O primeiro retrato fotográfico feito foi um autorretrato: um daguerreótipo tirado em 1839 por Robert Cornelius, que teve que ficar parado por mais de um minuto enquanto a exposição queimava lentamente. Com a cultura e a tecnologia evoluindo, naturalmente as práticas de fotografar a si próprio também evoluíram. Desde então, incontáveis fotógrafos, de Claude Cahun a Paul Mpagi Sepuya e Talia Chetrit, já usaram o gênero como exercício conceitual e expressão de suas identidades, além de discutir uma variedade de questões culturais e políticas.
Aí veio a selfie, a Palavra do Ano do Dicionário Oxford de 2013, que é igualmente elogiada como exclamação de empoderamento cultural e odiada como um exercício vazio de vaidade. E isso já gerou debates sobre o futuro do autorretrato – uma questão similar a “a pintura está morta?”, “a câmera Brownie matou a fotografia para os mestres?” ou “O Instagram matou a fotografia?” – a que alguns podem muito bem responder: “Sim, e daí?”
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Enquanto é inegável que as selfies alteraram para sempre a cultura contemporânea, elas são uma peça de um quebra-cabeça fotográfico histórico e tecnológico. Selfie ou não, o autorretrato continua a evoluir. Alguns, como Tim Davis, fazem referência direta ao absurdo do assunto selfie. Outros, como Angela Cappetta, vêm fazendo fotografias que lembram a estética das selfies antes mesmo das selfies se popularizarem. Outros ainda, como Rafael Soldi, Tommy Kha, Stacey Tyrell, Pixy Liao e D’Angelo Lovell Williams, usam o autorretrato para examinar gênero, sexualidade e/ou experiências de se sentir como um outsider.
Tommy Kha
Por meio de autorretratos performáticos, fotos de recortes do Elvis, retratos com a mãe, lembrancinhas de Memphis e até vídeo, Tommy Khan usa humor para reconciliar seu senso de deslocamento como um homem gay descendente de vietnamitas que cresceu no Sul homogêneo e racista dos EUA.
“Não me vendo representado enquanto crescia no Sul”, diz Kha, “tento ecoar essa ausência no meu trabalho”. Kha começou a fazer autorretratos quando se mudou para Nova York em 2010, já que seus temas regulares não estavam mais disponíveis para posar para ele. Esses primeiros trabalhos – que Kha continua até hoje – são parte de uma série chamada Return to Sender, onde Kha fica em pé, quase como um dublê digital, enquanto diferentes pessoas o beijam e abraçam.
O desconforto e identidade camaleônica de Kha tomam formas diferentes em várias séries – um quebra-cabeça com apenas um terço do rosto dele montado, uma pilha de xerox dele do tamanho de sua altura, recortes de tamanho real colocados em paisagens sulistas. “Meu eu fotográfico está constantemente mudando de forma”, diz Kha, “o que acho mais apropriado para nossas identidades complexas”.
Ramificando para o vídeo, em Awkward Film Series (em colaboração com Jonathan Myers), Tommy se insere de maneira constrangida em filmes populares. Em uma das vinhetas mais hilárias, Kha combinou filmagens do Leonardo DiCaprio em Titanic desenhando Kate Winslett, mas substituiu a personagem dela por uma filmagem nua dele como a musa de DiCaprio.
O talento de Kha para abordar questões sérias com ironia divertida e leve é afiada e nova, e fornece pontos de acesso de maior alcance, muitas vezes difíceis de conseguir numa cultura cada vez mais controversa. “Há uma sensação de liberdade no vídeo”, fala. “Ele dá espaço ao meu corpo fotográfico para brincar, apesar de que o fato de replicar [esse olhar lúdico] no meu trabalho com fotos ainda não esteja estabelecido.”
