The Vacuum é o Jornal mais Odiado de Belfast

A edição “Sexo”. Ilustração de Duncan Ross. 

A maioria das pessoas que não mora na Irlanda do Norte associa a província à violência sectária, o que não é de se estranhar. A violência sectária é mais interessante do que as outras coisas que rolam na região, como Rory McIlroy e Ash. Mas a cobertura da imprensa é míope. Para além das duas comunidades inimigas que ainda pulam uma na jugular da outra – e das muitas pessoas que desejam relegar esses conflitos aos livros de história – trata-se de uma província com as mesmas armadilhas e dádivas de qualquer outra região britânica moderna.

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Você sabia, por exemplo, que após o acordo da Sexta-Feira Santa, de 1998, uma narrativa de revitalização se teceu de forma silenciosa ao redor das histórias corriqueiras de ameaças de bomba e protestos violentos? Após a trégua, grandes somas de dinheiro fluíram para Belfast, causando uma renovação agressiva do centro da cidade. Embora os jornalistas da grande mídia tenham documentado de forma diligente as tensões sectárias que continuavam, eles, em grande parte, ignoraram o contexto desses eventos.

É aí que entra The Vacuum. Desde de 2003, Stephen Hackett e Richard West vêm publicando o principal jornal satírico de Belfast com o objetivo de desafiar algumas das preconcepções sobre a cidade e de ridicularizar membros de sua elite política e religiosa.

Não é surpresa que essa atitude desafiadora tenha trazido alguns problemas. Quando seus editores publicaram duas edições intituladas “Deus” e “Satanás” em 2004, o Conselho as classificou de “um insulto aos católicos e aos protestantes” e imediatamente cortou o financiamento ao jornal. Em resposta, Hackett e West fizeram a edição seguinte concentrada em torno dos diferentes conceitos de contrição, e promoveram um sarcástico “Dia da Desculpa” no centro da cidade.

Conversei com West na ocasião do décimo primeiro aniversário de sua publicação.

A edição “Dinheiro”. Ilustração de Duncan Ross.

VICE: Oi, Richard, tudo bem?
Richard:
Tudo bem, e você?

Tudo bem comigo, eu achava que você era da Irlanda do Norte, e seu sotaque parece ser inglês. De onde você é?
Sim, bem, eu na verdade sou de Londres. Stephen [Hackett], o outro editor, é que nasceu na Irlanda do Norte. Ele é o diretor de uma organização comandada por artistas chamada Catalyst, e eu sou o coeditor de uma revista de fotografia chamada Source, ambas com base em Belfast. De alguma maneira, nós nos conhecemos – não lembro como – e começamos a colaborar em vários projetos. Mais tarde, começamos a publicar The Vacuum, em 2003. Eu, na verdade, tinha me mudado para Belfast em 1997. Antes disso, vivia em Paris, mas, por algum motivo, simplesmente me interessei pelo lugar e decidi me mudar para lá.

Isso foi um ano antes do acordo da Sexta-Feira Santa. Você não teve problemas?
O fato de eu ser inglês não tinha importância – sempre houve ingleses por lá… Jornalistas e tal. O clima ainda estava meio ruim; tinha havido um surto de tiroteios, e as pessoas se preocupavam mais com a violência e com os conflitos sectários do que hoje em dia. Ainda vou para lá regularmente por causa do trabalho, mas minha família está em Londres, então agora eu passo mais tempo na Inglaterra.

