Sete dias em território rebelde na Colômbia

Um comandante nos disse que alguém viria nos buscar na frente da sinuca, mas chegamos duas horas atrasados. Agora não sabíamos se eles ainda viriam. Esperamos aquela tarde e durante a noite; depois de dormir num hotel barato, esperamos na manhã seguinte. Foi aí que uma mulher, usando um boné preto e um top colado com um periquito no ombro, parou sua moto na frente da tienda onde estávamos esperando. Ela nos olhou de modo suspeito e foi embora sem dizer nada.

Ficamos observando-a partir – assim como os agricultores, comerciantes e todo mundo –, esperando por um sinal, qualquer sinal, de que tinham vindo nos buscar. Esse era o acordo que tínhamos feito com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, as FARC, a organização de guerrilha comunista mais antiga do país. O grupo está em guerra contra o governo federal desde 1964, um conflito que já causou pelo menos 218 mil mortes. Se conseguíssemos chegar a esse pequeno vilarejo, nos arredores de uma grande faixa de território controlado pelas FARC chamado Llanos Del Yarí, eles tinham prometido nos levar para seu esconderijo na floresta.

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No dia anterior, começamos nossa jornada em Bogotá, a capital do país. A rota passa por colinas cobertas de névoa, além de cobras e macacos escondidos em toda árvore e vale. As FARC, que têm cerca de 8 mil membros hoje, têm conseguido controlar o território há mais de três décadas. Mais adiante, a jornada até o quartel-general das FARC começou a parecer uma viagem pela história da Colômbia. Vilas em ruínas contam a história da desigualdade abismal entre o centro do país e sua periferia esquecida. Uma estrada de mão dupla gradualmente se transformou numa estrada solitária barrenta. Quanto mais longe você está de Bogotá, mais pobre é a infraestrutura. No final da jornada, logo antes de alcançar o território das FARC, pichações da guerrilha vandalizando prédios do governo começaram a aparecer.

“Vocês vieram pra cá desarmados?”, perguntou um jovem soldado do Exército Nacional. Ele estava no posto de controle da Brigada Móvel, localizado no pico de uma montanha dos Andes, logo antes da estrada descer para Caquetá. Aqui, muitos postos de controle do exército pontuam a periferia do território das FARC – afinal de contas, essa é a fronteira de uma guerra civil. Quando o soldado viu que só estávamos carregando tripés e câmeras na caçamba da nossa caminhonete, ele relaxou.

“Vocês deveriam voltar”, ele aconselhou. “Se continuarem, vão encontrar El Paisa, o comandante da guerrilha. Você já ouviu falar dele? Ele é um homem sanguinário e é contra todas as negociações de paz. Por favor, não vão a esse lado.”

Ele acabou deixando que a gente passasse: duas horas depois, a noite já tinha caído e continuávamos na estrada. Quando as luzes da nossa caminhonete iluminaram de repente um homem no meio da estrada, ele apontou seu fuzil diretamente para nós.

“Apague o farol e saiam da caminhonete!”, ele ordenou. O homem era um jovem guerrilheiro usando roupas civis. Ele estava com outros dois homens armados.

“De onde vocês estão vindo?”, um deles gritou. Aparentemente, tínhamos entrado em território das FARC em algum ponto desconhecido. “Vocês não sabem que é proibido passar por aqui depois das 18 horas?”

Explicamos que estávamos vindo de Bogotá para fazer um documentário, mas não dissemos que tínhamos permissão de um comandante das FARC para estar ali. Não sabíamos se esse batalhão se dava bem com o comandante que tinha nos dado permissão para visitar.

“De que lado vocês vieram?”, um dos guerrilheiros perguntou.

“Bogotá, Girardot, Neiva…”, nosso fixer respondeu.

“Só isso?”

“E por um posto de controle do exército lá em cima…”

Houve um silêncio. Ele estava nos testando. Se não admitíssemos que tínhamos falado com os militares, teríamos problemas.

“Vão embora então”, ele disse. “Vocês não podem ficar aqui. Vocês vão levar tiro, vão levar bomba. Voltem e não esqueçam que é proibido passar por aqui à noite.”

“Civis comandam reuniões e participam do governo, mas todo mundo na região sabe que a guerrilha tem a última palavra.”

