Este artigo foi originalmente publicado no JORNAL DE LEIRIA e a sua partilha resulta de uma parceria com a VICE Portugal.
Se achas difícil arranjar trabalho, prepara-te para um cenário ainda mais competitivo, porque robôs e máquinas inteligentes vão provocar uma revolução nas empresas. Não comem, não dormem, não tiram férias e fins-de-semana, não precisam de intervalos para fumar e garantem turnos de 24 sobre 24 sem exigir o pagamento de horas extraordinárias. Coisa do futuro distante? Pelo contrário, está a acontecer hoje – e as estimativas do Fórum Económico Mundial admitem a destruição de 7 milhões de empregos no horizonte até 2020. A solução passa por mais formação ao longo da vida, ou mesmo por um novo modelo de sociedade.
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Este jornal que te chega às mãos, como a maioria dos jornais no mundo, é produzido todas as semanas por pessoas reais, que alimentam a edição em papel e a mais recente versão digital. Mas gigantes da comunicação como o Washington Post e a Associated Press já recorrem a robôs para escrever notícias, por exemplo, durante os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, nas análises da bolsa de valores e nas jornadas da minor league de basebol.
Tudo o que o humano faz, a máquina faz melhor. Mais tarde ou mais cedo. Quem o lembra é Sebastian Thrun, um antigo executivo da Google que ajudou a desenvolver veículos sem condutor. E a realidade começa a confundir-se com a ficção também no sector dos transportes, muito além da angústia dos taxistas: a Uber tem na estrada uma frota de automóveis sem motorista, enquanto a subsidiária Otto entregou no ano passado 50 mil garrafas de cerveja num camião autónomo.
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Tudo parece possível. Dos restaurantes automáticos em Londres, à loja Amazon Go em Seattle, onde o cliente abastece e sai, com o custo a ser debitado na conta bancária, sem filas, nem operadores de caixa registadora. Muito mais perto, a indústria de moldes da Marinha Grande, que tem das fábricas mais avançadas em Portugal, já deu o passo em frente para as células de fabricação automática controladas por robôs.
Outros casos encontram-se nos serviços de call center, a que tantas pessoas recorrem para segurar as pontas entre empregos, ou ajudar a pagar as propinas da universidade: a autarquia de Braga acaba de disponibilizar um assistente virtual que permite agendar reuniões com o presidente da Câmara e enviar questões para os serviços municipais.
Mesmo em sectores como a medicina e a advocacia, que dependem do diagnóstico de profissionais treinados e experimentados, a mudança está a acontecer: a IBM anuncia o primeiro advogado de inteligência artificial, de nome Ross, que já desempenha tarefas de pesquisa legal numa firma norte-americana com escritórios em várias cidades.
AS EMPRESAS SÃO AS PESSOAS?
A imparável robotização alimenta-se da mistura entre inteligência artificial, mobilidade e conectividade, que são o combustível da indústria 4.0 e da economia digital. Lá em casa, os electrodomésticos vão comunicar entre si e a impressora vai imprimir objectos a três dimensões, tudo com a ajuda da internet.
Nas empresas, “a tendência natural” é as tarefas sem valor acrescentado passarem a fazer-se “cada vez menos com intervenção humana”, afirma o director da Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Leiria, Pedro Martinho. Por conseguinte, “há pessoas que vão ter que reconverter competências”, se querem manter-se activas no mercado de trabalho.
Do lado da indústria, as decisões colocam-se na captação de talento, actualização de tecnologias e antecipação de tendências. Mas, para o presidente do Grupo Iberomoldes, “cada vez mais vão ser as pessoas a parte fulcral da equação”, porque só “pessoas aptas, com o perfil adequado e orientado para a melhoria contínua”, ajudam a responder “aos desafios colocados pela digitalização”.
Joaquim Menezes acredita que “vai ser necessário investir muito” na formação contínua e na qualificação dos trabalhadores para a nova realidade. “Ao nível a que chegámos, em termos de activos na nossa indústria, a tendência não será para diminuir, mas sim de evolução de técnicos, com perfil simultaneamente mais especializado e flexível. Pessoas com vontade de aprender todos os dias ao ritmo da tecnologia”, antevê.