D’Angelo Lovell Williams
D’Angelo Lovell Williams faz autorretratos que, como Tommy Kha, respondem ao seu sentimento de ausência na cultura popular e história visual. Ele vem se fotografando desde o colegial – fotos manipuladas selvagens e com referências a Avatar dele e de amigos – mas seu envolvimento formal com o gênero começou alguns anos atrás, quando ele estava trabalhando em seu mestrado de belas artes na Universidade de Syracuse.
“Minhas imagens são muito mais narrativas visuais que autobiografias”, diz Williams. Enquanto “biográfico” pode implicar um conjunto claro de fatos pessoais, o trabalho de Williams comunica uma história pessoal que é um pouco borrada e mais difícil de definir. As fotos dele, às vezes sozinho, às vezes com outros homens, são formais e diretas, e encorajam uma abordagem mais lenta de olhar e ser visto. Muitas das fotos dele usam o corpo como uma ferramenta escultural de autorreflexão.
Em uma imagem, A Day Apart, 2018, o colaborador Clifford Prince King está fumando um cigarro com um olhar impassível, usando um vestido branco que esconde Williams ajoelhado nu na frente dele. Uma iluminação quente de anoitecer destaca a amalgamação misteriosa da dupla, enquanto o protagonista encara qualquer um que ouse olhar, dominando sua visão.
Em outra imagem, Hieroglyph 1, 2018, Williams e outro homem estão de costas um para o outro, nus num gramado, de mãos dadas, com as bundas se tocando. Como em A Day Apart, enquanto o relacionamento deles é ambíguo, a atitude, pose e direção, quase um olhar desafiador para a câmera, sugerem um senso de reclamação e agência pessoal. Para Williams, essas fotografias visam amplificar “quem não será visto, não tem uma voz, não tem recursos ou vive uma vida que muitos negros e pessoas não-brancas não podem viver abertamente”.
Fazer autorretratos com homens expande a narrativa para além da dele. “Tem certas imagens que posso fazer sozinho”, diz Williams, “mas tem certas ideias que envolvem outras pessoas que não posso fazer sozinho, ou posso não querer estar nelas”.
Tim Davis
Enquanto tirava um ano sabático com a família na Indonésia, Tim Davis começou South Seas Selfies, um desvio de seu trabalho com fotografia documental mais formal e sério da paisagem americana. Nessas fotos, Davis recria selfies de férias – imagens bregas que você veria numa apresentação de slides, com referências autoconscientes de como ocidentais se comportam (às vezes de maneira desrespeitosa) quando estão de férias em países em desenvolvimento.
“Fico horrorizado em ver quão centrada em nós mesmos a fotografia se tornou”, diz Davis. “Dito isso, a câmera é como um golden retriever e o mundo é uma bolinha de tênis, significando que é uma ferramenta acrítica sem nossa orientação, e num ambiente desesperadoramente estrangeiro, acho difícil dizer muito sobre o mundo ao meu redor.”
Desconfortável em fazer fotos de uma cultura que não conhecia, ele voltou a câmera para si mesmo. Em uma foto, a cabeça de Davis aparece na base do enquadramento, iluminada por um nascer do sol numa praia que reflete na câmera dele, iluminando seu olho. Em outra, a mão dele segura uma foto de sua família posando para a câmera. É o tipo de foto que alguém pede a um estranho numa terra estranha para tirar de novo e de novo – Davis e a esposa sorrindo enquanto o filho deles olha para o lado, perdendo a deixa de “sorria!”
Em outra, o olho de Davis espia através de um buraco numa folha de lótus – parecendo quase superposto. “Faço o trabalho se tornar um jeito de navegar nesses novos espaços”, ele comenta, “sempre reconhecendo minha presença e papel como um turista idiota”.
Stacey Tyrell
Os autorretratos de Stacey Tyrell respondem à sua identidade como uma canadense afro-caribenha com raízes europeias. Em sua série Backra Bluid, que tira seu nome de um híbrido de gírias afro-caribenhas – backra, significando “mestre branco”, e bluid, a palavra escocesa para “blood” – a artista se veste como vários arquétipos femininos e clareia a pele para parecer branca.