Demos a volta. Depois de algum tempo, passamos por outro posto de controle do exército em San Vicente del Caguán. Numa barraca próxima, uma pequena lâmpada iluminava o rosto de 32 membros das FARC retratados num cartaz de procurados do governo. No topo do cartaz, estava a foto de El Paisa, que tinha uma recompensa de US$ 5 milhões por sua cabeça. DENUNCIE E RECEBA O DINHEIRO, dizia o cartaz. VAMOS TER A PAZ QUE TANTO QUEREMOS.

Não tínhamos vindo para Llanos del Yarí só para encontrar os guerrilheiros mais importantes da Colômbia – viemos também porque, depois de dois anos de diálogo com Havana, Cuba, as FARC e a administração do presidente Juan Manuel Santos estavam entrando no estágio final de um processo de paz histórico. No dia 20 de julho de 2015, líderes das FARC tinham anunciado um cessar-fogo unilateral. Isso já tinha sido tentado quatro vezes desde que os diálogos começaram, e fracassou todas as vezes. Na verdade, em abril de 2015, um cessar-fogo anterior tinha caído depois de quatro meses, quando guerrilheiros das FARC invadiram um pelotão do exército enquanto as tropas dormiam, matando 11 soldados. Um mês depois, as tropas do governo retaliaram e mataram 26 guerrilheiros. Será que dessa vez seria diferente? Esperávamos descobrir.

Passamos a noite num hotel primitivo a alguns quarteirões do posto de controle do exército. Na manhã seguinte, à luz do dia, dirigimos por uma estrada de terra até Llanos de Yarí e as FARC.

Ainda estávamos lá, esperando na frente da sinuca. O vilarejo em volta era formado por uma dúzia de construções: uma barraca de frutas e verduras, uma escola, um boteco. Um comandante das FARC tinha prometido nos buscar, embora ninguém tivesse aparecido ainda, fora alguns agricultores e a mulher com o pássaro no ombro.

Finalmente, depois de mais de 24 horas esperando na frente da sinuca, e quando já estávamos pensando em desistir, um homem em roupas civis chegou numa moto e nos chamou. Ele tinha uma expressão severa e mandou que nós o seguíssemos. Ele nos guiou pelas planícies de Yarí e nos levou para algumas casas solitárias na base de uma colina. Enquanto eu observava a multidão de militantes das FARC reunida na frente de uma das casas, notei um rosto familiar – a mulher do periquito verde.

Vê-la ali me fez perceber que as FARC estavam nos observando o tempo todo. Ela acenou e sorriu. Aí, em silêncio, nos levou para uma casa grande no fundo do vale. Na frente de uma hacienda de madeira vermelha, uns vinte homens de farda estavam de prontidão, carregando fuzis. Eles eram membros da Frente 63 dos Combatientes de Yarí, a frente do leste das FARC. Num mastro, vimos a bandeira do grupo – dois fuzis cruzados na frente das cores nacionais da Colômbia: amarelo, azul e vermelho. No outro lado, havia uma bandeira branca sinalizando o comprometimento dele com o cessar-fogo unilateral.

Uma mulher gordinha com um sorriso simpático andou na nossa direção da entrada da propriedade e nos recebeu com alegria. Ela usava um uniforme verde e coturnos. Tudo aconteceu muito rápido. Não estava claro até aquele momento que já estávamos no meio dos guerrilheiros. Agora, sem dúvida, estávamos no coração do território das FARC.

A guerrilheira simpática subiu em sua moto e guiou nossa caminhonete por estradas escondidas que corriam por trás de pastos, por caminhos bifurcados, e, aos poucos, três horas depois, chegamos a uma savana desolada sem cercas, gado, casas ou estradas. Tudo ao nosso redor eram corredores de selva e caminhos labirínticos que levavam ao Rio Putumayo e acima das montanhas virginais e imensas. No final de cada caminho, estavam mais guerrilheiros esperando para ver o que aconteceria agora: paz ou mais guerra.

