Tecnología

​Steve Wozniak foi meu professor de informática em 1995

Cresci no Vale do Silício duas décadas antes dele servir como título bacanudo para uma série na HBO. Meus pais eram dois hippies que dirigiam Volvos adornados com adesivos como “Salve o Tibet” e “Questione a Autoridade”. A escola pública que frequentei na região de Santa Cruz Mountains, na Califórnia, nos EUA, só tinha 30 crianças matriculadas na 5ª série.

Vivíamos à base de vales-refeição do governo e muitos pais tinham grana o bastante para comprar carrinhos elétricos para os filhos no Natal. Todos se ajudavam como podiam. Meu pai levava nossa turma para passeios ao ar livre e a mãe de outra menina liderava nossa turma de escoteiras. O pai de minha amiga Sara nos ensinava sobre computadores depois das aulas.

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Com um detalhe: Sara é filha de Steve Wozniak, co-fundador da Apple.

“Me importava menos com o que você ensina e mais com motivar pessoas a fazer as coisas da forma mais divertida possível”, me disse Wozniak ao telefone, após ter retomado contato com ele quase 22 anos depois. “Eu tinha essa liberdade porque eu mesmo patrocinava as aulas e não obedecia a diretor algum. Minha intenção não era treinar crianças para virar emespecialistas em informática ou trabalhar para empresas do ramo. Não precisamos que todos sejam especialistas em computador.”

Foto da turma da autora com notebooks Macintosh PowerBook dados por Wozniak. A autora está ao lado do escorregador, perto do topo. Crédito: Cati Myer

As chaves para o reino da Internet Primordial

Wozniak dava aulas para a minha turma de 5ª série em 1995, quase uma década depois de ter sido o cérebro por trás do Apple 1 e deixado a empresa para dar início a outras empreitadas, como a CL9, que trouxe ao mercado o primeiro controle remoto programável.

Lembro de olhar para o lado de fora da sala de aula no primeiro dia. Chovia e Steve passou pelo playground com um chapéu vermelho, branco e amarelo – sinal de seu amor por inovações um tanto quanto peculiares. Ele entrou na sala, tirou o chapéu e pediu para que nos aproximássemos. Então sacou um disquete do bolso e o desmontou para nos mostrar o que cada peça fazia. No fundo da sala estavam 30 PowerBooks (1400c) novinhos que haviam sido emprestados pra gente. Steve disse que quem tivesse aprendido os conceitos direitinho até o final do ano poderia ficar com o seu.

“Me importava menos o que você ensina e mais motivar pessoas a fazer coisas da forma mais divertida possível.”

Passamos os meses seguintes aprendendo a usar a internet, configurar uma rede e construir páginas da web simples. Lembro me sentir como se tivesse as chaves de um reino mágico nas mãos.

Steve era bem sincero em suas aulas, mas dava sempre um jeito de manter as coisas interessantes. Às vezes ele trazia uns McLanches Felizes, o que era rebelde e empolgante para uma molecada que comia granola à força por causa de pais preocupados com saúde. Ele também adorava compartilhar engenhocas divertidas conosco. Certa vez deu canetas laser pra todo mundo, algo que logo deve ter percebido que foi um erro, já que passamos o resto da aula tentando cegar uns aos outros.

O momento em que descobri que a web não era feita por aranhas

Eu não era exatamente a melhor aluna para assuntos tecnológicos. Quando Steve disse que iria nos ensinar a entrar na “world wide web”, logo pensei em um túnel subterrâneo secreto em que escalaríamos teias de aranha gigantes ligadas a todas as cidades do mundo. Já tinha ouvido falar de gente cavando buracos rumo à China – quem diria que essas pessoas estavam erradas?

De cara fiquei desapontada quando descobri que a tal web era invisível e ficava dentro do meu computador. O desapontamento, porém, logo deu lugar à alegria quando Steve nos apresentou a America Online. Ele nos ajudou a configurar nomes de usuário e logo nos conectávamos e esperávamos a voz de Deus nos avisar que havíamos recebido um email. Não demorou muito pra eu decidir que isso era bem mais legal que uma teia de aranha subterrânea gigante.

Steve Wozniak lidera uma série de alunos de 7ª e 8ª série com PowerBooks da Apple que havia comprado para eles nesta foto de 1993. Crédito: Getty Images

“Na verdade gastei bastante para levar internet às escolas mesmo que discada para todos vocês alunos”, disse Steve em nossa recente conversa, refletindo sobre os primórdios do acesso à internet e como ele esperava que isso mudasse a forma que as crianças aprendem coisas. “Redes eram importantes e a AOL estava aqui antes da internet. Na época da conexão discada, nunca imaginamos que teríamos experiências reais ao vivo, instantâneas. Mas na pré-internet a AOL tinha salas de bate-papo que eram meio que como uma rede social em que você poderia participar das salas e categorias que quisesse. Quanto ao que isso levaria no futuro, apenas supus que os computadores seriam mais comuns na sala de aula. Todas as escolas estavam montando laboratórios de informática.”

