Saúde

Será que um psicodélico que não chapa pode ajudar pessoas com depressão?

Een illustratie van een psychedelische paddenstoel

Um paciente com depressão uma vez descreveu sua condição como “estar preso no espaço mais estreito imaginável, com um saco na cabeça”. Outro disse que era como se ele estivesse trancado numa jaula de metal “do pescoço pra cima”, ou numa “prisão mental”.

Durante e depois de tomar uma alta dose de psilocibina, o ingrediente ativo de cogumelos psicodélicos, algo mudou. “Foi como estar de férias longe da prisão do meu cérebro”, uma pessoa disse. “Eu era uma bola de energia saltando pelo planeta, me senti despreocupado, reenergizado.”

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Esses testemunhos vêm de um teste clínico para depressão resistente a tratamentos do Imperial College London de 2016. Uma semana depois de tomar a psilocibina – e por até três meses depois – os sintomas depressivos dos participantes foram “marcadamente reduzidos”, diz um artigo sobre os resultados. Desde então, psilocibina e outros psicodélicos estão sendo considerados intervenções poderosas e muito necessárias para doenças mentais. Centros de pesquisa de psicodélicos estão sendo formados no Imperial College, e mais recentemente na Universidade Johns Hopkins em Baltimore, Maryland. Em outubro de 2018, psilocibina recebeu a designação Breakthrough Therapy do FDA dos EUA, a reconhecendo como um tratamento promissor para depressão resistente, e possivelmente agilizando o processo para sua aprovação como medicação legal. (A psilocibina atualmente é ilegal em nível federal nos EUA e Reino Unido, No Brasil a psilocibina e a psilocina são substâncias controladas, mas os cogumelos psilocybe cubensis não são proibidos.)

Enquanto cientistas estão tentando entender exatamente como essas drogas levam a resultados tão dramáticos, há um desejo crescente de cortar a experiência psicodélica dos outros efeitos das drogas. As viagens alucinógenas que os psicodélicos induzem podem ser separadas de outras interações que drogas podem ter no cérebro?

As experiências que as pessoas têm usando psicodélicos podem ser profundas, emotivas, dolorosas, prazerosas e aparentemente transformadoras. Um paciente do estudo do Imperial College relatou que “tive um encontro com um ser, com um sentimento forte de que era eu mesmo, me dizendo que tudo bem, não preciso me culpar por todas as coisas que já fiz. Tive uma experiência de carinho comigo mesmo. Durante essa experiência, houve um sentimento de verdadeira compaixão que nunca senti antes”.

Mas e se essa “viagem” é só um jogo de espelhos? Uma janela vestida como um processo neurobiológico acontecendo em outro lugar, que em si está reduzindo sintomas de depressão? Drogas psicodélicas interagem com receptores do cérebro que causam a viagem em si, mas há muitos outros efeitos que são distintos das jornadas alucinógenas pelas quais as pessoas passam. Por exemplo, elas podem criar um aumento das conexões entre regiões do cérebro, e interferir em outras partes dos circuitos do cérebro. Ainda assim, até agora, muitos especialistas consideravam a experiência inteira com psicodélicos uma coisa só.

“Psicodélicos produzem experiências profundas”, disse Chuck Raison, professor da Escola de Ecologia Humana da Universidade de Wisconsin-Madison. “Psicodélicos têm um efeito antidepressivo. Eles fazem as duas coisas ao mesmo tempo, então elas se tornaram ligadas misticamente, porque o cérebro humano funciona assim. Parece causa onde há associação.”

Agora pesquisadores estão tentando separar as duas coisas: o quê, exatamente, é responsável pelos resultados positivos na saúde mental? Que componentes do tratamento psicodélico são fundamentais, e quais podem ser removidos? Há iniciativas da academia agora para ver se eles podem ser separados, otimizados ou até retirados da experiência psicodélica – e esse ainda ser um tratamento eficaz.

Essa área de estudo levanta a questão: como seria um psicodélico não-alucinógeno? Ele poderia ser menos espiritual ou profundo subjetivamente, e há chances de não funcionar. Mas se isso funcionasse para depressão, alguns especialistas dizem que um psicodélico não-alucinógeno (ou modificado de alguma maneira) é inevitável. Esse tipo de droga seria mais escalável, mais fácil de vender e mais lucrativa do que aquela que causa as viagens. Ela também seria mais acessível do que os enquadramentos atuais de tratamentos com psilocibina para depressão – tratamentos que levam horas – fornecendo os mesmos benefícios em larga escala para aqueles que precisam desesperadamente de mais opções para tratar doenças mentais.

“A menos que os efeitos psicodélicos sejam o mecanismo pelo qual essas drogas funcionam, cedo ou tarde, essas drogas não terão mais efeitos psicodélicos”, disse Raison.