A data era 21 de julho – apenas um dia depois de as FARC começarem seu sexto cessar-fogo desde que as negociações de paz tinham começado em 2012. Em Havana, a administração Castro e a Noruega estavam atuando como mediadores entre as FARC e o governo colombiano. Como parte do diálogo, as FARC fizeram promessas de paz várias vezes – porém sem realmente concordar em parar a luta. Nas negociações passadas, durante os anos 80 e no começo dos 2000, as FARC exploraram tréguas para fortalecer suas posições militares. Desta vez, o governo não estava disposto a deixar isso acontecer. Portanto, as regras eram claras: enquanto os dois lados dialogavam sobre a paz, eles continuariam lutando. Como o Exército Nacional continuava a atacar os acampamentos das FARC enquanto eles negociavam, os guerrilheiros nos levaram para ficar na casa de uma família de camponeses, alvos mais improváveis da violência do governo. Lá, numa cabana de madeira sem energia elétrica ou água corrente – mas com uma antena da DirecTV –, passamos os dias seguintes.

“Perguntei a Laura se ela achava que a paz era possível na Colômbia. ‘Sim’, ela respondeu sem nenhum traço de dúvida. ‘Por a Bíblia dizer assim.’”

Seguindo as ordens das FARC, Vó Laura, uma camponesa idosa mirrada, nos recebeu em sua casa. Ela era curvada e frágil, e andava vagarosamente. Quando falava, sua voz se quebrava tanto que parecia que ia desaparecer nas palavras seguintes. Ela compartilhava a casa com seu marido, Cruz, e com o filho, a filha, a nora e os três netos. Enquanto conversávamos, as crianças corriam uma atrás da outra pela casa com fuzis de brinquedo de madeira. As crianças não iam frequentar a escola naquele ano porque, como a mãe explicou, a escola mais próxima estava sem professores. A família não tinha como pagar para mandar as crianças até a outra escola mais próxima – um internato da Igreja Católica –, então, os netos iam ajudar a avó com o trabalho na hacienda e, no tempo livre, brincar de guerrilheiros.

Laura estava doente. Ela tinha diabetes e sofria de tontura crônica e náuseas, porém não tinha acesso regular a um médico. Viajar para o hospital em San Vicente de Caguán custaria cerca de US$ 100, metade da renda mensal dela. Em vez disso, Laura conseguia seus remédios de um ônibus que parava em sua casa a cada duas semanas. Às vezes, ela deixava o ônibus passar porque não tinha dinheiro suficiente para pagar os remédios.

Como a maioria dos agricultores da região, Laura e sua família vivem sob o comando das FARC e seguem suas leis. “É melhor assim – quem mata ou rouba tem de responder [às FARC]”, me contou outro agricultor. “Claro, temos de pagar imposto a eles. A cada venda, cada cabeça de gado tem seu preço”, ele explicou. No resto do país, juntas locais compostas por civis lidam com os problemas cotidianos das comunidades: habitação, serviços públicos, fazer exigências aos oficias locais. Os impostos tornaram a vida mais difícil para os camponeses pobres, embora aqueles com quem falei acreditassem que as leis das FARC eram mais justas que as do governo federal. Civis comandam as reuniões comunitárias, me disseram os locais, dando às pessoas a oportunidade de participar do governo – mas todo mundo na região sabe que a guerrilha tem a última palavra.

Chepe, um homem grande e tímido, estava na companhia de 30 guerrilheiros quando o encontramos para uma entrevista. Estávamos num acampamento das FARC construído temporariamente com troncos e grandes folhas verdes, a alguns quilômetros da casa de Vó Laura. Mesmo falando calmamente, consegui perceber pelo sotaque que ele tinha vindo de uma família rica de Bogotá. Chepe nasceu na selva de Caquetá, mas foi criado na capital colombiana desde bebê. Ele frequentou a escola primária Colegio Claretiano e depois o Colegio San Viator, de classe média-alta. Ele se chamava Jorge Suárez então, compartilhando um sobrenome com o comandante das FARC Víctor Julio Suárez Rojas – seu pai. O Suárez pai morreu em 22 de setembro de 2010, depois que sete toneladas de explosivos do governo caíram sobre seu acampamento.

“Meus camaradas queriam que eu estudasse na cidade e depois voltasse para ajudá-los com a revolução”, ele me revelou. “Quando eu estava na nona séria, o governo começou a fazer pressão e os paramilitares queriam dar um sumiço na gente. Assim, estudei até a nona série e voltei para cá com o meu pai. Passei onze anos com ele.

“Penso no que aconteceu com meus amigos da época”, ele frisou. “O que eles iriam pensar se soubessem que estou aqui? Agora, eles provavelmente são médicos, políticos, engenheiros. Não tive a chance de frequentar uma universidade, porém estudei a revolução.”

