Priscilla Lucas dormia profundamente quando foi acordada por um barulho de tiro. Não passava das quatro horas da manhã de segunda-feira (20) e o comando do Exército havia acabado de dar a ordem para as tropas entrarem nos complexos da Penha, Alemão e Maré, todos na Zona Norte do Rio de Janeiro. Começava naquela madrugada um pesadelo bem real para quase 500 mil moradores acordados pela ação da intervenção federal. “Fiquei incrédula ao ver os tanques de guerra na avenida principal”, comentou a estudante de 26 anos, moradora da Penha.
A megaoperação teve a participação de 4,2 mil agentes das Forças Armadas e 70 policiais civis. O objetivo, de acordo com o Comando Militar do Leste em nota que eles me enviaram por email, era desarticular o tráfico de drogas, retirar barricadas e cumprir mandados. Mas para quem vive nas favelas atingidas foi muito mais: há relatos de tortura, casas reviradas e um rastro de sangue deixado no caminho. O balanço da operação foi de 70 pessoas presas, 554 quilos de maconha apreendidos e 14 armas recuperadas (cinco fuzis). O saldo de corpos, no entanto, ainda não se pode contar. Além dos três militares vitimados em confronto, João Viktor da Silva, Fabiano Oliveira dos Santos e Marcus Vinícius Viana Ribeiro, o CML afirmou que cinco suspeitos foram mortos. Os moradores têm duas certezas: esse número passa de dez, e parte desses sequer tinham envolvimento com o tráfico.
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A menos de dez quilômetros da Penha, na favela da Nova Holanda, Complexo da Maré, a entrada dos soldados pouco depois de 1h da manhã interrompeu um pagode. O evento acabou no primeiro disparo. Houve confusão, e na correria alguns moradores que estavam na rua se machucaram. A ONG Redes da Maré criticou a operação. “Uma ação marcada por homicídios, truculências e ilegalidade, que durou mais de 14 horas ininterruptamente, levando indignação e perdas materiais a uma população cansada de ver seus direitos fundamentais desrespeitados”, afirmou em nota.
Na terça-feira, dia seguinte à primeira investida do Exército no Complexo da Penha, uma cena chocou e viralizou nas redes sociais. Dezenas de pessoas se uniram para um mutirão na busca por corpos que estariam jogados em uma região de mata na favela.
Revista em criança e esculacho em cachorro
O Comando Militar do Leste afirmou ter realizado mais de 7 mil revistas em pessoas e veículos. Organizadas nas entradas das favelas, as duras viraram intimidação pública. A ordem era checar os celulares dos revistados para saber quem frequentava grupos de vigilância no WhatsApp. “Colocamos ‘Família’ no nome de um grupo do Complexo do Alemão para despistar”, contou um jovem que prefere não ser identificado. “Fui dar reforço de matemática para a irmã de uma amiga e me revistaram. Não fiquei constrangido, mas com medo. Passei por um beco e vi dois fuzis apontados na minha direção”, disse outro. Ativistas da favela pediam nas redes sociais para que os moradores apagassem quaisquer mensagens relacionadas às operações.
Nem as crianças passaram batidas: mesmo com uniforme de escola, dezenas delas tiveram as mochilas revistadas. Questionado pela VICE Brasil se a averiguação em crianças é um procedimento normal e se é realmente eficaz para combater o tráfico de drogas, o Comando Militar do Leste não respondeu.
Vários moradores acusam os militares de terem invadido casas no Complexo da Penha. Um homem escreveu no Facebook: “Você sai para trabalhar […] e os vizinhos mandam mensagem dizendo que estão quebrando sua casa toda. Será que é porque moro em favela?”, escreveu em um post no Facebook. “Pode deixar, militarismo, que eu trabalho e compro minhas coisas de volta”.
Na favela da Nova Holanda, local onde a Polícia Militar atuou junto com o Exército, até cachorro tomou esculacho. Um PM foi acusado de ter arremessado um poodle do terceiro andar de uma casa. O animal sobreviveu.
Representantes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), da Defensoria Pública e de redes de direitos humanos estiveram quarta-feira nos complexos da Penha e Alemão para averiguar as denúncias de crimes cometidos pelas Forças Armadas, mas onda de violações já havia reverberado para outras favelas. Moradores de Manguinhos, também na Zona Norte, relataram nas redes sociais que jovens foram torturados por policiais.
“Gente, alguém me ajuda. O Bope entrou aqui agora dando muito tiro e estão torturando um menino aqui na rua. Ele está pedindo socorro e ninguém aparece”. Procurada, a Polícia Militar respondeu por email que não realizou qualquer operação na comunidade.
Veja o que os jovens da Maré pensam sobre a intervenção militar no Rio de Janeiro.
Três militares mortos e Bolsonaro no enterro
“Olho sua mochila, te procuro pela casa, te espero no portão e você não vem mais. A última coisa que disse antes de entrar no Uber foi ‘te amo, meu amor, fica com Deus, até depois’. Tiraram a parte mais bonita de mim”. O forte depoimento foi publicado no Facebook por Chrystyanne Coelho, namorada de Marcus Vinicius Viana Ribeiro, de 22 anos, o terceiro soldado do Exército morto na operação. Além dele, João Viktor da Silva, 21, e Fabiano Oliveira, 36, também morreram — são as primeiras baixas militares desde o início da intervenção federal, em fevereiro deste ano. A morte de três militares em uma só operação foi considerada incomum por especialistas e até por membros das Forças Armadas.
Marcus Vinicius foi baleado na perna durante a operação de segunda-feira no Complexo do Alemão. Ele estava internado no Centro de Terapia Intensiva (CTI) do Hospital Municipal Salgado Filho, no Méier, mas não resistiu e morreu dois dias depois.
João Viktor e Fabiano, mortos na segunda-feira, foram enterrados juntos no cemitério de Engenheiro Pedreira, no município de Japeri, onde ambos foram criados. O primeiro deixa um filho de dois anos, e o segundo, que havia largado o trabalho de motorista de ônibus para ser cabo temporário no Exército, uma filha da mesma idade.
O candidato à presidência da República Jair Bolsonaro esteve presente no enterro. Sobre Fabiano, o presidente da República Michel Temer escreveu no Twitter: “A minha solidariedade à família do Cabo Fabiano que lamentavelmente faleceu hoje durante operação da Intervenção Federal no Rio de Janeiro. O Brasil agradece ao militar que dedicou a própria vida por um país melhor”.
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