Depois que os estudos com depressão no Imperial College colocaram os efeitos medicinais em potencial da psilocibina sob os holofotes, profissionais de saúde começaram a ver que, para alguns pacientes, os efeitos podem passar depois de alguns meses – mesmo em pessoas que inicialmente mostraram grandes melhoras.

“Isso sugere que não é apenas uma mudança na nossa perspectiva de mundo depois da experiência que nos beneficia”, disse Raison. Se uma experiência incrivelmente poderosa muda fundamentalmente sua visão de mundo, por que os benefícios começam a passar? “Tem alguma coisa psicológica junto com isso.”

Ele está no processo de recrutar participantes para um estudo que vai tentar responder parte dessas questões científicas básicas em se tratando de psicodélicos: qual o papel dessa experiência consciente durante uma viagem? Para isso, ele vai fazer pessoas usarem psilocibina, e depois evitar que seus cérebros formem memórias da experiência.

Se alguém toma psicodélicos quando está inconsciente ou dormindo, e isso ainda resulta num efeito antidepressivo, isso pode sugerir que a “viagem” não é necessária para os resultados clínicos. Mas o estudo de Raison é uma investigação ainda mais sutil.

Ele está acessando a importância de algo chamado consciência de acesso. Se você usa cogumelos, você terá uma experiência imediata da sua viagem, ou consciência fenomenal. Mas depois você vai acessar essa experiência novamente, lembrando do que aconteceu – refletindo e integrando qualquer que tenha sido sua experiência.

“Preferimos tentar descascar a cebola e começar com as camadas externas dessa consciência, que é a memória do evento”, disse Raison.

Eles planejam usar um sedativo chamado midazolam, que mostrou em estudos produzir um tipo de amnésia que pode evitar temporariamente que as pessoas formem novas memórias. Em certas doses, um paciente pode permanecer acordado e ter uma experiência psicodélica – mas não se lembrar. “É como encher a cara na balada”, disse Raison. “Você dança, grita, beija as pessoas, mas não lembra depois.”

Primeiro eles vão testar que doses de midazolam colocam voluntários saudáveis nesse estado. Depois, vão repetir o processo com um grupo de pessoas que têm depressão e comparar com aquelas que tomam psilocibina e lembram com aquelas que não lembram. Se os dois grupos apresentarem benefícios iguais da psilocibina, isso pode sugerir que você não precisa realmente da memória da experiência para que a droga seja usada para depressão.

“Você ainda pode precisar da experiência da consciência fenomenal”, ou a consciência de que a viagem realmente aconteceu, disse Raison. Se a psilocibina ainda funcionar com a memória apagada, o próximo passo pode ser fazer a experiência de novo com participantes inconscientes. Se, por outro lado, apagar as memórias das pessoas da viagem com o midazolam levar a um efeito menor em seus sintomas de depressão, isso indica que a memória e reflexão do evento é um componente importante.

Raison acredita que mesmo com os resultados de testes já existentes, não vamos saber realmente tratar uma doença como a depressão sem entender completamente o que os psicodélicos estão fazendo. Esse estudo pode ser um portal para isso.

“Podemos começar a perguntar: qual a diferença no cérebro entre pessoas que estão tomando psilocibina em si versus psilocibina mais midazolam?”, disse Raison. “Então você está começando a identificar os caminhos que são especificamente associados com um tipo de efeito antidepressivo.”

Um psicodélico não-alucinógeno já existe e há outro contexto médico onde ele provou ser benéfico: dores de cabeça.

Emmanuelle Schindler, neurologista da Escola de Medicina de Yale, trata cefaleia em salvas, que ganhou o apelido sinistro de “dores de cabeça suicidas” por causa da dor frequente e excruciante que causam.

Schindler ouviu evidências anedóticas de pessoas usando psicodélicos tradicionais para melhorar sua cefaleia em salvas, e de um estudo de 2010 que analisou o uso de algo chamado 2-bromo-LSD, ou BOL, para dores de cabeça.

O BOL difere do LSD por apenas um átomo, e não é alucinógeno. Quando um componente chamado brometo é ligado ao LSD, ele remove seus efeitos psicodélicos. BOL foi criado por Albert Hoffman, que também inventou o LSD. (Quando Hoffman fez o LSD, na verdade ele estava procurando um novo medicamento para enxaqueca.)

Em entrevistas com um grupo de pacientes com dores de cabeça chamado Cluster Busters, o psiquiatra da Escola de Medicina de Harvard John Halpern descobriu que 41% deles tinham dores de cabeça menos dolorosas e menos frequentes quando usavam uma variedade de psicodélicos, e que para 52% deles, os ciclos de cefaleia em salvas tinham parado completamente. Uma pesquisa com o uso de BOL descobriu que a droga pode fornecer um alívio similar para cefaleia em salvas.

