Este artigo foi originalmente publicado pela VICE Brasil.
O skater profissional [brasileiro] Murilo Romão e a crew de que faz parte acreditam na prática do skate como um movimento de contracultura. Nestes tempos de campeonatos e atletas apoiados por grandes esquemas, eles retomam aquela paixão marginal de antigamente, numa tentativa de quebrarem a mecânica da vida quotidiana nas cidades.
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E fazem-no explorando a multiplicidade do mobiliário urbano, como forma de contestarem uma certa tendência para a redução do skate a um previsível desporto de pistas. Essa perspectiva já dava o tom ao vídeo Flanantes, realizado por Murilo, e ressurge agora em Sob a Aparente Desordem [vê vídeo mais abaixo], que estreámos com exclusividade na VICE Sports Brasil na última segunda-feira, 26 de Setembro.
Se no primeiro título o conceito de “flanar” foi sacado às considerações do jornalista literário brasileiro João do Rio, desta vez o exercício imaginativo apoia-se nas ideias da urbanista Jane Jacobs. Para João do Rio, as ruas são inspiradoras para os espíritos vagabundos e cheios de curiosidade.
Para Jane Jacobs, o uso partilhado das calçadas garante a manutenção e a segurança dos espaços públicos. “Na nossa visão, essa multiplicidade de usos inclui o skate, que pode até ser comparado com a dança, uma dança complexa que Jane chega a chamar de ‘balé da boa calçada’”, argumenta Murilo.
No seu clássico Morte e Vida nas Grandes Cidades,Jane não faz qualquer menção ao skate, até porque a obra data de 1962, mas Murilo vê “muita relação entre a nossa prática e as ideias dela de apropriação das ruas”. E acrescenta: “De há uns tempos para cá, depois de ler bastante sobre arquitectura e urbanismo, comecei a sentir a necessidade de mostrar a minha visão particular do skate, um skate mais social, voltado para a recuperação e ocupação de lugares de ócio, para dar novos usos à cidade e a levantar questões sobre o espaço público. As nossas sessões de skate pela cidade transformam-nos a todo o momento. Essas experiências citadinas levam-nos a reflexões que tentamos colocar nos vídeos”.
Sob a Aparente Desordem demorou cerca de dois meses a ficar pronto. No início, era para ser um vídeo bastante curto, de seis minutos, mas a arte de flanar [andar sem rumo, sem preocupações, de modo ocioso] pelas calçadas de São Paulo inspirou muitas sequências boas ao longo do processo e o produto final acabou por ficar com 15 minutos.
A primeira cena de skate que se descortina é de Luiz Fernando “Apelão”, a sacar um ollie nervoso no Parque Dom Pedro. Além de ter filmado boa parte do vídeo, ele exibe uma facilidade surreal para andar de skate, com uma base subtil e agressiva ao mesmo tempo. A filmagem bastante aberta, que conferiu uma certa poética ao take, foi feita a partir de cima da passadeira que dá acesso ao terminal. “É uma imagem de que gosto bastante, pois retrata bem essa ideia do skate mais performático”, comenta Murilo.
Entre outras partes que se destacam no vídeo, vale a pena prestar atenção ao style fluido de Diego Wanks aka Didi, que aposta em manobras simples, porém efectuadas numa velocidade alucinante. Outro mano que aparece rebentar é Gustavo Dias, o Guguinha. Dono de manobras ignorantemente altas, consegue desbravar picos impensáveis para alguns. Já Leonardo Fagundes é o mais “gazeteiro”. Na primeira tentativa, ele não chega sequer perto do acerto. Logo na seguinte, chega a conclusão perfeita da manobra. “É sempre bom ficar atento ao Leo, pois ele acerta a manobra do nada e é muito fácil errar na filmagem ou até perder algo”.
Fizeram-se também algumas sessões na zona da Cracolândia, um local que, segundo ele, origina sempre situações surpreendentes. “O pessoal pede o skate para dar uma volta e sempre aparecem umas manobras. Uma vez, uma toxicodependente agarrou no meu skate e fez um fakie varial flip perfeito. Não filmei porque eles não curtem muito essa exposição, mas fiquei bastante impressionado e, ao mesmo tempo, triste, pois vi que aquela rapariga já foi uma óptima skater”, diz.
Outra situação curiosa aconteceu durante uma sessão nocturna que tentaram gravar na 7 de Abril. “Foram lá colocados uns bancos novos de madeira. Estávamos a começar a andar e, por volta da meia-noite, vi dois carecas gigantes, um deles com um cabo de aço na mão”, conta. E prossegue: “No momento pensei que eram skinheads e comecei logo a planear a fuga. Um deles percebeu e disse-me para não correr, senão dispararia tiros sobre mim e colocou a mão na cintura para mostrar que estava armado. Ficámos onde estávamos e conversámos com eles. Estavam a vigiar os bancos, tipo seguranças. Achei muito estranha a maneira como chegaram. Depois de conversarmos com, acordámos em andar ali apenas quando o mobiliário estivesse pronto. E, no fim da conversa, um deles, o armado, ainda nos ofereceu os seus serviços. Sinistro”.
Como se vê, a arte de flanar intuitivamente pelas ruas pode proporcionar altas aventuras e possibilidades criativas, mas, também, algumas tragicomédias.