Seu pai era um homem famoso – ou, mais exatamente, um homem infame. Também conhecido como Mono Jojoy e Jorge Briceño, ele comandava o bloco do leste das FARC que sequestrou dezenas de pessoas nos anos 90 e começo dos 2000. Por mais de uma década, sequestrar pessoas ricas foi uma das principais fontes de renda das FARC. Muitas pessoas morreram nos cativeiros durante aqueles anos. O que aconteceria se algum colega de escola de Chepe acabasse sequestrado?

Chepe falou que sempre soube que, na escola, estava estudando seus colegas – “meus inimigos, os filhos da burguesia”. Ele sabia que precisava lutar pelo “bem comum. Os ideais deles não eram uma influência para nós”, ele disse. “Nós já éramos formados como indivíduos.”

Na frente de Chepe, sentados em cadeiras de praia, os guerrilheiros ouviam seu comandante. Chepe abriu seu laptop e começou a reunião que todas as unidades da guerrilha fazem no começo de cada dia. Eles cantaram “A Internacional” (uma música revolucionária clássica quase tão antiga quanto Karl Marx), e depois Chepe leu “Al Filo de la Navaja”, uma coluna de opinião escrita em Havana pelo comandante Carlos Antonio Lozada. O texto comentava sobre os seis meses anteriores, um período em que a guerrilha declarou um cessar-fogo que foi quebrado quando uma patrulha militar entrou no território deles. Para Lozada, um membro da delegação das FARC em Havana, era importante que o Exército Nacional reduzisse a intensidade dos ataques para fazer do cessar-fogo mais que apenas palavras.

Depois de ler a coluna, os guerrilheiros se levantaram e cantaram uma música em homenagem a Manuel Marulanda Vélez, um dos homens que fundou as FARC em 1964 com um grupo de camponeses comunistas:

Canto para Manuel, aquele velho amigo.
Manuel, que um dia teve a coragem de ousar sonhar.
Manuel, que as más-línguas dizem ser um bandido
E quem eles costumavam comparar ao diabo.
Todo o amor que existe nesse ser vai florescer.
Como Fidel, a história vai te absolver, Manuel.

Depois, oito guerrilheiros levantaram a mão para comentar sobre a coluna de Havana. Cada um expressou a mesma opinião e a mesma visão. Todos culpavam a oligarquia colombiana e o imperialismo americano pelo conflito. Entretanto, todos enfatizaram o quanto confiavam em seus comandantes em Havana e disseram que estavam dispostos a baixar as armas e continuar com a revolução através das eleições. Os discursos variavam apenas em eloquência. Eles pareciam acreditar tão profundamente em suas ideias que quase vibravam com uma intensa epifania.

“É tão bonito”, comentou Luisa Monserrat, uma jovem guerrilheira de Bogotá, enquanto sorria com a embriaguez espiritual de uma crente que fecha os olhos e vê Deus. “É tão bonito possuir a verdade.”

Todos os guerrilheiros são membros do grupo militar (as FARC) e do partido político (Partido Comunista Clandestino Colombiano, ou PC3). Eles sabiam que, assim que se juntassem ao grupo, a revolução se tornaria suas vidas. Segundo os estatutos oficiais das FARC, os que querem se juntar têm de servir por um período indefinido de tempo. Em outras palavras, eles se comprometem a serem revolucionários profissionais até que a revolução triunfe. Deserção é um crime que, às vezes, é punido com execução.

“Das 218 mil pessoas que morreram na guerra entre as FARC e o governo colombiano, aproximadamente 80% eram civis.”

Para reforçar a solidariedade e a identidade coletiva, os guerrilheiros realizam essas reuniões todos os dias. O material de leitura varia dos princípios básicos do leninismo até o Manifesto de Cartagena, de Simón Bolívar, passando por romances clássicos russos e colombianos.

Uma das mulheres na reunião se chamava Antonia Simón Nariño. Ela cresceu em Bogotá, assim como Chepe, e frequentou a Universidade Nacional de Pedagogia. Antonia começou a ler os textos políticos da guerrilha cerca de uma década atrás, ela me contou, e logo depois foi recrutada pelo Movimento Bolivariano: o primeiro passo para qualquer jovem estudante que queira se juntar às FARC. Seu namorado era da milícia. Por três anos, ela mentiu para a família a fim de treinar em acampamentos de Caquetá. Ela disse aos pais que estava dando aulas de catecismo em Sierra Nevada. Um dia, seu pai foi à faculdade para perguntar como iam os instrutores de Sierra Nevada e descobriu as mentiras da filha. Ela nunca teve coragem de contar a ele que era uma guerrilheira; em vez disso, falou que tinha se juntado ao Partido Comunista, que, como o PC3, é uma organização ilegal, porém não subversiva, da Colômbia. Pouco tempo depois, ela foi de vez à selva e fez com que seu namorado contasse a verdade para sua família.