TAXAR OS ROBÔS?
Duas em cada três crianças actualmente no primeiro ano de escolaridade vão tornar-se adultos em empregos que hoje não existem. O diagnóstico é do Fórum Económico Mundial no relatório The Future of Jobs (O Futuro dos Empregos), que avisa para o potencial de revolução no mercado de trabalho. Os modelos de negócio de hoje são ameaçados por constantes avanços na inteligência artificial, robótica, nanotecnologia, impressão a três dimensões, genética e biotecnologia, que sucedem em simultâneo com desenvolvimentos sociais, económicos, geopolíticos, climáticos, energéticos e demográficos.
Dos 7 milhões de empregos que podem desaparecer até 2020 nos 15 países cobertos pelo relatório, segundo o Fórum Económico Mundial, dois terços são empregos de colarinho branco em escritórios. Mas também a produção industrial, a construção e indústria extractiva, as artes, o design, o entretenimento, o desporto, os media e as actividades jurídicas deverão perder postos de trabalho.
Perante os impactos profundos que se admitem no tecido económico e social, há quem sugira impostos sobre a utilização de robôs que substituam pessoas. A medida, defendida pelo fundador da Microsoft, tem em vista o investimento noutras áreas onde a empatia e a compreensão humana (ainda) são únicas, como a prestação de cuidados a idosos e jovens com necessidades especiais. Bill Gates vê também aqui uma oportunidade para financiar profissionais de baixos rendimentos afectados pela robotização, através, por exemplo, da educação e dos apoios sociais.
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Os robôs inteligentes que aprendem dia após dia estão a tomar conta de trabalhos físicos, mas, também, de trabalhos intelectuais. E é aqui que reside a maior novidade. A revolução tecnológica em curso vai eliminar empregos, “o que inquieta”, mas, “poderá de algum modo atender a esse desejo secular que é libertar o ser humano do trabalho sujeito à necessidade”, comenta Alexandra Carmo. A antiga vocalista dos Rádio Macau, hoje investigadora associada ao Grupo Praxis, na Universidade de Lisboa, acredita que estamos “no limiar de algo completamente novo”, na transição entre “o trabalho penoso, alienado e desagradável” para “o trabalho que auto-realiza”.
Na pesquisa para um livro que vai equacionar as circunstâncias da idade contemporânea, Xana distingue entre subsistência e existência. Ao Jornal de Leiria, sublinha que a robotização, porque destrói empregos, coloca em causa as bases da sociedade ocidental, que se baseia no consumo. “Teremos uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, desocupados, dir-se-ia perdidos”. Por outro lado, o aumento da produtividade gerado por máquinas mais eficentes num planeta “com recursos finitos” levanta um “problema ecológico grave”. “Se a revolução tecnológica em curso não for acompanhada por uma revolução social, económica, política e cultural, os cenários catastróficos que muitos adivinham poderão acontecer”, antecipa Alexandra Carmo. Num cenário de emprego escasso e tempo abundante, a primeira pergunta a responder é a mais importante: “O que faremos com a nossa existência?”.
RECICLAR 20 MIL TRABALHADORES
Em Janeiro, o Governo lançou publicamente a estratégia para a indústria 4.0, um pacote de 60 medidas de iniciativa pública e privada que, entre outros objectivos, visam requalificar e formar mais de 20 mil trabalhadores em competências digitais.
Para alcançar esta meta e a massificação das tecnologias associadas ao conceito de indústria 4.0, vão ser accionados fundos europeus estruturais e de investimento, até ao montante de 2,2 mil milhões de euros de incentivos. O Governo estima que o valor a injectar na economia nos próximos quatro anos venha a ascender a 4,5 mil milhões de euros.
A maioria das 60 medidas anunciadas em Janeiro destina-se a capacitar os recursos humanos, dos primeiros anos de escola à reconversão de trabalhadores.