“Quem teve acesso ao BOL ou aqueles que participaram daquele pequeno estudo disseram que quando usavam a droga do mesmo jeito que faziam com psilocibina ou LSD, isso tinha um efeito similar em suas dores de cabeça”, disse Schindler.

Não sabemos como o BOL – o LSD ou mesmo a psilocibina – melhoram sintomas de cefaleia em salvas. Uma pista é que os dois psicodélicos, alucinógenos ou não, lembram quimicamente vários outros remédios para dor de cabeça.

A estrutura química da psilocibina é muito parecida com a do sumatriptano (nome comercial Imitrex), um medicamento usado para tratar uma dor de cabeça de cada vez. Também é similar à da melatonina, um hormônio que ajuda a regular ciclos de sono mas também pode ajudar a tratar transtornos de dor de cabeça. O LSD é parecido com a metisergida, um medicamento para dores de cabeça que não é mais comercializado, e di-hidroergotamina, usada para tratar dores de cabeça e, quando tomada por vários dias, ajuda a prevenir futuras dores de cabeça.

Mas a psilocibina, LSD e BOL diferem dessas drogas de um jeito importante: eles podem levar a alívio de longo prazo mesmo depois de poucas doses, similar ao que os pesquisadores estão vendo nos testes com depressão resistente a tratamento. Outras medicações não fazem isso, disse Schindler.

BOL agora é oficialmente usado para tratar qualquer transtorno de dor de cabeça, mas ainda é um exemplo intrigante onde a parte alucinógena do quebra-cabeça não é necessário. BOL pode ter efeitos similares da psilocibina e LSD, disse Schindler, e assim os pacientes não precisam passar por uma viagem psicodélica para encontrar alívio.

Uma terapia psicodélica mais personalizável como essa é atraente para muitos – tanto pacientes que não querem viajar, como para empresas privadas e grupos governamentais modificando essas drogas para criar versões melhores delas, ou usando as interações psicodélicas com o cérebro como ponto de partida para algo inteiramente novo.

Um esforço do tipo é um novo laboratório de psicodélicos que utiliza inteligência artificial chamado Entheogenix Biosciences, lançado por duas empresas, a ATAI Life Sciences e a Cyclica. Srini Rao, cientista-chefe da ATAI e CEO do Entheogenix, concorda que há teorias que se cruzam, e às vezes competem, de como psicodélicos ajudam as pessoas – experimentalmente ou biologicamente. Dependendo do que se mostrar verdade, isso provavelmente vai influenciar os jeitos como drogas psicodélicas são trazidas para o mercado.

O Entheogenix vai estudar vários psicodélicos – quetamina e DMT além da psilocibina – e avaliar que partes de suas estruturas químicas são associadas com benefícios para a saúde mental. “Então podemos começar a falar sobre essas outras partes associadas com alucinógenos, por exemplo”, disse Rao. “Podemos criar compostos que provavelmente vão atingir as partes certas e talvez manter alguns outros pedaços da farmacologia que são críticos, particularmente cercando neuroplasticidade.”

Eles não estão apenas procurando por psicodélicos não-alucinógenos (afinal de contas, a parte da alucinação pode ser crucial), mas também analisando diferentes versões químicas da psilocibina que possam “melhorar” o modelo original. Essas versões podem reter o elemento psicodélico, mas em durações muito mais curtas. Em vez da experiência normal de seis a oito horas, a coisa pode ser condensada para 30 a 45 minutos. Eles talvez também possam consertar outras questões com a droga, como uma com outro receptor de serotonina associado com danos ao coração.

“Se você vai criar novas moléculas, você pode muito bem torná-las o melhor possível”, disse Rao.

Essa é uma abordagem que a Defense Advanced Research Projects Agency (DARPA), o ramo de pesquisa do exército americano, vai tentar em sua própria versão. Em setembro, a DARPA anunciou o lançamento do programa Focused Pharma, que vai desenvolver novas drogas “neuropsiquiátricas” vagamente inspiradas em resultados de vários testes clínicos com psicodélicos. O objetivo do programa da DARP é desenvolver tratamento para soldados e veteranos com Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), depressão e abuso de substâncias.

O projeto explicitamente não está investigando os psicodélicos em si, disse um porta-voz da DARPA, mas a existência de pesquisas psicodélicas teve uma influência no trabalho do grupo – essas pesquisas mostraram que é possível uma droga ter um efeito imediato em depressão, além de interagir com o cérebro de maneiras complexas, disse Tristan McClure-Begley, diretor de programas da Focused Pharma.

