Entrevista publicada originalmente na VICE EUA.
Em 1986, Spike Lee lançou seu primeiro longa Ela Quer Tudo, uma comédia dramática sobre uma mulher negra independente em relacionamentos sexuais com vários homens sem pertencer a nenhum deles. Trinta e um anos depois, Lee transformou o filme numa nova série da Netflix lançada no Dia de Ação de Graças nos EUA.
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Num Fort Greene moderno, Nola Darling (DeWanda Wise) é uma artista do Brooklyn de vinte e poucos anos começando no mundo das artes. Ela lida com três amantes em sua vida: um empresário, um fotógrafo comercial e um mecânico de bicicletas, cada um atendendo a necessidades diferentes.
Enquanto o filme original focava no estilo de vida tabu de Nola nos anos 80, as coisas claramente mudaram desde aquela época, e a série reflete isso. Do #blacklivesmatter, gentrificação de Fort Greene passando por namoro online, a série mergulha no olhar masculino da arte, os efeitos do assédio sexual e um projeto de arte feminista que aborda as políticas do corpo.
Lee e Wise falaram conosco sobre liberação sexual, ética de trabalho e como é filmar uma série da Netflix no Brooklyn.
VICE: Por que trazer Ela Quer Tudo de volta agora?
Spike Lee: Foi ideia da minha esposa [Tonya Lewis Lee]. Ela disse “Spike, você podia fazer uma série desse filme”. E eu disse “É uma ótima ideia. Vamos fazer”. Muitas das questões com que o filme lidava em 1986 não mudaram. Mas também este é um novo mundo em que vivemos, temos a gentrificação. Não havia gentrificação em Fort Greene em 1986 – não existia nem a palavra gentrificação. Agora aquela parte do Brooklyn é totalmente diferente. Foi uma ótima oportunidade de focar no passado, no mundo em que vivemos hoje e no futuro.
Vocês dois são casados e estão em relacionamentos monogâmicos . Mas a personagem de DeWanda Wise é Nola Darling, que é poliamorosa.
Não faço ideia do que a palavra “poliamor” significa. O que é isso? Polly quer biscoito? Do que você está falando? [ Risos.]
DeWanda Wise: Casei muito jovem, é verdade. Nola é mais transparente sobre namorar várias pessoas, que é algo que muita gente faz hoje. Tenho amigos em relacionamentos poliamorosos com compromisso. É uma coisa mais normal. Nunca vi nenhum exemplo de poliamor na TV ou no cinema em 1986 além de Ela Quer Tudo, que retrata isso de um jeito muito real.
O filme foi gravado em Fort Greene antes da gentrificação. É muito diferente filmar lá agora?
Lee: Não é a primeira vez que filmo em Fort Greene, então não foi muito diferente. Mesmo parecendo divertido diante das câmeras, nos tornamos meio que um entrave no Brooklyn. As pessoas podem estacionar o carro aqui, mas são acordadas logo cedo com o barulho das obras e caminhões passando. Depois de um tempo, a mágica acaba e as pessoas querem mesmo é se mudar do bairro.
Wise: Quando Spike Lee está no Brooklyn, ele está em toda sua glória. Ele faz uma chamada de casting e aparece muita gente. Se você vê uma cena de festa na série, é porque o Spike deu uma festa e as pessoas simplesmente apareceram.
Você pode dar um exemplo?
Tem uma cena no episódio quatro onde estou num clube, onde acontece um show de reggae de um artista fictício, Wally Mirk. Quando chegamos para gravar naquele dia, tinha uma fila virando o quarteirão. A energia era real – eu não precisei atuar. É esse o tipo de ambiente que Spike Lee cria para seus atores.
Que questões são tão relevantes hoje quanto eram em 1986?
Lee: Essa é a primeira série que faço para a Netflix. Gentrificação é uma das coisas, mas tem muito mais aí. Deixo o espectador se conectar com o que acontece perto dele – com o que ele se importa, se identifica. Esperamos, Deus que ajude, conseguir uma segunda temporada para explorar mais. As coisas não estão encerradas. Tem uma riqueza de histórias a serem contadas.
Wise: Recebi o roteiro dos dez episódios antes de começar a gravar. Me interessei por várias coisas: questões de corpo e questões do corpo feminino para mulheres negras. As pessoas supõem que você deve ser sempre confiante, forte e não ligar para o que os outros pensam. Além disso, liberação sexual.
Violência sexual também tem um papel na série, certo?
A arte é sempre esse organismo vivo e respirando. É meio surreal, seja considerando a administração Trump ou o que está acontecendo em Hollywood agora.
Que visão juntou vocês dois?
Venho dos filmes indies. Teve muita acaso nisso: pessoas com quem trabalhei numa peça em 2013, alguém da Netflix que viu meu trabalho. Eu e o Spike nos identificamos de cara. Somos dois snobes de eficiência – trabalhe muito, dê duro. Viemos para o set apaixonados por contar a história.
Lee: Depois ir pra casa.
Spike, você acredita em acaso?
Sim, acredito muito nisso. Isso aconteceu muitas vezes na minha vida. Foram bençãos. DeWanda é a Nola. É um papel muito difícil de interpretar. Estávamos quase estourando o prazo para fechar o elenco, e a Netflix estava ficando preocupada em ter que atrasar as datas porque não conseguíamos achar uma atriz. Mas eu sabia que uma pessoa talentosa apareceria antes de começarmos a filmar. Eu acreditava que tínhamos que continuar procurando. Era pra ser – fim da história.
Wise: Sinto que a série é meio que o bebê do Spike; tomei conta dele e o devolvi para o Spike, e agora ele não pertence mais a nenhum de nós. Agora ele é do público. Somos muito abertos. É algo muito especial, e é um relacionamento global que nos manteve focados nisso.