Este artigo foi originalmente publicado no JORNAL DE LEIRIA e a sua partilha resulta de uma parceria com a VICE Portugal.
David Fonseca regressa hoje, 4 de Outubro, à casa de partida, Leiria, para o concerto do álbum Radio Gemini, o sétimo de originais na carreira a solo do músico que ama a fotografia e se imaginava realizador de cinema. O estrelato chegou há precisamente 20 anos, com a enorme popularidade do primeiro longa duração dos Silence 4, que incluía a famosa versão de “A Little Respect”, dos britânicos Erasure. Uma ascensão meteórica.
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Graças a esta e a outras canções, com arranjos simples, mas a transbordar de intensidade, carisma e melodias gulosas, Silence Becomes It vendeu 240 mil cópias, ou seja, o equivalente a seis discos de platina. Está na lista dos mais vendidos de sempre em Portugal, com as receitas a atingirem valores na ordem dos sete dígitos. Um feito sem precedentes para uma banda da província a orbitar fora dos círculos artísticos de Lisboa ou do Porto.
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Se a PolyGram (hoje Universal) ganhou muito dinheiro com a estreia dos Silence 4, um autêntico jackpot com investimento mínimo, os músicos não: 12 por cento do preço ao público de cada exemplar, a dividir pelos quatro, fora as royalties. Contas de uma história que a indústria rejeitou vezes sem conta.
Num tempo de poder quase absoluto concentrado nas maiores editoras, a própria PolyGram disse não, antes de dizer sim. “Apresentei a maquete e bati às portas literalmente de todas as editoras em Portugal. Uma banda que recebeu tantos nãos, depois vender 240 mil discos… Acho que se arrependeram imenso, mas ninguém podia saber, nem eu”, afirma David Fonseca, que fala de “um fenómeno absurdo” e “gigantesco”, que “hoje é impossível”, pela natureza fragmentada da Internet, a principal plataforma de consumo de música.
Uma sugestão estranha
Lançado em 1998, com 15 temas, incluindo a faixa escondida, Silence Becomes It acaba por surfar o tsunami provocado pela cover de “A Little Respect”, que aparece na colectânea Sons de Todas as Cores, ao lado de nomes como Pedro Abrunhosa, Delfins ou Xutos & Pontapés. Perante tantos consagrados, David Fonseca propõe a canção dos Erasure num dos encontros com Rui Costa, Tozé Pedrosa e Sofia Lisboa.
“Uma sugestão muito estranha”, diz o cantor e compositor, mas fulminante. “Resolvemos fazer a versão, porque pareceu-me que era a maneira de chamar mais a atenção”. E foi: a Antena 3 adopta “A Little Respect” como single da colectânea, Portugal acorda para um novo êxito das rádios e o elevador da fama abre-se para o colectivo que ensaiava na Reixida, em instalações da Movicortes, onde aconteceu também o primeiro concerto de sempre, partilhadas com os artistas plásticos Nuno Sousa Vieira, Rita Gaspar e João dos Santos, entre outros.
Nas negociações com a Polygram, regressa a exigência que já tinha impedido os Silence 4 de assinarem com uma multinacional, apesar da vitória no festival Termómetro Unplugged: cantar em português. “Recusei totalmente essa ideia, porque a banda tinha uma identidade muito própria e não seria a mesma se tivesse de fazer uma coisa radicalmente diferente daquilo que estava a fazer”, explica David Fonseca. Em terreno virgem, sem histórico no mercado de projectos portugueses com letras em inglês e sucesso comercial, inicia-se um braço de ferro que termina com a solução possível: duas canções em português, uma delas “Eu Não Sei Dizer”, com o quarteto de Leiria a exigir a colaboração de Sérgio Godinho como letrista, o que sucede na faixa 8, “Sextos Sentidos”, em que empresta a veia lírica e a voz ao original do baixista Rui Costa.