Lições de privacidade online (com uma forcinha de Jonathan Taylor Thomas)

Ao perceber que podíamos nos conectarmos a qualquer pessoa ou coisa, logo quis saber se meu crush-celebridade da infância e astro de Home Improvement Jonathan Taylor curtiria passar um tempo comigo. Com certeza ele tinha internet, então lhe enviei um email no endereço JTT@aol.com lhe dizendo o quanto o adorava no programa e que sabia que era um cara muito ocupado, mas caso viesse me visitar, lhe mostraria minha coleção de Pogs [espécie de tazo da época]. Junto disso, mandei meu telefone e endereço, só pra garantir.

Duas semanas depois meus pais receberam uma carta muitíssimo bem digitada de um dentista de Des Moines lhes dizendo que deveriam monitorar as atividades de sua filha na internet já que ela estava repassando dados pessoais a estranhos. Foi aí que tive minha primeira lição em privacidade na rede aos 10 anos de idade.

O legado de Woz enquanto professor de informática

Das 30 crianças da turma, pelo menos oito seguiram carreiras em tecnologia. Um dos meus antigos colegas, Dan Leis, disse que Steve ter nos ensinado código binário e protocolos de rede como o finado Token ring o inspirou a entrar no ramo. Não lembro dessa parte das aulas e presumo que tudo tenha rolado quando fugi pra brincar de “Verdade ou Desafio” na estufa logo atrás da sala de aula. Outra colega, Bianca Yacoub, que hoje trabalha na Apple na Califórnia, mencionou as aulas em sua entrevista de emprego. Yacoub tinha um problema de visão por causa de seu albinismo, o que lhe dificultava ver as fontes no notebook, então Steve foi até a sua casa e instalou uma tela enorme para que ela pudesse assistir às aulas direito.

Steve Wozniak dava aulas de informática para crianças após a escola nos anos 90. Crédito: Getty Images

Minha lembrança mais viva das aulas é a de uma conversa que tive com Steve. Não era segredo nenhum que eu não estava entre os melhores. Achava computadores divertidos, mas o aspecto técnico da coisa passou batido desde o começo. Uma vez Steve percebeu que eu não eu estava prestando atenção e morri de culpa. Depois da aula ele veio a mim e perguntou o que eu estava achando. Respondi, alegre, que eram “boas!” e o que veio depois foi a confissão de que eu não adorava estudar aquilo como as outras crianças. Ele sorriu e perguntou do que eu gostava.

Admiti que, no geral, a escola era difícil pra mim, mas adorava arte e na aula dele gostava de softwares que permitiam construir coisas, como Sim City. Ele disse que essas coisas eram importantes também e que ele também não gostava muito da escola quando era mais novo. Era um cara gentil e que não julgava, me deixava ser quem eu era.

Na nossa última conversa por telefone, quando compartilhei essa lembrança com Steve, ele riu. “Por que não deixar os estudantes seguirem o caminho que querem?”, disse. “Deixem eles fazerem o que quiserem e não forcem a seguirem na mesma velocidade que os outros. A maior parte da escola podia funcionar como creche mesmo. Se as pessoas tem algo em seu coração, você não deve impedi-las… Eu gostava de ser um nerdão, mas nunca empurrei isso goela abaixo dos outros.”

Ao final do ano, todos ganhamos uma cópia da biografia de Steve – Steve Wozniak, Inventor of the Apple Computer, de Martha E. Kendall. O pessoal que ficou com os notebooks também ganhou estrelinhas nas últimas páginas do livro. No meu, em vez de uma estrela, tinha um recadinho: “Vá construir grandes coisas. Te desejo o melhor, Steve”.

Analisando tudo isso agora, acho que o “Woz” ser uma espécie de deus da tecnologia passou meio em branco pela gente, como quase tudo aos 10 anos de idade. Acho que só encarávamos ele como o pai bacana e inteligentão da Sara, o cara que fazia computadores. Também achávamos legal o pai de outra menina ser bombeiro e o fato de que o coelhinho de estimação da turma comia qualquer coisa que déssemos pra ele. Éramos crianças. E independentemente disso Steve nos dava liberdade para sermos quem éramos naquele momento, para descobrirmos nossas paixões e desafiar estruturas normativas, fossem elas do currículo escolar ou pais que não nos deixavam comer McDonald’s.

Syambra Moitozo é produtora associada da Daily VICE.

Tradução: Thiago “Índio” Silva