Ela batiza as imagens com idades e nomes inventados que parecem ligados a quem pensamos que cada mulher seria. Ertha, 44 Years, por exemplo, usa um casaco de pele de luxo e brincos de aparência cara. Ela é uma personagem que você pode ter visto num programa de TV como LA Law, uma novela do meio dos anos 90 ou uma fotografia de Tina Barney. Rica, extravagante, mas um pouco fora do lugar. Ou Bonnie, 35 yrs. And Twins Lara & Maisie, 9yrs – uma mãe e gêmeas vestindo uniforme de escola particular e fotografadas na frente de um fundo genérico – ou Ailis, 21yrs. (2012), que posa com sua raquete de tênis e outros sinais de riqueza em frente a uma parede de madeira.
As mulheres em cada uma dessas fotos confrontam o espectador com olhares frios e impassíveis; exagerados por ferramentas digitais para clarear sua pele, elas parecem conscientes e quase sci-fi. Tyrell não está tentando enganar o espectador, mas criar um senso de questionamento e desconforto. Com cada mulher com um tom de pele quase identicamente claro, suas características não-europeias variam. Talvez elas estejam “se passando” por brancas, inspirando uma camada adicional de questionamento no espectador.
Esse trabalho reflete a experiência de Tyrell crescendo em escolas predominantemente brancas, e recebendo olhares tortos e duvidosos quando mencionava suas raízes europeias. Backra Bluid não era apenas uma oportunidade de confrontar um olhar racista, mas imaginar como seus parentes brancos poderiam parecer, além da percepção dela da identidade branca. “Isso me permite me afastar um passo de mim mesma por um tempo”, diz Tyrell, “usando uma fantasia e experimentando um olhar que nunca recebi na vida real”.
Em uma de suas últimas fotos – publicada pela primeira vez aqui na VICE – Tyrell apresenta duas versões fotoshopadas dela. Em uma, ela está vestida no estilo georgiano dos anos 1700, a pele muito branca, com um penteado elaborado popular entre a aristocracia da época. Na outra Tyrell posa como uma mulher negra segurando um mamão, uma alusão vaga à gíria caribenha para vagina. “Estou tentando transmitir o jeito como a feminilidade branca e negra são interligadas e codependentes uma da outra no contexto histórico e colonial”, pontua. Por todo o trabalho de Tyrell, o autorretrato é uma ferramenta para entender ideias maiores e verdades universais em potencial sobre a construção da identidade, história ocidental e “dar corpo a ideias sem ninguém estar olhando”.
Rafael Soldi
Rafael Soldi odeia fotografar a si mesmo. Quando perguntei se isso o ajudava a descobrir coisas sobre sua identidade, ele respondeu: “Isso me obriga a encarar questões que geralmente tenho medo de fazer pra mim mesmo”. Quer ele esteja fisicamente presente em suas fotografias ou não, não é difícil considerar sua prática artística como um amplo autorretrato.
Em sua série Life Stand Still Here, que começou vários anos atrás como uma resposta a um rompimento romântico devastador, ele passou para uma reflexão mais ambiciosa e sombria de desconforto pessoal e cultural. Isso varia de fotos monocromáticas quase pretas de água a uma instalação de quatro metros com 50 retratos quase idênticos de cabines de fotografia. A série é uma metáfora para luto e perda, seja mais literal – o fim de seu romance – ou algo mais cheio de nuances – a perda em potencial de sua cultura como um imigrante nascido no Peru que viveu nos EUA por mais de 15 anos.
Para Soldi, os retratos 3×4, todos feitas com os olhos fechados, colocam uma questão: “como ficamos de luto por uma vida que ficou para trás para viver esta vida?” O corpo dele serve como um substituto espiritual de outros imigrantes perdendo suas histórias, que ele descreve como “futuros imaginados”, meditando sobre o que pode ter sobrado. “As cabines de fotos”, conta, “agem como um aparato que contém todo meu corpo, um pequeno palco para uma performance monumental privada e pública ao mesmo tempo, capturada uma vez, única do seu tipo”.