Ela terminou sua história triste cantando “Todo Cambia”, de Mercedes Sosa:

Meu amor, não mude,
Não importa quão longe eu esteja.
Nem a memória
Ou a dor do meu povo.

O acampamento não parecia exatamente uma zona de guerra. Durante nosso tempo lá, os guerrilheiros passavam o dia assistindo a séries americanas e clipes da Katy Perry no MacBook de Chepe. Alguns cavavam trincheiras, outros preparavam a cancharina, uma massa frita feita de farinha de milho.

As FARC vêm lutando esse conflito há mais de 50 anos. Primeiro, essa era uma luta entre os camponeses comunistas e a elite rica apoiada pelos americanos. Só que, nos anos 80, as FARC começaram a se envolver com o tráfico de drogas para ajudar a financiar a guerra, e o aumento do narcotráfico fez com que surgissem novos grupos paramilitares que lutavam contra a guerrilha pelo controle dos territórios de produção de droga. A luta se intensificou nos anos 90, e as táticas de todos os lados atingiram novos níveis de violência: as FARC sequestravam e plantavam bombas que matavam civis, os paramilitares perpetravam massacres em centenas de vilarejos e o Exército Nacional assassinava milhares de jovens colombianos inocentes, dizendo que eles eram “positivos”, um termo do exército para guerrilheiros mortos em combate, para parecer que estavam vencendo a luta contra as FARC.

Os fatos e números são chocantes. Segundo o Centro Nacional de Memória Histórica, quase 80% das 218 mil mortes resultantes da guerra civil foram de não combatentes. A ONU calcula que, na década passada, 4.716 assassinatos de inocentes “falsos positivos” foram cometidos pelo exército, enquanto a usina de ideias Cifras y Conceptos estima que a guerrilha tenha sequestrado 9.447 pessoas. Os paramilitares foram desmobilizados entre 2004 e 2005, sob a presidência de Álvaro Uribe; além disso, apesar de muitos terem se reagrupado e formado gangues para traficar drogas, seu papel diminuiu no país.

No entanto, a 10 quilômetros do acampamento, o conflito continuava fervendo. Lá, num grande vale, unidades das FARC estavam mobilizadas para impedir o avanço do exército, que tinha pousado nas proximidades, o que muitos guerrilheiros consideraram uma provocação.

“‘No momento, nem consigo imaginar o processo de abandonar a luta armada’, disse Chepe.”

Chepe nos deixou andar pelo acampamento. Vimos as tropas de guerrilheiros se exercitando com os fuzis pendurados no ombro. Ao meio-dia, almoçamos; depois, tomamos banho no rio, onde os guerrilheiros ficaram apenas de roupa de baixo, olhando só para os próprios corpos. Muitos descansaram com suas “companhias de cama”, ou amantes, nas cabanas construídas com toras e folhas (40% das FARC são mulheres, e muitos guerrilheiros têm parceiros românticos).

“A selva é nosso lar”, resumiu Jineth, uma mulher de 26 anos segurando um caderno improvisado onde escrevia reflexões marxistas e poemas para os fundadores das FARC com letra de criança. Quando tinha nove anos, Jineth viu um homem matar a mãe na frente de sua loja na cidade de Villavicencio. “Me mandaram para o terapeuta”, ela lembrou.

Jineth foi criada pelo tio. Quando cresceu e descobriu que o primo era um guerrilheiro, ela perguntou a ele se podia se juntar à causa. E ele disse sim.

“Aonde você iria se a guerra terminasse hoje?”, perguntei a ela. “Nossa casa está amarrada nas nossas costas”, ela respondeu, se referindo à mochila de 40 quilos que ela carregava desde que se havia se juntado à guerrilha dez anos antes.

