deveriam tocar lá e nunca tocaram. Mas se fosse para escolher um nome recente, eu acho que o Ludovic é uma banda que tem exatamente o espirito daquele lugar. Algo dark, punk, visceral. Vamos armar essa, Jair? [risos]

Para encerrar, o que você acha necessário para um espaço como o Madame não perder a identidade e se manter firme durante décadas?
O público. A casa, apesar de suas características arquitetônicas marcantes, é apenas uma casa, são quatro paredes e um teto. Quem faz o lugar é o público, qualquer um deles. A maior característica dali não é o dark, nem o gótico, nem o punk, nem nenhum tipo de clichê, é justamente o oposto disso, é a liberdade. Um lugar onde um cara pode ir vestido sim igual ao Nick Fiend e ninguém vai ficar regulando se ele está na moda ou não, se ele está cool enough ou não. Esta é a única identidade do Madame que realmente importa, e que nunca poderá ser perdida. E claro, cabe a nós mantermos isso intacto.