Pixy Liao
Quando era mais nova, a noção de Pixy Liao do amor era estar com alguém mais velho que ela – um mentor em quem ela pudesse se inspirar, alguém com algum nível de poder sobre ela. Quando ela mudou da China para os EUA para estudar fotografia e começou a sair com alguém cinco anos mais jovem, o entendimento dela dessa dinâmica desmoronou. Em 2007, ela começou Experimental Relationship para responder a isso.
Experimental Relationship retrata Liao e seu parceiro, Moro, posando numa série de gestos engraçados e artificiais. Em uma imagem, Moro massageia os ombros de Liao enquanto os dois olham diretamente para a câmera. Em outra, Liao deita sobre as costas de Moro de um jeito que parece um planking em T, ou outros memes da internet, o usando como um traje descartável. Em outra, Liao, que é bem mais baixa que Moro, o levanta sobre os ombros, como se estivesse prestes a carregá-lo.
As fotos de Liao apresentam uma inversão de papéis, fazendo graça das estruturas de poder através do absurdo, muitas vezes virando clichês da história da arte de cabeça para baixo. Um apertão no mamilo, um dedo indicador de silêncio, uma mulher consolando seu amante – cada um fazendo um comentário bem-humorado das complexidades do relacionamento deles, assim como de estereótipos maiores sobre dinâmicas heterossexuais.
Esses retratos são um jeito de “experimentar” os papéis e comportamentos prescritos para interação romântica. O fio do obturador da câmera muitas vezes está visível, quase sempre sendo segurado por Moro, o que Liao sugere como uma dica de algum poder que ela está devolvendo a ele. “Parece como se eu estivesse mandando um sinal a ele para tirar a foto”, diz Liao. “Acho que é como uma metáfora para o nosso relacionamento. Às vezes, aquele que parece estar no controle na verdade é aquele sendo controlado. Também acho que é importante dar algum controle das fotos a ele.”
Angela Cappetta
Há anos, entre sessões de fotografia comercial e projetos documentais, Angela Cappetta vem se fotografando em movimento, capturando pequenos momentos em transição com a paisagem caótica de Nova York como pano de fundo. Num ônibus, num táxi, lugares onde a luz disponível é conveniente, Cappetta faz autorretratos onde quer que esteja. “Sempre fotografo carros”, diz Cappetta. “Sempre fotografo um interior. E aí sempre me fotografo. Não é muito complicado, é sempre algo disponível para fotografar.”
Muitas das fotos de Cappetta, que até recentemente eram todas em filme, parecem precursoras das selfies. Ela olha para o espectador, a centímetros da lente, confiante, mas ainda incerta de como ela vai aparecer. Apesar dela poder fotografar múltiplas tomadas, não há uma tela para desencadear a resposta “tire outra”. Sempre há um elemento de antecipação ou surpresa, geralmente de outra pessoa compartilhando o olhar de Cappetta de volta para a câmera. Um homem num ônibus, uma mãe e o filho andando atrás dela na rua, um jogo de sorte que pode ser lido de maneira diferente na cultura dos smartphones de hoje.
Em outras fotos, tiradas num espelho ou em outras superfícies reflexivas, a câmera de Cappetta é visível, na frente e no centro. Mas essas fotos são diferente daquela postura de foto de perfil que agora nos acostumamos a esperar – em vez disso, elas se encaixam num diário maior dos momentos em movimento de Cappetta. Pausas no caminho daqui para ali.
E ainda assim, outras imagens ligeiramente mais formais mostram Cappetta em espaços muito pessoais – seu apartamento, na cama, num sofá, todos espaços que são dela, às vezes olhando direto para a lente, às vezes perdida em pensamentos. Independente do ambiente e para onde ela dirige seu olhar, os autorretratos que Cappetta continua fazendo hoje capturam um senso de confiança e posse própria – ela está no controle de sua aparência, seja glamourosa, passageira ou algo no meio disso.
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