O que aconteceria na região se um tratado de paz fosse assinado? O que aconteceria com os agricultores, com as milícias locais, com os guerrilheiros? Jineth, Antonia, Chepe e Luisa disseram que dedicariam a vida ao partido político, que a causa nunca estaria acabada, que eles buscariam a revolução por outros meios. Chepe e Jineth queriam estudar; Antonia, por sua vez, falou que gostaria de ensinar. Todos pareciam cansados da guerra, mesmo não conhecendo outra vida.

“No momento, nem consigo imaginar o processo de abandonar a luta armada”, destacou Chepe. “Em áreas assim, pessoas normais nos procuram para contar seus problemas, como uma vaca roubada ou uma briga entre vizinhos. Somos um partido armado. Quando deixarmos as armas, continuaremos a ser um partido e vamos continuar nossa luta política.”

“E como você evitaria um novo massacre do seu povo?”, perguntei. “Como você evitaria o retorno dos traficantes e dos paramilitares?”

“Tudo depende do governo”, ele apontou. “Eles precisam ter alguma garantia de que o acordo [de paz] vai ser seguido. É por isso que muitos países precisam estar envolvidos nisso.”

Às cinco horas da tarde do nosso último dia em território das FARC, estávamos prestes a voltar para a casa de Laura quando um dos nossos fixers me abordou. “Vocês precisam ir agora”, ele ordenou. “Vocês fizeram as perguntas erradas.”

Alguém tinha dito ao comandante que eu estava perguntando aos guerrilheiros e civis se eles estavam escondendo pessoas sequestradas em suas casas. Ele deu a ordem de que deveríamos ir embora naquela noite. Era só um mal-entendido. Mais um mal-entendido numa série de cinco décadas de mal-entendidos.

Meu suposto crime tinha ocorrido dois dias antes enquanto conversávamos com Laura e sua família na mesa de jantar. A noite já tinha caído, e estávamos sentados perto de uma janela de onde podíamos ver as estrelas. Uma vela iluminava nossos rostos e projetava sombras nas paredes de madeira. Ela me contou que tinha sido uma guerrilheira. Ela não falou muita coisa, mas aproveitei a chance para perguntar a ela a mesma coisa que tinha perguntado para Chepe.

“Você já teve de cuidar de uma pessoa sequestrada? Imagino que eles eram mantidos nas fazendas, em casas como essa.”

“Não, nunca”, ela respondeu.

A conversa voltou para Laura e seus filhos, e eu não abordei o assunto de novo. Laura me falou sobre sua saúde, sobre uma erva que ajudava com a tontura, sobre sua infância em Tolima, sobre sua vida em família em Huila. Ainda estávamos conversando quando fomos interrompidos.

“Olha, eles ligaram a câmera de novo”, disse o filho de Laura, um agricultor como o pai, apontando para uma luz distante brilhando lá fora no céu negro. Parecia um satélite ou uma torre de celular.

Do nada, a luz desapareceu.

“Uma câmera?”, perguntei.

“Sim, é o exército. Eles estão nos observando”, ele respondeu.

“Claro que estão nos observando”, Laura falou com sua voz fraca. “O exército veio até nossa casa uma vez. Um dos soldados, achando que não estávamos vendo, escondeu um aparelho em cima da porta. Alguns dias depois, ele voltou discretamente e levou aquilo embora.”

Era uma noite quente. Laura divagava de história para história. Aí perguntei se ela achava que a paz era possível na Colômbia.

“Sim”, ela respondeu, sem nenhum traço de dúvida.

“Como você tem tanta certeza?”

“Porque a Bíblia diz. Ela diz claramente que o comunismo vai chegar ao nosso mundo, mesmo que seja só por um dia.”

Laura se levantou na escuridão e foi buscar sua Bíblia com uma vela na mão. De pé ali, pequena e trêmula, ela apontou para a passagem em Apocalipse 18-19 sobre a queda da Babilônia.

Dois meses depois, muito depois de termos deixado Laura, Chepe e os outros, dirigindo para longe de Llanos del Yarí no meio da noite, as FARC já tinham violado o próprio cessar-fogo seis vezes. O exército os atacou mais 76 vezes. Um guerrilheiro da coluna Daniel Aldana, que opera na costa do Pacífico, assassinou o político afro-colombiano Genaro García, um homem pacífico cujo único crime era se opor ao comando das FARC em sua comunidade pobre.

Até agora, o cessar-fogo continua, assim como a guerra.

Tradução do inglês por Marina Schnoor.

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