Em que a cidade está diferente desde que você chegou?
A transformação mais perceptível foi a do centro da cidade, que foi completamente renovado. Uma das obsessões da The Vacuum é a propaganda rósea que se faz a respeito de Belfast – sua indústria de RP e o controle que o Conselho tem sobre o planejamento da cidade. Houve um bom exemplo disso no ano passado, quando contrataram um artista para criar uma imagem enorme de uma menina sorridente, ocupando acres inteiros de terra baldia perto do cais. Outro caso foi o do “Bairro da Catedral”, em tese, desenvolvido para ser o bairro cultural da cidade, mas que ironicamente acabou obrigando as galerias a fechar. Noutras regiões da cidade, shoppings inteiros foram misteriosamente incendiados, e para os empreendedores locais é normal fazer uso de seguranças particulares, para garantir que coisas como aberturas de exposições de arte não “saiam do controle”. Em resposta a tudo isso, encomendamos colunas como a intitulada “O que ele está construindo ali?” assim como, por outro lado, textos que são voos inclassificáveis da imaginação.

Em agosto de 2003, a edição “O Perigo” da Vacuum (nº 8) é entregue aos escritórios da revista, que depois sofreram um incêndio.

Por que você decidiu criar a Vacuum?
Ela partiu de um ânimo satírico, mas nós dois estávamos interessados em publicações impressas. É simplesmente fantástico poder produzir alguma coisa a um custo mínimo para um grande público; acho que nosso gasto com a primeira edição ficou em torno de 700 libras (2.600 reais). Outro motivo foi a vontade de discutir as coisas duma maneira que os jornais locais e a BBC da Irlanda do Norte não proporcionam. Nossa primeira edição foi sobre cinema, então entrevistamos cineastas locais e falamos sobre estereótipos. A Irlanda do Norte está soterrada sob uma enorme massa de clichês e queríamos encontrar um meio de sair disso.

Como assim?
Um estereótipo comum a respeito das pessoas da Irlanda do Norte é o de que todo mundo tem um senso de humor muito negro, o que não é verdade. Algumas pessoas que conheço certamente têm um senso de humor autodepreciativo, mas não acho que isso deva ser generalizado.

A edição “Deus”. Ilustração de Duncan Ross. 

As edições “Deus” e “Satanás” certamente foram de um humor bastante ácido. Dado que alguns membros das comunidades católica e protestante têm opiniões religiosas explicitamente conservadoras, vocês não ficaram preocupados?
Não, e ainda estamos perplexos com o que aconteceu, então vejamos. Fizemos duas edições: uma foi sobre Deus, a outra, sobre Satanás. Foi uma mistura de artigos cômicos com outros bastante sérios. Por exemplo, na edição “Deus”, há um artigo sobre arquitetura de igrejas, e um texto bastante digno, escrito por mim, sobre as imagens de Deus em pinturas clássicas, até a aparição de Jesus numa tortilha.

A edição “Satanás”.

O que aconteceu então foi que alguém no Conselho ficou irritado e alegou que muitas reclamações haviam sido feitas, o que levou o Conselho a cortar o financiamento, mas isso não chegou a prejudicar demais nosso orçamento. Contudo, posteriormente, descobrimos que só houvera, na verdade, uma única reclamação, o que faz a situação toda parecer um pouco ridícula. Portanto, não posso concordar com essa ideia de que todos na província são conservadores religiosos. É tão fácil encontrar um leitor nosso que goste de literatura moderna quanto um que goste de Slayer. Ainda assim, acabamos participando de debates ridículos no rádio com os conselheiros locais, e vários políticos, que, obviamente, sequer haviam lido o jornal, fizeram referências negativas a nós.

A edição “Desculpa”. Ilustração Duncan Ross.

Claro, mas a edição “Desculpa” que vocês publicaram foi obviamente para provocar, certo?
Bom, espero que sim. Mas num espírito brincalhão, porque a coisa toda foi ridícula demais. Depois do furor da imprensa, recebemos do Conselho uma carta insistindo que nos desculpássemos com os cidadãos de Belfast, o que achamos absurdo, então respondemos na mesma moeda. Conseguimos montar a edição “Desculpa”, que explorou o conceito de contrição, e também os diferentes tipos de censura que haviam ocorrido na cidade durante os últimos anos.