Sestas, cartas e demónios
Chegam ao estúdio Kasbah com meia centena de canções. Uma das favoritas do baterista, que metia folgas no trabalho para se apresentar no Porto, fica de fora da selecção final: chamava-se, justamente, “Silence Becomes It”. Mas, estão lá outras: “Old Letters” e “Dying Young”, por exemplo. As gravações com o produtor Mário Barreiros decorrem num ambiente “muito positivo, alegre e aberto”, recorda Tozé Pedrosa. Dias “muito intensos”, encarados “com seriedade” pelos músicos, que sentiam estar a viver “um momento muito importante”.
O convite a Mário Barreiros foi ideia do baixista Rui Costa, que não esteve disponível para falar ao JORNAL DE LEIRIA em tempo útil. No Porto, os Silence 4 partilharam um apartamento durante as gravações. Sofia Lisboa lembra que David Fonseca dormia pouco, mas compensava as horas devidas à cama com sestas durante as pausas no estúdio. Ela era “a única miúda”, logo “super-mimada”.
Quando Silence Becomes It chega às lojas e a correspondência dos fãs começa a cair em avalanche, a faixa escondida do álbum – “Sex Freak”, sobre alguém que afoga as mágoas do amor no vício do sexo – ganha um protagonismo inesperado: “Lembro-me de recebermos uma carta, a dizer que éramos discípulos do diabo, porque aquela faixa escondida era no fundo um chamamento ao demónio”, conta a vocalista. “Sex Freak” era tocada nos concertos como improvisação em cima de três acordes, mas acaba por entrar no alinhamento do LP para agradar ao responsável máximo da PolyGram em Portugal, que deu luz verde ao contrato com os Silence 4 depois de os ver ao vivo na discoteca Stressless, no Pedrógão.
Hinos de uma geração
Com Silence Becomes It, os Silence 4 provaram que “A Little Respect” não era um acaso. Originais como Borrow e My Friends tornaram-se hinos de uma geração e nada mais foi igual. “Nunca me passou pela cabeça. Na melhor das hipóteses, eu queria que a banda fosse ouvida fora de Leiria e que estivesse numa espécie de circuito alternativo”, assegura David Fonseca. E acrescenta: “Mas, eu era muito determinado numa coisa: achava que não fazia sentido nenhum que as bandas todas de Portugal viessem exclusivamente de Lisboa ou do Porto”.
Gravações no Castelo, a cassete amarela e o início do culto em Leiria
É o início do culto à volta dos Silence 4: a quase mítica cassete amarela, primeira maqueta, registada no Castelo de Leiria, numa das salas do Paço Real. Vinha no interior de uma caixa quadrada em cartão cru, com oito temas, incluindo três que depois constam no primeiro longa duração: “Borrow”, “Goodbye Tomorrow” e “Breeders”. Gravar no Castelo: ideia do baixista Rui Costa, alegadamente inspirada num sonho.
Os Silence 4 colocaram 200 unidades em circulação, uma parte para venda em loja e por correspondência, outra parte para promoção junto das rádios, editoras e demais agentes da indústria da música. A cassete amarela vendia-se por exemplo na discoteca Alquimia, em Leiria. Carlos Matos, hoje presidente da Fade In, estava atrás do balcão e lembra-se bem da “procura extraordinária” pelo registo inaugural dos Silence 4.
“Aquele movimento, ainda que de nicho, revelava uma banda que tinha potencial para extrapolar o circuito da música alternativa e chegar ao mainstream”. Ou seja, “era uma banda que tinha substância, canções com boas letras, bons arranjos e refrões muito fortes”. Daí o comentário em tom de brincadeira: “Costumo dizer que alguns refrões agarravam-se ao cérebro como os caramelos aos dentes”.
Além da “qualidade das composições”, Carlos Matos identifica um segundo factor decisivo: “Havia uma espécie de preconceito, a música feita em Portugal tinha de ser cantada em português e os Silence 4 quebraram essa regra”, cantando em inglês. “Isso abriu um novo paradigma”, admite. Além da cassete amarela, os Silence 4 gravaram uma segunda maqueta, mais tarde, nas antigas instalações do antigo FAOJ (Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis), em Leiria, com o produtor Nanã Sousa Dias, somente para promoção junto das editoras.