McClure-Begley disse que mesmo se os psicodélicos como existem agora forem aprovados para tal propósito, seu uso pode ser limitado considerando os efeitos colaterais. Ele não vê como a psilocibina pode ser usada realisticamente para melhorar a vida de veteranos e outras populações em ampla escala considerando como o tratamento que existe agora, onde uma pessoa precisa de horas de preparação, horas para a viagem (ou mais de uma viagem), e depois horas de acompanhamento. É preciso dois profissionais de saúde especializados, portanto caros, para ajudar durante as viagens, e outros para facilitar a preparação e sessões de integração.

“Isso teria um alto custo, e seria difícil de fazer em larga escala”, Raison disse. Se a experiência da viagem não está ligada ao mecanismo como os psicodélicos podem ter um efeito positivo na depressão, então “é difícil entender por quê, se você está tratando uma doença, você vá insistir que as pessoas passem por isso. Muita gente estará trabalhando para tentar encontrar um jeito de otimizar essas moléculas e tornar a entrega o mais simples possível”.

Pode não ser tão fácil traçar a linha entre biologia e experiência, disse Chris Timmermann, neurocientista do Grupo de Pesquisa Psicodélica do Imperial College. Toda droga tem um componente experimental, mesmo aquelas que não são psicodélicas. Se você toma um antidepressivo e ele te faz sentir melhor através de meios “biológicos”, você ainda terá experiências de cura em se envolver com outras pessoas, no seu trabalho, com a família, e encontrar uma vida mais prazerosa.

“Há grande correlação entre fatores contextuais e a experiência que as pessoas têm, e parece haver uma relação forte entre a qualidade da experiência e o resultado psicológico, de uma perspectiva médica”, disse Timmermann.

Ele acha que de um ponto de vista científico, é importante dissecar a experiência psicodélica de seu impacto biológico. Mas ele espera que essa ênfase na análise da experiência leve a mais atenção para a experiência no geral – não importa o que as pesquisas acabarem encontrando.

Suponhamos que o estudo de Raison descubra que a experiência psicodélica é de fato necessária para o alívio da depressão. Timmermann não acha que devemos parar aí, e continuar tratando a “experiência” como um evento, em vez da combinação de muitos.

Timmermann tem estudando DMT, o composto psicodélico encontrado na ayahuasca, e disse que em relatórios das experiências das pessoas, elas falam de temas ou visões similares, assim como com a psilocibina. “Tipo ‘Fui para outra dimensão’ ou ‘Vi essas entidades ou seres’, e assim por diante”, ele disse. “Temos boas evidências de que essa experiência é um fator crucial para as pessoas melhorarem. Mas também é válido tentar descobrir por que esse é o caso.”

Muito do que as pessoas dizem que foram as partes mais significativas da experiência são as que elas têm mais dificuldade para descrever. Podemos estar perdendo algo em entender esses momentos definidores. “É quase como um território não-mapeado”, disse Timmermann. “A ciência ainda não se voltou para a direção de fenomenologia da experiência. É como se não tivéssemos uma linguagem pra isso.”

Não só as linhas embaçadas entre experiência e biologia precisam ser analisadas, mas a própria experiência precisar ser dissecada também, ele disse. Talvez a experiência seja importante, mas certos tipos em certos momentos são mais ou menos importantes. Num estudo que será divulgado em breve na Scientific Reports, Timmermann e seus coautores desmontaram a experiência de uma viagem com DMT, mostrando que as pessoas se sentem diferentes em certos pontos depois de tomar a droga, assim como na intensidade associada e na atividade cerebral associada.

Esse tipo de disciplina e rigor podem parece um jeito pouco convencional de abordar uma viagem psicodélica, mas se vamos seriamente usar essas drogas como remédios, isso será necessário, Raison disse. Como psicodélicos podem produzir sentimentos intensamente profundos, pode parecer errado tirar partes dos psicodélicos, categorizar o místico, taxonomizar o espiritual, ou criar remédios inspirados nos psicodélicos que serão produzidos e vendidos pela indústria farmacêutica por lucros surpreendentes.

Raison disse que sendo honesto consigo mesmo, seu pressentimento é que a experiência consciente da viagem é um fator. Ele acha que muitos profissionais de saúde que testemunharam as experiências profundas que mudaram a vida de seus pacientes vão concordar. Mas a questão é que se não soubermos com certeza, ele não acha que pesquisadores deste campo podem gravitar por nenhum dos extremos – achar que é tudo biológico, e se livrar de toda a piração dos psicodélicos; ou tratar os psicodélicos como algo tão sagrado que não pode ser mexido.

“Pessoalmente, estou torcendo para a consciência”, ele disse. “Mas como um mentor me disse uma vez ‘Se você tem medo da verdade, melhor sair da ciência’. Você nunca sabe, né?”

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Matéria originalmente publicada na VICE EUA.

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