Também conhecíamos algumas pessoas que estavam a fim de diversão, e assim organizaram alguns eventos satíricos. Um ônibus circulou pela cidade com uma grande placa na lateral contendo a palavra “desculpa”, mas o melhor evento foi realizado por um de nossos colaboradores, que se vestiu de “Papai Noel Contrito” numa tenda no centro da cidade, cercada de latas de cerveja amassadas. Era início de dezembro e ele dizia às pessoas que o visitavam que elas não ganhariam presentes porque o Conselho os havia recolhido. Gostei disso. Mas enquanto tudo isso acontecia, eu e o Stephen estávamos ganhando prêmios, e desde então diminuímos um pouco a frequência de publicação do jornal, e fizemos alguns filmes.

Ônibus do Dia da Desculpa: uma placa dizendo “Desculpa” é colocada na lateral de um ônibus de dois andares que participou do evento.

E o que vocês andam fazendo?
Neste momento, nossa próxima edição dará seguimento a um filme que fizemos, chamado “Monster of Ulster”, sobre um mundo imaginário no qual a Irlanda do Norte é povoada por monstros, que são tratados basicamente como um estorvo e um motivo de constrangimento. Terminamos também outro filme, chamado “Busby Furball”, que será exibido no Belfast Film Festival no final do mês. É difícil explicar qual é o tema, mas o filme inclui cenas de relações sexuais com um fungo enorme e uma máquina de transferência cerebral. É um estilo meio Beckett.

Entendi.
De maneira geral, gostamos de colaborar com outras organizações explorando novas ideias. A edição “Ingleses” foi um bom exemplo disso. Fizemos uma exposição na cidade, em uma galeria chamada Belfast Exposed, de fotografias tiradas pelo exército, de suas próprias atividades, fotos que eram essencialmente para uso interno. Havia fotos de pinups usadas para levantar o moral das tropas, e também de jornalistas sendo ensinados a usar armas. Queríamos ter vários ângulos diferentes, mas começando da perspectiva dos ingleses que viveram na Irlanda do Norte, junto com uma discussão sobre a presença do exército – esse tipo de coisa.

Papai Noel Contrito sentado em sua tenda no “Dia da Desculpa” (15 de dezembro de 2004). Seus presentes foram retidos pelo Conselho Municipal de Belfast. Papai Noel Contrito foi criado e interpretado pelo artista Paddy Bloomer.

Você acha que ainda há pouca cobertura jornalística do que acontece na Irlanda do Norte?
Sim, isso é evidente. Aqui na Irlanda do Norte, é preciso que um acontecimento seja muito dramático para merecer sair nos noticiários ou na primeira página dos jornais. Há muita violência de pequena escala na Irlanda do Norte que simplesmente não recebe uma cobertura ampla; e, para ser justo, muita gente aqui provavelmente também não se interessa muito. Até certo ponto, isso é resultado de uma falta de consciência da história da Irlanda e da história da Irlanda do Norte em geral, mas os habitantes de muitos outros países também são assim. Lembro de explicar a uma amiga francesa que eu estava me mudando para Belfast, e ela me disse que achava que o IRA era o Exército Revolucionário Islandês.

Há! Por algum motivo, esse nome não parece tão assustador.
Por outro lado, embora essas coisas de fato aconteçam, ainda há uma grande concentração de pessoas talentosas na Irlanda do Norte que estão tentando fugir dessa narrativa. Recentemente, vi aquele site, o Loyalists Against Democracy, satirizando os protestos da bandeira, ocorridos depois que o Conselho Municipal proibiu que a bandeira britânica fosse hasteada em propriedades do Conselho. Não sei bem o que achar da perspectiva deles, porque não li o suficiente. Mas o que com certeza é verdade é que na Irlanda do Norte acontecem coisas tão idiotas que basta apenas publicá-las textualmente para que as pessoas achem graça, e isso parece que vai continuar sendo uma tradição por algum tempo.

Valeu, Richard.

@HuwNesbitt

Tradução: Marcio Stockler