A primeira digressão, “uma energia demolidora” e “miúdas a desmaiar”
Os Silence 4 formaram-se oficialmente em 1995. Tudo começa com David Fonseca, que se junta ao baterista Tozé Pedrosa. Mais tarde vieram o baixista Rui Costa e a vocalista Sofia Lisboa. Ensaiavam na Reixida, em instalações emprestadas pela Movicortes, onde deram o primeiro concerto. O segundo aconteceu no Orfeão Velho, no centro histórico de Leiria. Já depois de gravarem a primeira maqueta, a cassete amarela, ganham o festival Termómetro Unplugged, em 1996, no Porto, o que lhes vale a primeira entrevista a um meio nacional: o Blitz. Em 1997, o vento começa verdadeiramente a soprar a favor da banda de Leiria, graças à participação na colectânea Sons de Todas as Cores, com o tema “A Little Respect”. É o início do caminho para o primeiro contrato – com a Polygram, actualmente Universal – e para o primeiro longa duração: Silence Becomes It, editado em 1998.
Em toda a história dos Silence 4, há uma espécie de quinto elemento: Paulo Mouta Pereira, o homem dos teclados, que ainda hoje acompanha David Fonseca. Juntou-se aos Silence 4 pela primeira vez como técnico de som e rapidamente percebeu que algo diferente estava para acontecer. “Era arrepiante, cativante”. Ainda em 1998, estreia-se no palco, no concerto do Pavilhão Atlântico. Seguiram-se dezenas e dezenas de espectáculos ao vivo, com um misto de euforia e histeria, da parte dos fãs. Há aquele dia nos Açores em que só uma escolta policial lhes permitiu sair do palco – e outro momento insólito, quando o público de um festival deixou o recinto do concerto praticamente vazio durante a actuação de outra banda para ir ver a chegada da carrinha dos Silence 4 aos bastidores. Paulo Mouta Pereira recorda o impacto ao vivo da faixa escondida do primeiro álbum, “Sex Freak”: “Uma energia demolidora, chegou a demorar 20 e tal minutos em alguns concertos”.
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Também o artista plástico João dos Santos, actual director da Escola Superior de Artes e Design de Caldas da Rainha, tem memórias desses tempos em que pareciam caber mais de 24 horas num único dia. Mantinha um ateliê nas instalações da Reixida, chegou a assistir a ensaios dos Silence 4 “à luz de velas”, pintou o cenário do concerto no Paradise Garage (em Lisboa) e somou milhares de quilómetros a transportar o material da banda para os concertos. Na estrada, testemunhou de perto a idolatria que os Silence 4 suscitavam. “Havia miúdas a desmaiar porque o David lhes dava uma palheta. Aconteceu à minha frente. Uma miúda caiu para o lado quando ele lhe deu uma palheta”. João dos Santos nota que “a qualidade da música e o facto de conseguirem criar um universo próprio” foi determinante para o sucesso da banda. Tal como a visão de David Fonseca: “Sabia o que queria”, como actualmente “sabe marcar o rumo e criar estratégias”, aponta.
A mesma opinião tem Rui Ramusga, que editava o suplemento cultural do JORNAL DE LEIRIA, quando os Silence 4 emergem. David Fonseca “tinha uma noção exacta do que queria e como queria, era muito diferente da bandalheira intelectual da altura”, argumenta. E salienta: “Quando saiu o disco, sei das pressões que o David teve para se lançar a solo, logo no início, quando o álbum rebentou e começou a ter sucesso e ele recusou sempre liminarmente”. Rui Ramusga fala da evolução enquanto músico, da criatividade e do talento renascentista para se expressar em diferentes disciplinas artísticas. “O David sempre foi muito dirigido naquilo que queria, organizado, metódico, convicto”, ou seja, “tinha as coisas estruturadas”. O lançamento do segundo álbum, Only Pain Is Real, que vendeu menos, mas ainda assim foi dupla platina, acontece em 2000, um ano antes da separação da banda.
Cláudio Garcia é jornalista do JORNAL DE LEIRIA.
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