DOIS MILHÕES DE NOVOS EMPREGOS ATÉ 2020
Também há boas notícias na robotização: o Fórum Económico Mundial prevê a criação de novos dois milhões de postos de trabalho até 2020 nas áreas da informática, matemática, engenharia e arquitectura, só em 15 países estudados no relatório The Future of Jobs. A estimativa baseia-se nas respostas de gestores de recursos humanos inquiridos junto das maiores empresas. Também os sectores das operações financeiras, gestão, vendas, educação e formação podem ver aumentar o emprego líquido nos próximos anos.
O documento lembra que, em muitos países e indústrias, as ocupações hoje mais procuradas pelos empregadores não existiam há cinco ou 10 anos. Mas traça o perfil das categorias profissionais emergentes, ou seja, as que dão mais garantias de empregabilidade. E no topo da lista estão os analistas de dados e os agentes comerciais especializados. Os primeiros porque a disrupção tecnológica vai produzir uma torrente de informação da qual é preciso extrair tendências e valor, os segundos porque as empresas industriais vão precisar de atingir novos clientes e explicar ao mercado a natureza inovadora dos produtos que fabricam.
Em média, um terço das competências de base necessárias para a maioria das profissões no futuro estão ainda por identificar, avisa o Fórum Económico Mundial. Mas é certo que as competências técnicas vão precisar de ser completadas com competências emocionais, sociais e de cooperação. Entre as previsões de curto prazo, encontra-se o aumento do trabalho flexível e da mobilidade, a importância da formação contínua e a inevitabilidade da aprendizagem ao longo da vida.
LEIRIA NA VANGUARDA DA INDÚSTRIA 4.0
São os novos centros tecnológicos criados pela multinacional Siemens para apoiar a próxima geração de projectos industriais. Três, em Portugal, um deles a instalar no Instituto Politécnico de Leiria. Os I-Experience 4.0 Centers resultam da Academia Siemens 4.0, medida estratégica anunciada pelo Governo no âmbito da iniciativa indústria 4.0. Além de Leiria, estão previstos na Universidade de Aveiro e na sede da Siemens em Alfragide.
Segundo Pedro Martinho, director da Escola Superior de Tecnologia e Gestão (ESTG) do IPL, trata-se de “um centro de experimentação”, equipado com “tecnologias de exemplo, à escala laboratorial”, com aplicação na “nova era da digitalização e robotização”. Verdadeiros “centros de aprendizagem” para aquilo que se espera ver acontecer em muito pouco tempo: “Tarefas hoje desenvolvidas por pessoas e que amanhã poderão estar a ser executadas por sistemas ou robôs”, explica Pedro Martinho. Em Leiria, o I-Experience 4.0 Center vai trabalhar em estreita colaboração com o Laboratório de Automação Industrial da Siemens que já funciona na ESTG. Mas a ESTG quer “estar na linha da frente desta evolução, que é muito rápida”, afirma Pedro Martinho.
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Para isso, há um grupo de trabalho que reúne professores de engenharia mecânica, de engenharia informática e de engenharia electrotécnica. O objectivo é canalizar tudo o que a escola já produz para um único espaço de convergência entre valências. Totalmente dedicado à indústria 4.0. Com destaque para a conectividade e mobilidade, que estão na base de outra revolução, a da internet das coisas.
O envolvimento da ESTG com empresas de referência como a Siemens e a Phoenix Contact tem permitido desenvolver actividades relevantes. Entre outros projectos, destaque para o trabalho desenvolvido na área dos programas de gestão da produção, do controlo e monitorização de processos e do registo de consumos de energia. Com a empresa Bollinghaus Portugal, por exemplo, a escola está a desenvolver um novo sistema de recolha, pesagem e separação das pontas das barras de aço na fase de laminagem.
O objectivo é recorrer a um autómato com capacidade de comunicação com controladores de outros processos. Em Janeiro, o primeiro-ministro António Costa apresentou em Leiria a estratégia do Governo para a indústria 4.0 e a economia digital, tendo dito que Leiria “pode ser o grande laboratório da indústria” em Portugal.
Cláudio Garcia é jornalista do JORNAL DE LEIRIA.